Ilustração de Carlos Barradas
O presidente da República visita, a partir de hoje, a Noruega. E lembrou ontem aos jornalistas a sua primeira visita àquele país nórdico, em final de junho de 1980, como ministro das Finanças.
Também eu recordo muito bem essa visita. A embaixada portuguesa na Noruega era muito pequena, constituída pelo embaixador e por mim, com o apoio de apenas três unidades de pessoal administrativo. Cavaco Silva viajava acompanhado por uma larga delegação, justificada pela importância que então tinham as relações económicas e técnicas entre os dois países, que iam desde as questões têxteis a problemas recorrentes com a nossa frota pesqueira, passando pelas questões do Fundo EFTA e pelo comércio do bacalhau, além da importante ajuda bilateral que a Noruega dedicava então a Portugal, nomeadamente na área da saúde. Não obstante a preciosa colaboração dos noruegueses, foi difícil à nossa minúscula estrutura montar a visita, que implicava vários contactos em Oslo e uma reunião da "comissão mista" em Ålesund, um dos portos da costa oeste, onde era preparado muito do bacalhau de que Portugal era um dos grandes consumidores.
Em Ålesund, Cavaco Silva foi o principal convidado num restrito almoço privado na confortável casa de madeira do nosso cônsul honorário, um homem de fácies duro, mas uma personalidade muito agradável, com o nome de Bjørn Knudsen. Não sei se por lá existirão ainda fotografias de uma partida caseira de bilhar que testemunhei, entre o cônsul e o então ministro das Finanças português, sobre cujo resultado a minha memória nada regista.
Na véspera, no jantar oferecido pela municipalidade local, passara-se uma cena curiosa. Foi-nos servido salmão cozido. Acabado o prato, foram retirados toda a loiça e talheres. E nova loiça e novos talheres foram colocados sobre a mesa. Pensei que viria uma carne de rena, muito comum no país. Contudo, achei estranho ao verificar que eram, de novo, usados talheres de peixe. Pensei cá para comigo: "vão servir bacalhau!". Embora apresentar um segundo peixe fosse uma opção algo estranha num jantar que tinha um cariz oficial, sempre era uma oportunidade para destacar o principal produto de exportação para Portugal. Qual quê! Era apenas uma segunda rodada de salmão cozido, para estupefação de toda a delegação portuguesa, parte da qual me interrogava, sem sucesso, sobre tão bizarro pleonasmo gustativo decidido pelo protocolo autárquico local.
No último dia, no regresso a Oslo, depois de vários dias a madrugar, estávamos todos muito cansados, a começar pelo embaixador, sobre cujos ombros cairia sempre o sucesso ou o insucesso da visita. Antes da partida para o aeroporto, o embaixador ofereceu ao ministro e à dra. Maria Cavaco Silva, bem como à restante delegação, um almoço na residência da nossa embaixada, em Drammensvein.
Cavaco Silva, por feitio ou cansaço, estava pouco falador, entre o tímido e o distante. O embaixador, um homem com a técnica de alimentação social das conversas que os anos na "carreira" ensinam, lá procurou encher o ambiente, elegendo como interlocutora principal a mulher do ministro, que percebera ser uma figura mais expansiva e opinativa. Tudo, porém, sempre num registo bastante formal.
A certo ponto da refeição, foram servidas uma belas trutas. Mais como comentário de circunstância do que como manifestação de especial curiosidade, a dra. Maria Cavaco Silva inquiriu: "Costuma ter por cá trutas, senhor embaixador?". É então que ao embaixador, talvez com a prudência e a contenção fragilizadas pelo imenso cansaço que o invadia, saiu esta inopinada graça: "Não tenho estado mal servido de trutas. Logo que aqui cheguei, apareceu-me o dr. Mário Soares. Pouco tempo depois, esteve aqui a engª Lurdes Pintasilgo e, logo a seguir, o professor Freitas do Amaral. Agora, tenho cá o sr. ministro. Como vê, minha senhora, de trutas estou bem servido".
(Vale a pena assinalar, para quem o não saiba, que, numa certa geração - que era a do embaixador -, o termo "truta" era utilizado coloquialmente como sinónimo de "pessoa importante".)
A mesa gelou, com os cantos dos olhos dos presentes a tentarem analisar a reação de Cavaco Silva. Houve cinco trágicos e longuíssimos segundos de interminável silêncio, até que o professor Veiga Simão, ao tempo presidente do LNETI, soltou uma forte gargalhada, que teve o condão de provocar um "rassurant" esgar no ministro, um largo sorriso da respetiva mulher e rumores de risada nos restantes presentes. Do gelo, passámos ao alívio e, logo de seguida, às trutas.