"Morreu o Contreiras!", chegou-me há pouco numa mensagem de um amigo. O Carlos foi o oficial da Armada com maior, e mais decisiva, intervenção no dia 25 de Abril de 1974. Teve, além disso, um papel político de grande relevo em todo o período subsequente,
quarta-feira, dezembro 18, 2024
Carlos Almada Contreiras
"Morreu o Contreiras!", chegou-me há pouco numa mensagem de um amigo. O Carlos foi o oficial da Armada com maior, e mais decisiva, intervenção no dia 25 de Abril de 1974. Teve, além disso, um papel político de grande relevo em todo o período subsequente,
Justiça europeia
terça-feira, dezembro 17, 2024
"Magano"
Por que não vou lá mais? Porque é um local muito procurado, com reservas sempre difíceis no próprio dia ou mesmo de véspera, não obstante ter preços que se não podem qualificar de baratos. Mas, se tem esse tipo de preços, por que diabo está sempre cheio? Porque se come ali excecionalmente bem. De todas as vezes que por lá almocei ou jantei, e isso vai já muito longe na minha memória, não recordo de ali ter comido mal, ou melhor, só tenho na ideia ter comido sempre muito bem no "Magano".
Voltei, com uns amigos, no passado sábado, de propósito para experimentar a nova ala que foi criada numa casa ao lado, com um espaço muito funcional e agradável. E, como sempre, comemos lindamente! Todos nós! Se gosta de cozinha alentejana, o "Magano" é uma magnífica escolha. O serviço é muito atento, às vezes até um pouco pressionante demais, e há por ali uma bela carta de vinhos.
E, por falar em vinhos, se sair do "Magano" e atravessar a rua, encontrará do outro lado a "Garrafeira de Campo de Ourique", onde a família Santos há décadas nos orienta nas melhores escolhas. De nada!
Nomenclatura
A Ucrânia reconheceu a autoria do atentado que liquidou um general russo em Moscovo. Se o Kremlin tivesse mandado matar um general ucraniano nas ruas de Kiev, as notícias falariam em "ato terrorista".
Terrorismo é sempre uma violência do outro lado.
segunda-feira, dezembro 16, 2024
Livros para o Natal - "Cartas a um jovem decente"
Comprei o "Cartas a um jovem decente" com alguma curiosidade. Sabia que Mafalda Anjos era mãe de família e interessava-me perceber o que ela quis dizer a uma geração com a qual tenho muito pouco contacto e que, já não "indo para novo", cada vez mais sinto dificuldade de interação, porque crescentemente se diluem os meus códigos da relação intergeracional.
Li o livro, menos de 200 páginas, no dia em que o comprei. O que é? É difícil de definir. Correndo o risco de todas as caricaturas, diria que estamos perante um manual de bom senso para uso das novas gerações, de onde transparecem algumas evidências que o ruído dos dias às vezes obscurece, somado ao fruto de outras experiências que só se ganham na interação com os jovens.
Mafalda Anjos assume abertamente, no texto, uma "ideologia", de que faz descarado proselitismo: a da decência. Esse é o pano ético de fundo onde projeta as reflexões que faz sobre múltiplos aspetos da vida contemporânea de quantos se aproximam ou já acederam à fase adulta da existência. Sem ser "maternalista", a autora arrisca por vezes, embora numa linguagem esforçadamente simples, um trilho cultural que, posso imaginar, deve afastar-se, aqui ou ali, daquele que constitui o núcleo de informação de muitos dos destinatários potenciais do seu texto. Mas, com esse desafio feito, fica pelo menos a consolação de que estes recebem, através das páginas que ela escreveu, uma "biblioteca" que muito os pode ajudar no futuro.
Através deste livro, escrito por uma mãe jovem, fica a saber-se bastante sobre o que pode ser a relação pais-filhos no mundo de hoje, titulada por alguém que mostra uma imensa tolerância e respeito pela liberdade dos jovens, nas escolhas que eles têm que fazer, ao chegarem às esquinas e às rotundas da vida. Deve ser bom ser filho de Mafalda Anjos.
Recomendo bastante estas "Cartas". Aprendi bastante com elas.
domingo, dezembro 15, 2024
A cor do "Salazar"
Os nossos comunistas
Faço parte dos portugueses que, nunca tendo sido militantes do PCP, têm uma profunda admiração e eterna gratidão pela luta que o partido levou a cabo contra a ditadura. Não tenho a mais pequena paciência para o argumentário preconceituoso de quantos acham que "o que eles queriam era impor uma nova ditadura". Essas pessoas nunca conseguirão entender que uma ideologia como a que alimentou o PCP, um partido criado há bem mais de um século, passou por fórmulas políticas que hoje estão definitivamente datadas, mas que fizeram parte indissolúvel de tempos em que a ideia da esperança na regeneração radical da vida social dos povos a elas estava ligada. Não perceber isto é não perceber a História. E o PCP está há muito na nossa história e nela ficará muito para além de alguns "parvenus" conjunturais.
Desprezo igualmente a recorrente visão de um PCP golpista, papão do PREC. Lidei de muito perto com gente do PCP por esse tempo, tive com eles profundas divergências e até alguns confrontos. É óbvio que os comunistas portugueses teriam apanhado o "comboio da Revolução", se o ano de 1975 tivesse corrido de outra forma, mas não foi por acaso que os moderados de novembro desse ano deixaram que o PCP permanecesse no governo e mantivesse sem interrupções toda a sua expressão política. Bem oposto era o projeto dos oportunistas que, sem êxito, procuraram aproveitar o fim do PREC para ensaiar um novo 28 de maio, uma vez mais anti-comunista.
O PCP é, desde há meio século, um partido respeitador da Constituição da República, que, em muitos aspetos, até parece ser hoje o seu verdadeiro programa político. Não conheço ninguém que possa apontar ao PCP um ato que indicie o menor infringimento da ordem constitucional instituída em 1976. É sabido que os comunistas têm um endémico azar ao capital privado, com o qual convivem com evidente esforço, e que adorariam que o tecido económico do país fosse maioritariamente público. É uma evidência que o PCP "sofre" a economia de mercado, que hoje é a matriz incontornável da sociedade portuguesa. Nunca os comunistas se reconciliaram com este estado social de coisas e nunca irão perceber nem aceitar que essa é uma das fontes da nossa atual liberdade. Mas não vejo o menor inconveniente que subsista na sociedade portuguesa um partido, embora cada vez mais minoritário, que persista nesta matriz.
Os comunistas portugueses são também órfãos inconsoláveis do fim da União Soviética, têm a Rússia como o seu "next best" e resistem a qualificar Putin como o autocrata que é. Detestam os Estados Unidos e, em geral, consideram a União Europeia uma entidade do mal. Pelo mundo, batem palmas a quem irrite o mundo ocidental, o que os leva ao ridículo de apoiarem regimes como os de Maduro, Lukashenko, Ortega ou o homem da Coreia do Norte. Mas, com toda a justiça e dignidade, estão firmemente ao lado da Palestina. No todo global, os comunistas portugueses, que sabem bem ao que andam, já se devem ter dado conta de que a vertente externa tem vindo a contribuir internamente para a sua impopularidade. Mas, para eles, o mundo há muito que é assim.
No Portugal democrático em que gosto de viver, entendo que os nossos comunistas devem ter todo o espaço para defenderem essas suas ideias, por muito que estas se afastem do "mainstream" maioritário. Comigo sempre poderão contar para ajudar a preservar publicamente esse seu direito. Desejo que o PCP tenha tido um ótimo congresso, seja lá isso o que for.
sábado, dezembro 14, 2024
"Snob Bar"
Livros para o Natal - "Só neste país"
Eu tinha vivido esses anos de "O Independente". Recordava-me do jornalismo diferente, ousado e moderno que "O Independente" inaugurara, em que se incluia uma imensidão de patifarias que o jornal fizera a muita gente, em especial durante os governos de Cavaco Silva, prolongando-se depois no consulado de Guterres. Eu próprio tinha sido alvo pessoal de uma delas. Dito isto, não deixava de reconhecer que o jornal marcara, de facto, um tempo importante na história do nosso jornalismo, pelo que achei muito interessante, informativo e instrutivo o livro que aqueles dois excelentes jornalistas sobre ele tinham escrito. Ainda às vezes consulto o livro.
Foi assim com grande curiosidade que avancei para este "Só neste país", que Filipe Santos Costa e Liliana Valente agora assinam. E não me arrependi. O livro é um magnífico repositório das imensas bizarrias que atravessaram a classe política, e não só, desta pátria que em boa hora nos calhou em rifa. Mesmo para quem, como eu, tem a pretensão de estar bastante atento ao quotidiano político, constatei que havia algumas coisas de que afinal não tinha conhecimento e, sobre outras, vi-me obrigado a rever o que julgava saber. Muito bem escrito, divertido e rigoroso, é um "album de glórias" de imensos momentos quase sempre menos gloriosos da nossa vida pública, que revelam bem como fomos e como somos, nada indicando de que assim deixaremos de ser no futuro.
O "Só neste país" pode ser uma bela prenda de Natal.
A tosse do primeiro violino
sexta-feira, dezembro 13, 2024
E o "jeunisme"?
A França sob o olhar do mundo
Dador de lições
Um país que, no prazo de um ano, teve já quatro primeiros-ministros deve ter algum dificuldade (ou melhor, algum pudor) em querer dar lições ao mundo, mandando bitaites sobre a respetiva situação política - da Ucrânia ao Líbano, passando pela África que o está a pôr com dono.
Bayrou
François Bayrou é o novo PM francês. A "novidade", depois de tantas hesitações, recai assim num dos mais antigos políticos franceses no ativo.
Sarkozy (e o Les Républicains) detesta-o, por ele ter apoiado Hollande em 2012.
Le Pen deve-lhe um gesto. Quando a candidata do Rassemblement National necessitava de um mínimo de "parrainages" de eleitos, para poder concorrer à presidenciais de 2022, Bayrou, num belo gesto "republicano", ofereceu o seu nome.
Os socialistas têm sobre ele "mixed feelings". Ségolène Royal nunca lhe perdoará a falta de endosso, na segunda volta das eleições de 2007. Noutro tom, Mitterrand dizia que uma pessoa que conseguiu superar a gaguez é sempre de respeitar.
Influências
Nunca houve dúvidas de que a Rússia procura influenciar, em favor das forças que protegem os seus interesses, eleições e movimentações políticas em alguns países. O que acho estranho é que isto pareça ser um escândalo quando os EUA, e agora a UE, atuam de forma idêntica.
quinta-feira, dezembro 12, 2024
Gostos
A revista "Ler", dirigida por Francisco José Viegas e editada por Filipa Melo, submeteu-me a um inquérito sobre (algum)as palavras de que mais desgosto e gosto.
Radha Kumar
quarta-feira, dezembro 11, 2024
"Breve Infinito - O Cais Anterior"
Pode ler o que eu disse aqui.
Prémio Mário Quartin Graça
Na minha qualidade de presidente do júri do Prémio Mário Quartin Graça, atribuído pela Casa da América Latina, intervim hoje na sessão da entrega do prémio de 2024 à académica brasileira Renata Flaiban Zanete. Anunciei também a atribuição das quatro menções honrosas, que o júri entendeu dever distinguir, dada a qualidade dos trabalhos este ano apresentados.
Franças
Os socialistas franceses mostraram abertura a poder vir a aderir a uma atitude de "não-censura" (eles que votaram a censura que derrubou o governo Barnier) a um futuro governo, mesmo que nele não participem, em troca deste se comprometer a não impor leis através do mecanismo constitucional de exceção (49.3).
A evolução dos socialistas franceses rumo a um compromisso de governo necessitará ainda de ser confirmada. O seu líder, Olivier Faure, é muito contestado internamente, nomeadamente em setores do seu grupo parlamentar.
A primeira e irreversível consequência de uma anuência do PS francês a um novo governo será a rutura do ""Nouveau Front Populaire" (NFP). Se Ecologistas e Comunistas seguirem o PS, "La France Insoumise" de Mélenchon, força principal do NFP, fará o caminho de "cavalier seule".
Dentro do PS francês há, contudo, um setor muito ligado à ideia do NFP. A razão desta hesitação é simples: se o PS tivesse ido a eleições isolado, teria tido um resultado muito inferior. Pensava-se que Faure pertencia a esse grupo próximo da LFI ...
Ao colocar o "Rassemblement National" e o LFI como extremos a isolar no caminho para um novo governo, Macron concretiza o sonho político da direita: equiparar no imaginário público o grupo de Mélenchon ao partido de extrema-direita.
terça-feira, dezembro 10, 2024
Vale tudo?
O "whataboutism" no seu melhor: perante a evidência da onda de execuções levada a cabo pelos novos senhores da Síria, as redes sociais mostram gente muito compreensiva com essa barbárie, argumentando que Assad fazia o mesmo.
No Grémio
Não olhar
A concentração das atenções na questão da Síria passa a ser o cenário ideal para que o povo palestino continue a ser objeto de um tratamento bárbaro. A Europa, entidade sempre cobarde face a Israel, parece seguir o título do clássico livro de Aldous Huxley: "Sem olhos em Gaza".
segunda-feira, dezembro 09, 2024
O "Painel" do Cardoso
No interior da velha casa que a imagem mostra, numa parede, havia um grande painel em que o artífice, descuidado, tinha trocado dois azulejos de uma nuvem, oferecendo à obra um não deliberado sentido de transgressão estética. Era o restaurante "Painel de Alcântara".
A mudança
domingo, dezembro 08, 2024
SIC Notícias
Aceitei com gosto o convite da SIC Notícias para ir hoje, depois das 19.00, falar do terramoto político na Síria e dos humores de Trump sobre a Ucrânia.
Dei conta na minha intervenção da curiosa nomenclatura que é usada para designar os insurgentes, num qualquer cenário violento. Quem não gosta deles chama-lhes terroristas. Aqueles a quem eles dão jeito geopolítico chamam-lhes guerrilheiros ou coisas mais fofas. Quem altera a designação que usava, a meio dos conflitos, chama-se a si próprio de potência oportunista.
Síria
Assad tinha muito poucos amigos. A Rússia perde um "hub" regional e o Irão um aliado. Israel e Turquia esperam tirar vantagens. Riade e Amman devem estar muito inquietos. O que se passou no Iraque e na Líbia deve fazer refletir o mundo. A região fica muito mais complexa. Já estava pouco...
sábado, dezembro 07, 2024
Soares e uma certa diplomacia
O conselheiro da embaixada espanhola em Oslo telefonou-me: "O teu embaixador vai ao aeroporto receber Mário Soares?". Caí das núvens: "Mário Soares vem a Oslo?!". Era uma reunião do "bureau" da Internacional Socialista. A nossa embaixada não tinha sido avisada. O embaixador espanhol, um conservador da velha escola, com ar altivo de "señorito", num tempo em que Adolfo Suarez chefiava o governo em Madrid, ainda não tinha decidido sobre se iria ou não acolher Filipe González. Queria saber o que íamos fazer. Disse-lhe que não sabia, mas que logo lhe diria.
Por esse tempo, em Portugal, Soares era líder da oposição ao governo da primeira Aliança Democrática, chefiada por Sá Carneiro. Eanes era presidente da República e, por coincidência, há pouco mais de uma semana, tinha efetuado uma visita de Estado à Noruega, de que a nossa minúscula embaixada ainda mal estava refeita.
Nessa embaixada, eu era o único diplomata além do embaixador, de seu nome António Cabrita Matias. Ele tinha chegado a Oslo em meados de maio, vindo da Austrália, que fora o seu primeiro posto como embaixador. Tinha sido transferido à pressa, para poder acolher a visita de Eanes, dado que o anterior titular, Fernando Reino, era, desde há uns meses, o novo chefe da Casa Civil do próprio Eanes. Eu ficara entretanto encarregado de negócios, chefiando a embaixada, durante esses meses de transição e de preparação da visita.
Cabrita Matias, era um homem pequeno, magro, sempre elegantemente vestido, com um cabelo negro puxado para trás, penteado com aparente brilhantina, naquele modelo de estética capilar que sempre identifico nas fotografias dos primeiros governantes do Estado Novo. Tinha um sorriso que era mais um esgar profissional, mas que projetava um ar de simpatia tímida, embora algo desdenhosa.
Fui avisá-lo da chegada de Soares, que era logo no dia seguinte. Os tempos políticos em Portugal estavam muito tensos, nesse ano que iria ficar bem marcado na nossa História política. Vi que Cabrita Matias hesitava claramente sobre o que deveria fazer, embora procurasse não dar isso a entender. Receber o líder da oposição, num tempo político lisboeta tão crispado, sem ter instruções expressas para tal?
António Cabrita Matias foi talvez a pessoa mais solitária que cruzei em toda a minha vida. Era solteiro, um pouco misógino, mas creio que não homossexual. Passava as férias e os Natais completamente sozinho. Gabava-se de não escrever a ninguém. Não o vi cultivar um único amigo, nem sequer na carreira, embora, no fim da vida, eu próprio o considerasse como tal. Desconfiava, à partida, de tudo e de todos, quiçá fruto de experiências desagradáveis, que nunca me revelou. Cuidava em manter a maior distância possível face a Lisboa.
Colocado em 1974 na Austrália, por seis longos anos, num tempo em que a informação circulava de outra forma, perdera contacto com o país em acelerada mudança, nesses anos após a Revolução de Abril. Não comentava a política portuguesa, embora eu o sentisse bastante conservador. As tricas partidárias em Portugal estavam, em absoluto, fora do seu radar de interesses. Desconhecia os nossos atores políticos mais comuns e tinha reais surpresas com o que eu lhe contava de um mundo lisboeta que continuava a interessar-me muito e a ele quase nada. Era completamente incapaz de me pedir o "Expresso" ou "O Jornal", que eu recebia pela mala diplomática. Comigo comentava apenas temas internacionais, onde era evidente um fascínio pela América, onde vivera tempos que deviam ter sido agradáveis. Lia o "Herald Tribune" e a "Time". Era inteligente, culto, dotado para línguas.
Cabrita Matias tinha uma vida social e diplomática formal, clássica a roçar a caricatura, mas com uma grande generosidade nos convites que fazia como embaixador, onde gastava abundantemente aquilo que o Estado lhe pagava. Parecia, contudo, ter, como grande objetivo de vida, que, simplesmente, o deixassem em paz. Na sua filosofia profissional, a embaixada devia evitar fazer-se notada pelas Necessidades. Nisso era o mais flagrante contraste com Fernando Reino, que trabalhava como se Oslo fosse o centro do mundo.
Devo confessar que não me foi fácil conviver diariamente, durante dois anos, com uma pessoa com aquele recorte idiossincrático. Contudo, com um algum esforço de adaptação da minha parte e uma crescente amabililidade do lado dele, que cedo percebeu a minha lealdade funcional, acabámos por nos dar relativamente bem. Faço este retrato para melhor se poder entender o que vou relatar.
Voltemos então a Mário Soares, que chegava no dia seguinte. Para quem não saiba, não há regras fixas a seguir, nas visitas de figuras que não ocupam funções oficiais. Cada caso é um caso e é preciso, essencialmente, ter algum bom senso e inteligência prática.
Cabrita Matias não perguntou a minha opinião sobre o que deveria fazer, mas eu dei-lha: "Se me permite que lhe diga uma coisa, acho que o senhor embaixador deve ir ao aeroporto. Trata-se de um antigo primeiro-ministro e antigo ministro dos Negócios Estrangeiros". E acrescentei um argumento que não era despiciendo, para um embaixador acabado de chegar ao país: "O governo trabalhista norueguês não deixaria de notar, se acaso não estivesse lá a receber Soares".
O que eu disse tocou-o, embora intimamente deva ter pensado que era o meu "côté socialista" (como, mais tarde, com frequência, diria, a sorrir, quando passou a ter maior confiança comigo) que induzia o conselho que eu lhe dava. Como era extremamente orgulhoso e não queria que ficasse a ideia de que tinha sido eu que o influenciara, logo acrescentou: "Decidi ir. Afinal, foi o ministro Mário Soares quem, há anos, me nomeou para Camberra como embaixador".
No dia seguinte, no aeroporto de Fornebu, à chegada de Mário Soares, que vinha acompanhado por Maria Barroso, Rui Mateus e a mulher deste, constatou-se que não cabíamos todos no mesmo carro. "A embaixada não tem outro carro?", perguntou-me Mateus, com um ar um tanto sobranceiro. "A embaixada tem apenas este carro e nem este funciona muito bem...", respondi-lhe, seco. Ele e a mulher foram de táxi, eu acomodei-me ao lado do motorista e Soares, Maria Barroso e o embaixador ocuparam o banco de trás do carro.
A conversa entre os três começou por ser de circunstância. Cabrita Matias, como vim a constatar, era um requintado especialista em platitudes. Tinha mesmo, na sua abundante biblioteca, cheia de coisas religiosas e de ciências ocultas, livros americanos com anedotas e historietas, como um meio prático para iniciar e alimentar conversas fúteis. É verdade! Era simpático e deliberadamente mimético nos seus contactos profissionais, como tática para agradar. A última coisa que lhe passava pela cabeça era tocar em temas polémicos. Fugia disso como o diabo da cruz! Imagino que tivesse descrito a paisagem e falasse da vida em Oslo, na curta viagem a caminho do hotel em que Soares se instalava e onde a reunião da Internacional Socialista iria ter lugar.
Quando, ainda durante o trajeto, o embaixador referiu, incidentalmente, a recente visita de Estado de Eanes, Soares agarrou o tema: "Sabe, senhor embaixador: a situação política em Portugal atravessa um momento de grande tensão. Eu tenho profundas divergências com o presidente Eanes e com o primeiro-ministro Sá Carneiro. E, como saberá, o primeiro-ministro tem uma muito má relação com o presidente. Dificilmente as coisas poderiam estar piores".
Com imensa curiosidade, esperei a reação de Cabrita Matias. Esperei e temi, com razão. Saiu-lhe algo parecido com isto: "Eu percebo, senhor doutor, que toda essa agitação política acabe por ser uma forma vibrante de viver o jogo democrático em Portugal. O que seria dos jornais se não fosse essa imagem de constante polémica! Mas, com certeza, há um espaço de diálogo para pacificar essas tensões. Estou certo que, em alguns dias, em finais de tarde, o senhor doutor, o dr. Sá Carneiro e o general Eanes se encontram, com cálice de cognac na mão e um bom charuto, ao calor de uma lareira, talvez no palácio de Belém, para discutirem os três, com calma, as grandes questões do país".
Eu enterrava-me no banco da frente, desgostoso por não ter um espelho retrovisor para ver a cara de Mário Soares e Maria Barroso. Aguardei, ansioso, a resposta e ela chegou, em alto e bom som, abalando o interior do velho Peugeot: "Ó senhor embaixador! Em que mundo é que o senhor vive?! Eu, o dr. Sá Carneiro e o presidente Eanes em conversa à lareira?! Era só o que faltava! Como é que pode ter uma ideia dessas? O senhor não sabe o que é Portugal nos dias de hoje!". Já não recordo o resto da cena. Entretanto chegámos ao hotel, onde os visitantes ficavam.
O hall do SAS de Oslo estava apinhado de delegados estrangeiros, ansiosos por fazer o "check-in" e, simultaneamente, inscreverem-se para a reunião socialista. Ainda olhei em volta, não fosse por ali surgirem Willy Brandt ou Filipe Gonzalez. Mas nada, ninguém conhecido. Com Soares a dar mostras de fadiga da viagem e porventura desejoso de se ver livre de nós, eu procurava apressar as formalidades. Mas o "first come, first served" da democracia nórdica impunha-se. Cabrita Matias, pela certa adepto do "à tout seigneur, tout honneur", decidiu, a certa altura, tomar a iniciativa. Vendo passar uma senhora, de cujo pescoço pendia uma identificação com o vermelho do evento, ia-a tomando quase pelo braço, com ar e tom irritado, como se de uma hospedeira da reunião se tratasse. Fui eu quem, no último instante, lhe travei o gesto, explicando: a senhora era Gro Harlem Brundtland. Dentro de escassos meses, iria ser escolhida para primeira-ministra da Noruega, como já estava nas cartas. Cabrita Matias tinha ainda pouco conhecimento da vida política local. Escapou ali, por muito pouco, a uma cena, que podia ter sido penosa, com alguém com quem um embaixador não poderia nunca ter conflitos.
Passaram entretanto dois dias. Fomos ao hotel buscar o casal Soares para os levar ao aeroporto. Mário Soares parecia ter esquecido as bizarrias do nosso embaixador. Talvez para fazer conversa, contou que, dentro de semanas, iria fazer uma visita à China, como vice-presidente da Internacional Socialista. Era a primeira vez que a organização recebia um convite dessa natureza. Soares mostrava-se curioso com essa futura experiência. No banco de trás, ouviu-se a voz do embaixador: "Vai passar por Nanquim, senhor doutor?" Soares não sabia ainda do programa. "É que se for a Nanquim, daqui a semanas, vai poder ver os mais bonitos campos de flores da China. Não devia perder isso!"
Fez-se então um silêncio na conversa. Deduzi que os campos floridos talvez não fizessem parte da hierarquia de prioridades de Mário Soares. Mas Cabrita Matias tinha um sentido social de anfitrião que não lhe permitia conviver com pausas. E, ainda antes que a viagem acabasse, lançou: "O senhor doutor Mário Soares permite que lhe dê um conselho?" Voltei a alarmar-me! Devo-me ter aconchegado ao banco, para o choque do que dali viria. Soares, com uma voz entre o tolerante e o exasperado, de quem já estava por tudo, respondeu: "Faça favor, senhor embaixador, faça favor!" E o embaixador avançou com o "conselho": "Se quer o meu conselho, não fale de política aos chineses. Refira outras coisas, use metáforas, mas não lhes coloque abertamente temas políticos. Aquilo é outra forma de estar no mundo, de olhar as coisas".
A resposta de Soares soou-me forte, na nuca: "Não lhes falo de política?! Ora essa! Não lhes vou falar eu de outra coisa. Ó senhor embaixador! Desculpe lá, mas deve guardar esses seus conselhos para outras pessoas, mas não mos dê a mim, por favor!" Não me recordo se Maria Barroso disse alguma coisa, para pôr alguma água na fervura. Só sei que estive calado. Neste entretanto, felizmente, o nosso motorista, o excelente Domingos, tinha parcado o carro em frente à porta do pequeno aeroporto de Oslo. Sair daquela conversa foi um bálsamo.
Soares regressou a Portugal. Nesse mesmo ano de 1980, meses depois, auto-suspender-se-ia conjunturalmente do cargo de secretário-geral do PS, protestando pelo apoio dado pelo partido à recandidatura de Ramalho Eanes, contra o candidato apoiado pela AD, Soares Carneiro. Em 4 de dezembro de 1980, Sá Carneiro morreu em Camarate. Eanes foi reeleito e a AD nunca mais seria a mesma.
Muitos anos depois, algures no mundo, onde nos fomos encontrando por diversas vezes, com longas e agradáveis conversas, perguntei a Mário Soares se se lembrava daquela visita a Oslo. Soares tinha uma magnífica memória, mas apenas para o que era importante. E, manifestamente, aquelas cenas nórdicas não o tinham marcado muito. Disse-me que guardava apenas na ideia ter-se cruzado, na Noruega, com um embaixador "um pouco estranho", mas nada mais. De cujo nome não se recordava. Mas acrescentou: "Lembro-me apenas que era o meu amigo que estava por lá com ele", disse-me, generoso, sem que eu acreditasse.
Tenho muitas saudades de Mário Soares.
sexta-feira, dezembro 06, 2024
Dignidade ou a falta dela
O discurso do chefe do partido da extrema-direita, no dia em que a Assembleia da República assinala o centenário de Mário Soares, teve um nível de indignidade difícil de igualar. A democracia tem uma imensa generosidade perante quantos dela se aproveitam para a amesquinhar.
Braço de ferro
Ursula von der Leyen vai assinar o Acordo UE-Mercosul sem o aval explícito dos Estados-membros, que desconhecem o texto final negociado pela Comissão. É uma usurpação de poderes, nos termos dos tratados, passando agora ao Conselho o ónus político de dizer não ao Mercosul.
quinta-feira, dezembro 05, 2024
Os dias de Macron
Turquia
A França do espetáculo
quarta-feira, dezembro 04, 2024
terça-feira, dezembro 03, 2024
Macron tien bon?
Com a queda do governo Barnier, o cenário político francês ficará mais complexo. O parlamento está "balcanizado" e falta muito tempo para Macron poder convocar novas eleições. Uma coisa parece clara: ele não renuncia. Mélenchon e Le Pen vão ter de esperar por sapatos de defunto.
A saída de Biden
À simpatia de que Biden desfrutava em meios europeus, por contraste com Trump, não correspondeu nunca uma idêntica apreciação nos EUA. Biden foi um presidente muito impopular. O gesto de perdoar os crimes do filho fê-lo perder agora alguma autoridade moral. Sai da pior forma.
A política em calão
Ao ver alguns debates sobre a crise política em França, dei-me conta de que o pessoal político da extrema-direita francesa, comparado com aquela inenarrável bancada lusa da mesma área política, confirma bem o que o Eça dizia: "Portugal é um país traduzido do francês em calão".
segunda-feira, dezembro 02, 2024
Costa e a inveja
A mesquinhez invejosa é a marca distintiva de muito "tuga". O sucesso europeu de Costa já faz roer de despeito a alma de muita gente.
Os trabalhos de António Costa
Nuclear
Recomendo a leitura deste curto artigo sobre os riscos do nuclear civil. https://www.spectator.co.uk/article/tony-blair-is-wrong-to-love-nuclear-energy/
Crime e falta de castigo
domingo, dezembro 01, 2024
Falsos
Por mais de uma vez, em redes sociais, surgiram perfis falsos com o meu nome. Há dias, foi este, no Instagram. E como nada disto é inocente, o vigarista surgiu logo a sugerir "negócios" aos meus contactos. Sabem quando é que isto terminará? Quando os autores destas trafulhices perceberem que o risco de serem apanhados é superior à possibilidade de saírem impunes. E como é que isto podia ser evitado? Com total transparência e verificação de identificação de quem usa as redes sociais, acabando-se, por exemplo, com a cobardia dos pseudónimos. Mas já percebi que isto é tabu para o mundo que por aí anda.
"The Diplomat"
Saiu há pouco na Netflix a terceira série, com oito episódios, de "The Diplomat". (Já os vi todos, claro!). Trata-se da história d...













































