segunda-feira, julho 19, 2010

Doinel

Quem gosta dos filmes de François Truffaut - e eu gosto imenso e julgo ter visto todos - guardou para sempre no seu imaginário a figura de Antoine Doinel, representada pelo ator Jean-Pierre Léaud. Numa inesquecível série de cinco filmes, iniciada com os "Quatre-cents coups", "Doinel" foi crescendo aos nossos olhos, a partir dos 14 anos, evoluindo num modelo que, contudo, fixou algumas linhas comportamentais comuns. Sempre agitado, com um rosto de gravidade assustada, misto de timidez e indecisão, mas capaz de rasgos atrevidos de surpresa, "Doinel" foi uma figura, em parte autobiográfica, que Truffaut utilizou, com o seu imenso génio, para nos retratar uma França em mudança acelerada de costumes.

O António Alves Martins, o MFB ("militante de fato branco") do MES de que em tempos aqui já falei, ao tempo em que era estudante de sociologia por Paris, contou-me ter ido passar férias com um grupo à Côte d'Azur, que incluía Jean-Pierre Léaud, cujos humores eram difíceis de prever e controlar, mas que podia ser divertidíssimo. Uma vez, em Nova Iorque, em 1992, fiquei numa mesa ao lado de Léaud, no "Michael's Pub", onde ambos e muita mais gente tinha ido ver Woody Allen tocar clarinete, nessas celebradas segundas-feiras. Passei a noite a tentar lembrar-me do seu nome e só me veio à memória "Antoine Doinel". Hoje, com o Google no Iphone, tudo seria mais fácil.

Jean-Pierre Léaud teve uma longa carreira no cinema francês. Para além de Truffaut foi muito utilizado por Jean-Luc Godard, tendo, ele próprio, dirigido alguns filmes. A meu ver - mas esta é uma opinião que vale o que vale - nunca foi um ator excecional e jamais ultrapassou uma aceitável mediania.  Porém, há que reconhecer nele um dos nomes emblemáticos da "Nouvelle Vague" francesa, em cuja história tem um lugar.

Há dias, numa madrugada televisiva, surgiu-me uma comédia romântica de 1996, intitulada "Pour rir!", na qual Léaud contracena com Ornela Mutti. Por uma imensa curiosidade, muito centrada na evolução artística de Léaud, vi o filme até ao fim. A opção iria revelar-se quase masoquista: tive de suportar a inenarrável prestação de Mutti. Machistamente, devo dizer que ela perdeu muitos dos atributos que, durante anos, nos faziam esquecer a sua mediocridade como atriz. Enfim, não ganhei muito para a minha cultura cinematográfica. Para o que aqui me interessa, foi quase patético ver um Léaud de 60 anos assumir os trejeitos e a "coreografia" típicos de um "Doinel" adolescente. 

Há atores que guardam uma imagem que acaba por se impor nas diferentes figuras que interpretam, por mais diversas que estas sejam. São "characters" - e isso pode ser uma coisa positiva ou tornar-se pesada e desinteressante, particularmente quando os filmes e as personagens têm de ser desenhados em função dessas suas conhecidas peculiaridades. Foi o que me pareceu, neste triste "Pour rir!",com Jean-Pierre Léaud. 

Boas férias, leitores...

domingo, julho 18, 2010

SAS

O escritor francês Gérard de Villiers revelou, numa entrevista, que acaba de regressar da Guiné-Bissau. Assim, podemos esperar que, dentro de algumas semanas, venha a surgir um romance centrado em Bissau, com uma capa em que erotismo e armas serão os fatores  indispensáveis, em que surgirão misturados política, dinheiro e mulheres, num complexo de personagens reais e de figuras fictícias, projetado num cenário de mistério e risco, em que o príncipe austríaco Marko Linge e a sua eterna noiva, a condessa Alexandra, acabarão por ultrapassar grandes perigos e maiores aventuras.

Desde há décadas, a um ritmo de três ou quatro romances anuais, a receita é idêntica. A série SAS - situada entre o policial e a espionagem -, cuja edição já conheceu melhores dias, mas que é ainda um garantido êxito de livraria (de aeroporto), acaba por ser uma espécie de roteiro turístico imaginário, centrado quase sempre em países em convulsão ou com tensões à flor da política local. Já experimentei testar diversos cenários descritos por Villiers com a realidade e, podem crer, as coisas aproximam-se muito.

Recordo-me do sucesso que, aí por 1976, fez em Portugal o seu "Les sorciers du Tage", onde se ficcionava a Revolução portuguesa, misturando figuras do MRPP e da LUAR, com ambientes lisboetas, em que cenas implausíveis se cruzavam com personagens que se aproximavam da realidade.

Neste tempo de férias, recomendo a quem puder que revisite aquele curioso romance de Gérard de Villiers.

Em tempo: hoje, por outras razões menos simpáticas, fiquei a saber melhor o que podem ser os feitiços do Tejo...

sábado, julho 17, 2010

Quai

Com variações ao longo das épocas, existe em França um certo fascínio em torno da atividade do Quai d'Orsay (o "Quai", para os iniciados), o Ministério francês dos Negócios Estrangeiros.

Esta mitificação está bem patente num album humorístico de banda desenhada, intitulado precisamente "Quai d'Orsay - chroniques diplomatiques", que está a ser um sucesso de vendas. O trabalho, que já se fala poder vir a ter uma sequência em breve, é claramente inspirado na figura do antigo ministro Dominique de Villepin, cuja memória de gestão frenética da casa se reflete no traço do desenho e no tom dos diálogos, que são da responsabilidade de um seu antigo colaborador. Não sendo uma obra excecional no género, devo reconhecer que não deixa de ser interessante reconhecer na história algumas das mais tradicionais liturgias diplomáticas, na descrição do dia-a-dia dos "Estrangeiros". 

Como seria uma visão humorística das Necessidades?

sexta-feira, julho 16, 2010

Basil Davidson (1914-2010)

Alguém dizia, há semanas, que, por vezes, é preciso alguém morrer para darmos conta de que, afinal, ainda estava vivo. É uma frase cruel, de que me lembrei ontem, ao dar de caras, num jornal, com um obituário de Basil Davidson, que pensava desaparecido há muito.

Davidson faz parte do elenco dos mais proeminentes europeus que apoiavam as lutas anti-coloniais. Historiador de grande mérito, que teve a África pré-colonial como objeto privilegiado de análise, viria a destacar-se num trabalho de divulgação internacional dos movimentos independentistas nas colónias portuguesas e na denúncia do "apartheid". Essa sua simpatia pelo anti-colonialismo levou Edward Said a dizer que "in effect, (he) crossed to the other side". Antes disso, porém, Basil Davidson teve um percurso aventuroso pelos mundos da "intelligence" britânica e uma carreira jornalística muito diversificada, em grande parte como correspondente parisiense de jornais britânicos.

Lembro-me bem do impacto que teve, nos meios oposicionistas portugueses, a publicação do seu "The Liberation of Guine", editado pela Penguin em 1969, um dos mais de 30 livros que escreveu, alguns editados em Portugal, mas só depois do 25 de abril.

Jornalismo adversativo

Portugal tem uma das mais brilhantes escolas daquilo que se pode qualificar como "jornalismo adversativo". Trata-se de um apurado estilo, que exige uma grande experiência para garantir a sua hábil utilização, que consiste em relativizar e atenuar, pela negativa, qualquer notícia através da qual possa transparecer uma ideia positiva ou otimista.

Há anos que constato que esta é, verdadeiramente, uma especialização de um certo jornalismo português, muito patente nos títulos dos jornais ou dos seus "sites" informáticos, mas igualmente presente, quase por  um peculiar imperativo deontológico doméstico, nos noticiários televisivos. Os exemplos são aos milhares, pelo que aconselho o leitor a estar atento, nos próximos dias, à eventual divulgação de qualquer estatística ou linha tendencial positiva. Logo verá que, no segundo seguinte, aparece uma frase começada por: "Porém ..." ou "Mas, contudo,..." ou "No entanto,...".

Querem exemplos? "As praias portuguesas foram consideradas das mais limpas da Europa, em 2009. Porém, neste domínio, a Itália evoluiu mais do que Portugal, nos últimos dez anos". Ou ainda: "Há menos incêndios em Portugal em Julho de 2010 do que em idêntico período de 2009, mas isso pode ter ficado a dever-se às temperaturas mais baixas".

As estatísticas económicas e sociais são "bombo da festa" deste "jornalismo". Qualquer índice positivo em Portugal aparecerá, inevitavelmente, diminuído por um outro que permita negativizá-lo ou por uma oportuna comparação ("Contudo, dentro da UE, a economia de Malta cresceu mais no mesmo período" ou "No entanto, Portugal não conseguiu chegar ao nível de recuperação de postos de trabalho obtido por Chipre").

De notar que há uma "regra de ouro" nesta escola de jornalismo: nunca se "poluem" as notícias negativas com notas positivas, como por exemplo: "Desemprego cresceu no último mês, mas a taxa do seu crescimento tem vindo a diminuir de forma sensível, o que aponta para uma recuperação". 

Era só o que faltava!, estarão a dizer os cultores do "jornalismo adversativo".

quinta-feira, julho 15, 2010

Novas Fronteiras

"Europa - Novas Fronteiras", revista do Centro Jacques Delors, a entidade portuguesa que possui a melhor base de dados sobre assuntos europeus, acaba de editar mais um número, desta vez dedicado aos 25 anos de adesão de Portugal às instituições europeias.

Contribuí para este volume com um texto sobre um tema delicado: a atitude dos diplomatas portugueses em face do projeto europeu, antes e depois do 25 de abril. Tenho a consciência que não é um texto consensual, que alguns colegas meus nele se não reverão, mas é o que eu penso. Quem o quiser ler, pode fazê-lo aqui.

quarta-feira, julho 14, 2010

"Concierges portugaises"

Invariavelmente, as referências são extremamente elogiosas: "A minha "concierge" (porteira) é portuguesa. Uma mulher seriíssima. Está no prédio há muitos anos". Ouvir coisas assim da boca de parisienses, em especial de residentes nas áreas mais ricas da cidade, é uma banalidade antiga, para qualquer embaixador português. As "concierges" portuguesas são uma imagem de marca da nossa presença em Paris e esses parisienses ricos não deixam de no-lo lembrar a todo o tempo. 

Talvez por isso, aqui há uns meses, num jantar social, decidi divertir-me um pouco, quando vizinhos de mesa voltaram a falar-me, pela enésima vez, das suas "concierges" portuguesas. Era a noite do 1º de abril, e lancei para a mesa aquilo a que os franceses chamam  um "poisson d'avril", uma "mentira de abril".

Fazendo um ar (falsamente) cansado, adiantei: "Nem me falem nas "concierges"! Não imaginam o problema orçamental que elas me criam!". Parte da mesa olhou-me, surpresa, porque não era óbvia a razão do impacto das "concierges" no orçamento do embaixador português.

Sem deixar "cair a bola", e baixando o tom de voz, esclareci: "Há um segredo que vos quero contar, embora peça a maior descrição". Com isso consegui, como é dos livros, uma atenção acrescida: "Como devem imaginar, a existência de uma imensidão de "concierges" portuguesas em muitas casas de Paris não passou desapercebida aos nossos serviços secretos. Naturalmente, eles não podiam deixar de aproveitar o potencial que representava a existência de um grupo de cidadãs nacionais colocadas em lugares tão vitais para a obtenção de informações".

A cara dos circunstantes, damas e cavalheiros da alta sociedade, alegrada pelos efeitos do lauto jantar, começou a fechar-se, aos poucos, com alguns convivas, até aí mais distraídos e distantes na mesa, a sentirem-se mobilizados para tentar seguir melhor o que eu dizia. 

"Há uns anos, consciente deste potencial, um dos meus antecessores propôs "trabalhar" essa rede em termos de obtenção de informações sobre personalidades de relevo. E, desde então, a Embaixada tem uma estrutura, com cerca de 10 pessoas, que se dedica a "debriefar" as "concierges" que se prontificaram a colaborar conosco - e muitas foram. Cabe sempre ao embaixador, claro!, separar o que é a informação com algum significado político ou económico daquela que se prende com costumes, vícios e outro "gossip". Tudo isso, posso garantir, é destruído imediatamente. Depois de eu ler, claro...".

Verifiquei ter ganho, nesses instantes, o silêncio reverencial dos meus pares, com alguns homens a emborcarem um forte golo de "armagnac" e algumas senhoras a tentarem diluir num copo de água o espanto que lhes causava esta minha surpreendente "revelação".

Alentado com a audiência, continuei: "O grande problema que tenho, como compreenderão, é que as nossas "concierges", com uma ou duas exceções, não fazem relatórios escritos, limitam-se a falar para um gravador, o que obriga a um moroso e custoso processo de transcrição. Ora isso ocupa-nos muita gente e, com as restrições orçamentais a que cada vez mais estamos sujeitos, o sistema começa a tornar-se insustentável".

Os convidados, casal anfitrião incluído, já não tugiam nem mugiam, imaginando eu que à mente lhes deveria estar a aflorar a imagem da madame Conceição ou da madame Isaura, com que sempre se cruzavam nas entradas das suas belas casas do XVIème. Para moderar o impacto financeiro da minha história, mas sempre com um ar de estudada gravidade, esclareci: "É claro que nós não pagamos nada às senhoras. Elas são voluntárias. Quando muito, às vezes, pelo Natal, mando-lhes uma garrafa de Porto. É um sistema similar àqueles que vocês, em França, fazem como os "honorables correspondants", que julgo que o vosso serviço de informações ainda utiliza pelo mundo...".

Trocas de olhares foram elucidativas da perturbação que a minha história estava a causar em alguns dos presentes. Poderia a sua "concierge portugaise" ser parte dessa rede de "intelligence", alimentada pelos embaixadores portugueses? Que saberíamos deles que não devêssemos saber? 

Deixei passar algum tempo mais antes de esclarecer, para imenso gaúdio de todos e algum visível alívio de alguns, que tudo não tinha passado de uma completa invenção da minha parte, uma mentira do 1º de abril, tão necessária a distender o ambiente nestes tempos pesados de crise.

Mas, quem sabe!, isso pode não ter impedido em absoluto que alguns desses amigos,  ao sairem de casa no dia seguinte, de atentarem melhor na cara de potencial Mata Hari da sua simpática "concierge portugaise"...

A aristocracia e a Revolução


Há uns meses, alguns portugueses residentes em Paris comentavam o facto de, não obstante a Revolução Francesa, de 1789, cuja data de 14 de julho é emblemática, ter sido muito violenta para com a aristocracia - ao lado dela, a Revolução do 5 de outubro de 1910 foi uma brincadeira -, há hoje em França muitas pessoas que usam abertamente os seus títulos nobiliárquicos - nos cartões de visita, nos convites e, em geral, na vida social. Isso acontece, aliás, muito mais do que em Portugal, onde parece haver uma maior contenção e parcimónia no seu uso.

Um feroz republicano, presente à conversa, comentou: "Pois eu conheço alguns aristocratas lusitanos que continuam bem ciosos desses seus pergaminhos, não obstante haver uma lei de 1910, ainda em vigor, que impede o uso público dessas designações". E logo acrescentou, agora para espanto de todos: "E esses meus amigos, claro!, recusam-se a andar em auto-estradas". Ninguém percebeu nada! "Não andam em auto-estradas porquê?". O nosso jacobino amigo, lá esclareceu: "Ora essa, porque eles leem 'retire o título' e não querem correr riscos"...

Hoje, ao atravessar mais de metade de Portugal em auto-estradas, várias vezes me recordei que estávamos no dia 14 de julho. 

terça-feira, julho 13, 2010

Rui Knopfli





Conheci o Rui Knopfli em Londres, em 1990. Conselheiro de imprensa da Embaixada de Portugal desde 1975, era uma figura prematuramente frágil, nos seus 58 anos de então. Vergado e cansado, pendurado num eterno cigarro, tinha o mais caótico gabinete de que tenho memória. Homem de vícios que o foram debilitando, mantinha uma ironia cáustica e, sendo de trato fácil, era de condução diária difícil, pelos corredores da rotina diplomática a que nunca se acomodara verdadeiramente. 

Eternizado em posto em Londres, aposto que olhava para nós, companheiros episódicos, saídos da "carreira", com o olho arguto do artista, estudando-nos para nos sobreviver, até que fôssemos substituídos. Várias vezes "me passei" com os seus descuidos, das tropelias do eterno cão às suas frequentes ausências, para além de algumas teimosas presenças ainda mais complicadas. Mas nunca me zanguei com ele. Ficámos amigos, creio. 

O Rui era um fotógrafo magnífico - vale a pena ver o seu livro sobre a ilha de Moçambique - e tinha um ouvido apurado e atento ao jazz, área onde me deu a conhecer algumas excelentes novidades. Da sua terra moçambicana, contava histórias interessantes e divertidas, tributárias desse mundo que sempre lhe ficou nos genes e na escrita. Como ele próprio dizia: "Ter-se nascido ou vivido em Moçambique é uma doenca incurável, uma virose latente. Mesmo para os que se sentem genuínamente portugueses mascara-se a doenca, ignora-se, ou recalca-se e acreditamo-nos curados e imunizados. A mínima exposição a determinadas circunstâncias desencadeia, porém, inevitáveis recorrências e acabamos por arder na altíssima febre de uma recidiva sem regresso nem apelo".

Rui Knopfli foi um grande poeta, português e moçambicano. A sua "Obra Poética" está publicada pela Imprensa Nacional - Casa da Moeda, com um prefácio magistral do Luis de Sousa Rebelo, há meses desaparecido. Para abrir o apetite à sua leitura, nestes tempos de férias, deixo aqui o seu delicioso (e trágico) "Justerini & Brooks":


Este punhal de veludo,
esta fria estalactite,
esta cicuta tão lenta
e que tão profundamente
fere. Esta lâmina
líquida, doirada,
este filtro parecido ao sol,
este rarefeito odor simultâneo
ao fumo, à água, à pedra.
Este adormecer antes do sono,
só preâmbulo da vigília,
que é o gélido acordar
da imaginação para
as fronteiras dormentes
do horizonte protelado.
Este trajecto subterrâneo e húmido
pelos túneis do infortúnio,
que é o adiar moroso
da morte, no prolongar
silencioso da vida,
lágrimas da noite tornadas
pranto da madrigada,
rumor débil e distante
brandindo já no sangue
o endurecer das artérias.



Rui Kopfli morreu em Lisboa, em 1997.

sábado, julho 10, 2010

Pausa (1)

Voos

A história vem hoje no Le Figaro. Um casal de italianos comprou uma viagem de sonho para a Austrália, onde iriam começar as férias pelas praias de Sydney. A aproximação, pelas janelas do avião, a um cenário de casas de madeira e motos-de-neve levou-os a comentar como eram bizarras as escalas escolhidas pela agência, para tornar o voo mais barato. Mas não, esse era mesmo o destino: Sidney, no Canadá, na província da Nova Escócia. Segundo os locais, já não será a primeira vez que um equívoco destes tem lugar.

Menos longe foi, há anos, uma conhecida figura da nossa televisão, quando noticiou a abertura do festival musical de Bayreuth, acrescentando, num daqueles comentários meio soltos e pessoais com que essas figuras às vezes nos brindam ao fechar do telejornal, que era impressionante que a capital do Líbano, se bem que em guerra civil, continuasse a insistir em manter uma vida cultural intensa...

sexta-feira, julho 09, 2010

Glienicke

Hoje de manhã, no aeroporto de Viena, russos e americanos trocaram espiões. A capital austríaca recuperou um pouco do seu histórico papel de reino das "sombras", esse mundo de charneira este-oeste que fez as delícias, a preto-e-branco, da  mitologia da "intelligence", durante a Guerra Fria, como o "Terceiro Homem" bem documentou. A triste aerogare de Schwechat terá tido, assim, um momento póstumo de glória. 

É, porém, nestes dias que convém deixar a imagem da ponte de Glienicke, entre Potsdam e Berlim, onde, quando as coisas eram verdadeiramente a sério, se trocavam os grandes espiões.

Percebe-se o "frisson" que terá acometido alguns vienenses ao verem hoje chegar, a caminho de Moscovo, Anna Chapman, "from New York, with love". Mas, sejamos justos!, nada se equipara à troca do Coronel Abel por Francis Powers, em Glienicke, naquela manhã brumosa de 1962.

Como diz um amigo meu, a propósito de alguns restaurantes, isto já não é o que era...

Rádio Clube

Um dos grandes testes ao envelhecimento parece ser a capacidade de resistir à nostalgia. Ontem falhei no teste, ao ler que o Rádio Clube Português vai fechar.

O Rádio Clube teve um papel importante na vida de quantos são dos "dias da rádio".  No meu caso, das noites. Na juventude, em Vila Real, o Rádio Clube, a par de algumas rádios estrangeiras (Radio Caroline, Radio London, Radio Andorra) e da "23ª hora" da Renascença, era uma companhia noturna regular, com os programas da madrugada, em especial o "Meia Noite" e, mais tarde, o efémero "Europa", de Vitor Espadinha, a trazerem alguma da música que fez a nossa geração. (Na província, sem FM, apenas com Onda Média, não chegávamos ao lisboeta "Em Órbita")

Em meados dos anos 60, com a ousadia dos meus 18 anos, fui-me apresentar nos seus estúdios do Porto, na rua de Ceuta, onde pedi "emprego", ao tempo em que fingia estudar Engenharia. O Alfredo Alvela abriu-me então as portas do seu "Clube da Juventude," onde realizei, durante alguns meses, o meu "Tempo de Teatro", com textos do João Guedes e um "gingle" com efeito de eco, feito no vão do elevador do prédio, numa ideia louca, creio que do Jaime Valverde. Às vezes, pela noite dentro, o Rui de Melo entregava-me a emissão do "Onda Nocturna" e eu ficava por lá a "pôr discos" e a dizer banalidades serenas, no tom que o programa exigia. Numa manhã, saído tarde do Rádio Clube com o Humberto Branco, lembro-me de um belo nascer-do-sol a atravessar as janelas do "Transmontano", que o Alvela teimava em qualificar como o único restaurante "ível" (onde se podia ir...) na noite portuense.

Depois, já em Lisboa, o Rádio Clube era, para mim, a audição regular do PBX e, depois, do "Tempo Zip", companhias noturnas indispensáveis, entremeadas pela informação da maior escola de jornalismo radiofónico do país, dirigida por Luis Filipe Costa. Só entrei nos seus estúdios de Lisboa, à Sampaio e Pina, já depois do Rádio Clube ter estado no centro do 25 de abril. Após essa data, por lá andei em várias noites de conversa, levado pelos autores do "golpe de mão" que o havia tornado no "posto de comando do Movimento das Forças Armadas", o (agora general) Costa Neves, o Santos Coelho e o João Sobral Costa.

O fim do Rádio Clube será, julgo eu, sentido por muitos portugueses. Até por alguns saudosos salazaristas, que lembrarão os tempos em que a estação, nas mãos dos irmãos Botelho Moniz, serviu de alento aos "viriatos" portugueses que lutaram ao lado dos franquistas na guerra civil espanhola.

O Rádio Clube já não vai estar "sempre no ar, sempre consigo". E tu, João Paulo Guerra, como sentes este dia?

quinta-feira, julho 08, 2010

Mundial

É muito curioso observar as preferências dos portugueses, à nossa volta, neste tempo do Mundial de futebol, em especial a partir do momento em que o nosso país dele foi afastado.

Ontem, um grupo de espetadores do Alemanha-Espanha dividia-se imenso. Nuns, o sentimento anti-espanhol, ainda identitário em algumas camadas portuguesas mais tradicionais, somava-se a algum fascínio pela (até aí) eficácia simples da equipa alemã. Noutros, ao gosto por ver perder a "grande potência" europeia juntava-se uma manifesta simpatia pelo país vizinho, com quem Portugal tinha perdido (e bem) de forma "honorable". Tudo isto de forma matizada, não excessivamente radicalizada.

O tema dos nossos afetos em relação ao estrangeiro é um domínio muito interessante. Torna-se impressionante notar o modo como os portugueses evoluíram, extraindo-se de algumas antigas posições caricaturais para um mundo de uma grande diversidade de atitudes, mobilizadas por sentimentos com uma génese bastante mais complexa. Em tudo isto, fica claro que o fim do império, a integração europeia e alguma atenuação dos confrontos ideológicos tiveram um papel decisivo.
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quarta-feira, julho 07, 2010

Jorge Fagundes (1936-2010)

À hora de almoço, chegou-me a notícia: morreu o Jorge Fagundes.

A última vez que estivemos juntos foi há quase um ano, com o seu grande amigo José Vera Jardim e o Eduardo Graça, à volta de umas cervejas, numa esplanada, numa tarde quente do fim de Julho de 2009, depois do funeral de Palma Inácio. Em Dezembro, porque tinha acabado de sair do hospital, já o não consegui "convocar" para o jantar anual do Procópio, lugar onde era visitante cada vez mais incerto, mas sempre muito saudado.

O Jorge Fagundes era um "bom gigante", uma figura amável e bem disposta, que conheci através do Nuno Brederode de Santos, com quem sempre o ouvi cruzar velhas e divertidas histórias de Campo de Ourique. Advogado de causas, defendeu presos políticos durante a ditadura, como Saldanha Sanches, Carlos Antunes ou Isabel do Carmo. Pertenceu à CDE de Lisboa, nas eleições de 1969. Após abril, veio a andar por áreas políticas bem à esquerda, tendo sido diretor do jornal "Página Um", uma publicação próxima do PRP.  Acabo de saber que também foi fundador e candidato autárquico do Bloco de Esquerda.

Sportinguista sem quaisquer limites de tolerância, foi presidente da Federação Portuguesa de Futebol, numa direção a que, se não me engano, pertenceu também Marcelo Rebelo de Sousa. Não esqueço uma chamada telefónica de solidariedade que dele recebi, num momento especial da minha vida.

Um abraço, Jorge!

terça-feira, julho 06, 2010

Clube da tolerância

Há em França uma estrutura de debate, chamada Club Vauban, que alimenta uma agenda singular. Fundado há mais de 30 anos, o clube tem como objetivo favorecer o debate entre todos quantos - de direita, do centro ou de esquerda - têm a seu cargo a preservação do interesse público. Autodefinido como uma "cooperativa de reflexão", congrega diferentes opiniões políticas e sociais, distintas referências ideológicas e convicções político-partidárias, sendo que todos os seus componentes devem ter em comum ser favoráveis à economia social de mercado e à construção europeia.

Há dois dias, o antigo PM socialista, Michel Rocard, e a antiga ministra centrista, Simone Veil, vieram a terreiro, em nome do clube, indignar-se com a onda de acusações que têm vindo a surgir contra um determinado membro do governo francês. E, no quadro desta sua reação, escreveram: "Debater é uma coisa, querer a todo o preço abater o adversário é outra. Atacar ad hominem, estafar sem descanso, denunciar sem provas, de um lado como do outro, não é uma forma de contribuir para o debate, é prejudicar a democracia, enfraquecê-la e, finalmente, debilitá-la em nome dos próprios princípios com que julgamos defendê-la. É atentar contra a dignidade da pessoa, é atacar a política e a República".

Julgo que quem, em Portugal, numa coluna ou num blogue, tivesse a ingenuidade de escrever isto, receberia uma resposta tipo "Gato Fedorento": "o que tu queres sei eu!"...

Por isso, estamos muito longe de poder ter no nosso país um Club Vauban. E, também, estamos a anos-luz do que a sua própria existência significa.

França-Portugal

A importância da comunidade de origem portuguesa em França mede-se de várias maneiras. Uma delas é a relevância na vida parlamentar francesa.

Nos "grupos de amizade" França-Portugal, no Senado e na Assembleia Nacional franceses, têm assento personalidades que, na grande maioria dos casos, representam regiões onde há um número significativo de cidadãos de origem portuguesa. Em alguns casos, além de deputados e senadores, esses mesmos eleitos são também "maires" de localidades da região.

Hoje e na passada semana, reuni, respetivamente, com os "grupos de amizade" da Assembleia e do Senado. Foram algumas horas de útil troca de impressões, em que se falou naturalmente da situação político-económica em Portugal, mas, maioritariamente, sobre problemas concretos que se ligam aos interesses dos portugueses ou luso-descendentes dessas regiões - intercâmbios municipais, ensino da língua portuguesa, reforço das relações económicas e culturais, etc

segunda-feira, julho 05, 2010

O panorama de Gulbenkian

Na passado sábado, estive em Enclos, perto de Deauville, a acompanhar o presidente da Fundação Gulbenkian, Emílio Rui Vilar, na inauguração do Parque Gulbenkian, a formalização da doação à região de um espaço natural adquirido por Calouste Gulbenkian, em 1937. Trata-se de uma mistura imaginativa de jardins, prados e bosques, um projeto que revela uma sensibilidade que talvez nos ajude a "ler" melhor a mentalidade do filantropo. A presença do Coro Gulbenkian, vindo expressamente de Lisboa, trouxe uma nota de grande beleza à cerimónia.

A certo ponto da visita, e apontando-me um panorama soberbo que Gulbenkian criara deliberadamente, como linha de harmonia entre duas alas de verde - de imensos e diferentes verdes, que nos ajudam a perceber melhor alguma pintura impressionista -, o delegado local do Ministério francês da Cultura explicou-me que esse panorama, até ao infinito onde é visível, está hoje protegido por lei, sendo insuscetível de ser palco de qualquer construção ou mesmo de um mero rearranjo arbóreo, sem autorização legal, sob pena de procedimento criminal.

"Pobre" país este, a França, cuja paisagem não pode ser beneficiada com a instalação de um qualquer barracão de zinco de cores berrantes, com a graça de uma pedreira a céu aberto ou o girassólico romantismo de uma eólica!

O jogo das palavras

Hoje, num almoço com os embaixadores da União Europeia, a ministra francesa da Economia, com muita graça e algum detalhe, explicou-nos a lógica subjacente ao neologismo que criou e que fez as primeiras páginas dos jornais de fim-de-semana: a palavra "rilance"

O conceito é uma amálgama da expressão "rigueur" com "relance", querendo com isto significar que é possível ligar a adoção de medidas de rigor orçamental com políticas de relançamento do crescimento económico, sendo que, na perspetiva da governante, e contrariamente a algumas teorias, as primeiras podem mesmo facilitar as segundas.

O jogo das palavras é um mundo fascinante. No "L'Express", Jacques Attali interroga-se sobre se, afinal, o "G 20" não será um "G vain"...

Acordo ortográfico

O "Expresso" desta semana passou já a usar as normas do novo Acordo Ortográfico.

O mesmo já acontecia com a única agência noticiosa portuguesa - a "Lusa" -, bem como com o semanário "Visão" e o jornal desportivo "Record".

Acaba, entretanto, de ser anunciado que, a partir de Janeiro de 2011, os manuais escolares irão aparecer sob a nova ortografia, embora haja um período de transição.

domingo, julho 04, 2010

Hinos e heróis

Numa concorrida audição, à porta fechada, o demissionário presidente da Federação Francesa de Futebol, acompanhado do selecionador cessante, foram convocados, na passada 4ª feira, a uma comissão parlamentar. O "compte rendu" do encontro já caiu no domínio público. Entre algumas revelações no âmbito daquilo que a teorização desportivo-mediática portuguesa qualifica, sem se rir, de "cultura de balneário", ficou-se a saber que, se o selecionador francês tivesse de excluir jogadores da equipa por não saberem cantar "La Marseillaise", ficava só com quatro (entre 23!).

Em Portugal, não sei quantos dos selecionados sabem o nosso hino. Pareceram-me alguns mais (uma evolução face a outros anos), embora ficasse claro, pelas imagens, que a concentração pré-jogos de Ronaldo se revelou sempre incompatível com o debitar oral de "A Portuguesa".

Entre o modo como Portugal e a França trataram o "problema" das suas seleções houve outras diferenças. Verdade seja que, no caso francês, teve lugar uma rebelião; no nosso caso, houve apenas flagrante incompetência tática. Mas, claro está!, entre nós ninguém se demitiu... Era só o que faltava! Então não ganhámos 7-0 à Coreia do Norte?!

"Tour de France"

Hoje, acabada que foi (e em que bizarras condições!) a primeira etapa do "Tour de France", a maior prova ciclística do mundo, aparece-me recordar uma histórica figura desta competição, uma pessoa felizmente ainda viva: Raymond Poulidor.

Confesso o meu fascínio por alguém que acabou sempre por ser derrotado na luta pela vitória final no "Tour", não tendo nunca sequer vestido a "camisola amarela", embora sendo vencedor de várias etapas. No que me toca, recordo-me de ter sido sempre um "poulidorien" ferrenho, em toda a minha juventude. Aqui em França, não deve haver nenhum seu compatriota da sua geração que o não conheça, muitas vezes pelo carinhoso "petit nom" de "Poupou".

Poulidor teve uma longa e brilhante carreira, vencendo diversas provas, entre as quais uma "Vuelta a España". No "Tour", partilhou o pelotão com figuras da estirpe de Louison Bobet, Jacques Anquetil, Eddy Merckx e Bernard Hinaut. Foi com Anquetil que a sua disputa foi mais dura, embora também nos tempos do belga Merckx tivesse estado muito próximo da vitória. Esteve oito vezes no pódio final - três vezes como 2º e cinco vezes como 3º classificado.

Vale a pena também recordar que o "nosso" Joaquim Agostinho foi 3º classificado nas edições de 1978 e 1979 do "Tour", correndo com Poulidor entre 1969 e 1976, ano em que este último disputou a prova pela derradeira vez.

Em Portugal, também tivemos uma espécie de "Poulidor": foi Jorge Corvo, um ciclista do Ginásio de Tavira, que obteve três 2ºs lugares e em 3º lugar na Volta a Portugal. Mas, deste, muito poucos se lembrarão. 

sexta-feira, julho 02, 2010

Nicole Fontaine

Nicole Fontaine é uma mulher política francesa, com grande experiência nas lides europeias. Foi ministra da Indústria, no governo Raffarin. Em 1999, protagonizou uma acesa competição com Mário Soares, ganhando-lhe na disputa pela presidência do Parlamento Europeu. O modo atípico como as coisas então se passaram prenunciava um futuro complexo para o seu relacionamento com Portugal. Recordo-me de a ter visitado, no seu gabinete de Estrasburgo, poucos dias depois da sua entrada em funções. Portugal seria o primeiro país a ser visitado por Nicole Fontaine. O seu entendimento conosco foi sempre impecável.

Na passada sexta-feira, fui um dos seus convidados pessoais na cerimónia em que a ministra da Economia, Christine Lagarde, lhe fez entrega de uma alta condecoração francesa. Fiquei satisfeito ao ouvi-la testemunhar o grande apreço que mantém pelo nosso país.

LusoJornal

Há dias tristes. Este é um deles. O LusoJornal, uma aventura de comunicação social independente, titulada pelo jornalista Carlos Pereira, acaba de chegar ao seu fim, por decisão judicial.

O LusoJornal fazia já parte do panorama dos locais portugueses em França, onde era distribuído gratuitamente. Com uma expansão nacional bastante forte, que garantia a sua auto-sustentação, acabou por sofrer o impacto indireto de outro tipo de problemas que afetaram a empresa sua proprietária.

Com o fim do LusoJornal perde-se um importante espaço de apresentação da vida associativa e cultural portuguesa em França. Não tenho a menor dúvida em afirmar que a comunidade portuguesa e luso-descendente fica mais pobre sem o LusoJornal.

Neste dia triste, aqui deixo um abraço de solidariedade ao Carlos Pereira.

Os diplomatas

Não diria que somos uma profissão de mal-amados, mas vivemos frequentemente presos a uma caricatura difícil de descolar da nossa pele. Nós, os diplomatas, estamos muito habituados a que nos tracem um rosto de vacuidade, a que colem a nossa existência a um dia-a-dia fútil, a que alguns se interroguem em público sobre a real valia dos gastos do erário que sustentam a nossa ação. No que me toca, e com o tempo, passei a preocupar-me muito pouco com isso e a cuidar muito mais em estar de bem comigo mesmo, em termos da contribuição que dou ao serviço público que escolhi como destino de vida.

Não deixa, contudo, de ser gratificante quando observamos que alguém reflete, de forma positiva, sobre esta profissão que escolhemos e que nos escolheu para ocupar alguns lugares em que representamos Portugal, quando vemos o nosso trabalho e as dificuldades em que por vezes ele se processa destacados por uma jornalista que tem andado por esse mundo a olhar o que fazemos.

Foi esse o caso, ontem, de Maria João Avillez, na sua coluna "Dia sim, dia não", na revista ´"Sábado". Obrigado, Maria João.

quinta-feira, julho 01, 2010

Vivo

Um dia, quando for contada a história da presença portuguesa na economia brasileira, o caso da Portugal Telecom (PT), e da sua parceria com a Telefónica de Espanha, na empresa Vivo, líder do mercado de telefones portáteis, fará parte de um capítulo principal. É uma história complexa, como o são todas as sagas em que o dinheiro está no posto de comando das decisões. É uma história de ambições, de rivalidades e de estratégias cruzadas. É também uma história através da qual o Brasil talvez venha a perceber, finalmente, que perdeu a hipótese de se colocar, com a PT, na liderança de um grande projeto no quadro da lusofonia, com a África incluída. Uma história que, repito, há-de ser bem contada. Um dia.

Da pequena história dessa história faz parte a Assembleia Geral da PT, ontem, onde o Estado português, através da sua "golden share", rejeitou a proposta de compra da parte que a PT tem dentro da Vivo, numa demonstração de grande coerência com a linha que sempre seguiu, no sentido de manter a PT como um instrumento de afirmação empresarial estratégica à escala global. O voto do restante capital dito nacional foi também imensamente coerente: com o lucro. 

Espanha europeia

Terminou ontem a presidência espanhola da União Europeia, no primeiro semestre de 2010. Tratou-se de um exercício da maior complexidade, porque teve lugar num dos períodos mais turbulentos da vida comunitária. Não cabe aqui fazer o balanço desta presidência, mas é importante referi-la como de grande empenhamento e dedicação à causa europeia.

Esta presidência coincidiu com a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, o mesmo é dizer, com a afirmação pública das novas figuras que, por virtude desse tratado, ingressaram no firmamento europeu: o presidente fixo do Conselho Europeu e a Alta-Representante para a acção externa. Acomodar o papel da presidência rotativa com essas novas titularidades não deve ter sido tarefa fácil. Como não foi fácil deixar estabelecidas, com os equilíbrios possíveis, as bases do futuro Serviço Europeu de Ação Externa.

Para além destas mudanças institucionais, importa notar que, no período da presidência espanhola, ocorreu a maior crise de que há memória nas finanças europeias, com alguns países da UE (entre os quais a própria Espanha) a sofrerem uma pressão inusitado dos mercados mundiais. A tendência registada para uma gestão intergovernamental desta crise não deixou de afetar a própria imagem da União Europeia, enquando sede de decisões tomadas na observância de certas regras.   

Por estas e por outras razões, a muitas das quais foi alheia, a Espanha não pôde levar à prática todo o seu excelente programa de trabalho e, em muitos casos, foi obrigada a jogar com a conjuntura e a adaptar-se a ela. Fê-lo com a qualidade a que sempre, no passado, a excelente diplomacia espanhola nos habituou na Europa. Nesta hora da despedida da sua presidência, creio que é de elementar justiça deixar uma menção de grande simpatia à Espanha pelo modo como, sob ventos e marés, conseguiu desenvolver estes seus muito difíceis meses de trabalho europeu. Foi patente o modo como Madrid tentou ser fiel a alguns princípios essenciais, sem os quais o próprio projecto europeu, a que, com Portugal, aderiu precisamente há um quarto de século, deixa de ter algum sentido.

Claques

Ontem à noite, o entusiasmo quase excessivo de alguns espectadores num teatro parisiense trouxe-me à memória os tempos (que julgo terão terminado) dos "bilhetes de claque". Foi por meados dos anos 60, em Lisboa, que fui confrontado, pela primeira vez, com a possibilidade de adquirir bilhetes para algumas peças de teatro a preços muito reduzidos, apenas com a obrigação de bater palmas em determinados momentos do espetáculo. A bolsa de um estudante era o que era e, por essa razão, havia que recorrer a tais expedientes.

Recordo-me bem de um personagem rotundo, de cabelo oleado, que parava no hall da estação do Rossio e junto de quem, ao final da tarde, se ia inquirir se havia "bilhetes de claque" disponíveis. A conversa era sempre um curioso equilíbro de oferta-e-procura, dependendo do êxito relativo das peças: "Para a primeira sessão do Maria Vitória, isto hoje está mau. Posso arranjar um bilhete, mas sai caro. Mais em conta, tenho para a segunda sessão. Já para o Capitólio e para o Variedades, a coisa é mais fácil...". Estou "a ver" a cena: o tal cavalheiro trazia os escassos e requestados bilhetes enrolados de forma ondulada entre os dedos da mão esquerda, "folheando" discretamente os lugares disponíveis com a mão direita. Os preços eram altamente discricionários e, julgo eu, definidos à medida da nossa presumida disponibilidade financeira.

No teatro, encostado a uma das paredes laterais da plateia, ficava o "claqueiro", personagem que arrancava com "surtos" de palmas que os possuidores de "bilhetes de claque" (4 ou 5 por sessão), estrategicamente espalhados pela sala, muitas vezes em ótimos lugares, eram obrigados a seguir. No intervalo, se acaso o "claqueiro" não estivesse contente com o "entusiasmo" demonstrado pelos possuidores desses bilhetes, vinha "tirar satisfações", implicitamente ameaçando com uma saída da sala.

Uma noite, no Villaret (olá Raul!), com a casa desoladamente quase deserta, recordo-me da cena patética que fiz, com outros anónimos possuidores de "bilhetes de claque", "puxando" por uma peça que era um flagrante fracasso de audiências. Quando o nosso simultâneo "entusiasmo" ressoava pela sala, os restantes espetadores olhavam para nós, entre o espantado e o divertido - porque alguns deviam suspeitar da origem das nossas entradas. Julgo que terá sido nessa noite que decidi não comprar mais "bilhetes de claque". Hoje em dia, só faço essas figuras em peças de amigos... 

quarta-feira, junho 30, 2010

Rohmer e Godard

Clermont-Ferrand é uma terra que já me trazia à memória a "nouvelle vague" do cinema francês, porque foi a cidade onde Eric Rohmer filmou o mítico "Ma nuit chez Maud". Agora, ao ter sido recebido pelo "maire" se chama Godard (embora Serge e não Jean-Luc), esta memória adensa-se.

No passado sábado, estive em Clermont-Ferrand para inaugurar a nova sede de uma associação portuguesa, que este ano comemora impressionantes três décadas de existência. Um fantástica festa de S. João, com milhares de visitantes, provou bem a vitalidade e a integração dos muitos portugueses que vivem na terra de Pascal e capital da Michelin.

terça-feira, junho 29, 2010

Paulo Jorge (1929-2010)

Com a morte de Paulo Jorge, antigo ministro das Relações Exteriores de Angola, morre também um certo MPLA.

Uma noite, numa conversa em Luanda, nos anos 80, em casa do Fernando Valpaços, Paulo Jorge contou-me uma história que nunca mais esqueci, porque tem um significado interessante.

Eram passadas poucas semanas após o 25 de abril de 1974 e uma delegação do MPLA, chefiada pelo próprio Paulo Jorge, chegou a um certo país do norte de África, para uma visita oficial. A delegação desceu do avião e, para grande surpresa dos seus integrantes, ninguém parecia aguardá-los. Dirigiram-se para a sala de desembarque e aí esperaram. Alguns minutos depois, foram hesitantemente aproximados por umas pessoas que inquiriram se aquele grupo não seria, por caso, a delegação angolana. Paulo Jorge e os seus companheiros confirmaram que sim, para evidente alívio daqueles que eram, afinal, os seus anfitriões. Na realidade, eram as mesmas pessoas que eles já haviam visto ao fundo da escada, à saída do avião, mas que, nesse momento, não tinham feito qualquer gesto de aproximação. Os anfitriões explicaram, um pouco embaraçados: é que não estavam à espera que a delegação do MPLA fosse constituída só por brancos...

Outros tempos. 

Espiões

"Old habits die hard". A notícia de que 10 alegados espiões russos foram detidos nos Estados Unidos, onde estariam a ser infiltrados, pode levar alguns a imaginar um retorno aos tempos da Guerra Fria, um mundo que pensavam já terminado. O mais curioso é que isto se passa quase simultaneamente com o dia em que os presidentes Obama e Medvedev trocaram abraços de cumplicidade e reiteraram o aprofundamento da amizade russo-americana.

A verdade é que o tempo dos serviços de "intelligence" está longe de ter acabado. Eles andam por aí travestidos em outros modelos, mesmo entre países mais ou menos amigos, mas com uma ação agora mais vocacionada para as temáticas económicas e tecnológicas. Este é um jogo eterno de sombras que sempre existiu e há-de continuar a existir, porque é da natureza dos Estados tentar saber um pouco mais para além do que é público, por forma a dar o melhor alimento informativo para suporte das decisões oficiais e mesmo privadas, desde que consideradas de importância estratrégica para a preservação ou promoção dos seus interesses.

Às vezes, continua a ser feita alguma confusão entre o trabalho diplomático e o dos serviços de informações, em especial quando se atua em países não democráticos, em que o acesso à informação é mais complexo. Não nego que, nessas circunstâncias, pode surgir uma "zona cinzenta" entre esses dois mundos, mas é de elementar prudência que os profissionais da diplomacia sejam habilitados com um código claro de instruções que lhe evite o risco de passarem a perigosa "red line" entre o modo legítimo de coletar informação e a tentação de a obterem por meios menos curiais.

Espanha-Portugal

Segundo a TF1, num comentário, prevendo o jogo de hoje: "Des cousins qui ne se font pas de cadeaux"...

segunda-feira, junho 28, 2010

Emigrar para Portugal

"E o seu filho, não quer emigrar para Portugal?". A pergunta do antigo presidente Jorge Sampaio deixou sem resposta o senhor Fartaria, que olhou de soslaio o seu filho Isidore, naquela noite em Clermont-Ferrand, aqui há uns anos. A conversa acabou por ter um desfecho feliz.

Isidore Fartaria não "emigrou" para Portugal, mas a sugestão do antigo chefe de Estado acabou por suscitar o seu interesse e levou-o a procurar oportunidades de negócio no seu país de nascimento, de onde saíra com 16 anos, que pudessem dar sequência às inúmeras atividades empresariais em que, entretanto, a família já se envolvera, com sucesso, em França. Como resultado dessa visita e do entusiasmo suscitado para investir no país onde nasceu, o antigo canalizador Isidore Fartaria viria a construiu uma unidade fabril na Marinha Grande, a exemplo das que hoje mantém em Espanha e na ilha da Reunião, complementando assim, desse modo, a sua já diversificada presença empresarial em França.

Há semanas, o presidente da República portuguesa, Aníbal Cavaco Silva, atribuiu a Isidore Fartaria o prémio COTEC Portugal - Associação Empresarial para a Inovação. No passado sábado, tive o gosto de o conhecer pessoalmente em Clermont-Ferrand, onde hoje é uma figura proeminente e muito prestigiada da comunidade de origem portuguesa.

domingo, junho 27, 2010

Pierre Grosser

Pierre Grosser é, nos dias de hoje, uma personalidade muito respeitada no mundo da investigação histórica francesa sobre temas de política internacional, área em que a França, quase sempre muito "auto-centrada" na sua própria história, não tem muitos especialistas. Grosser é um deles e, na passada quinta-feira, tive um grande gosto em conhecê-lo pessoalmente, na sede da UNESCO, no dia em que recebeu o Prix des Ambassadeurs. A obra que valeu este prémio já foi destacada neste blogue - "1989 - l'année où le monde a basculé" - e é dedicada a esse ano-charneira em que a queda do Muro de Berlim correspondeu à queda de muitas ilusões e ao nascimento de outras tantas.

O Prix des Ambassadeurs é um galardão anual atribuído a uma obra de história política,  escolhida por um júri, constituído por  um grupo de vinte embaixadores, selecionados sob a égide da Académie Française, para o qual tive o gosto de ser convidado após a minha chegada e de que tenho grande honra de fazer parte. Foi criado em 1948 e já distinguiu obras de figuras da craveira de Saint-Exupéry, Simone Weil, Raymond Aron, André Maurois e Henry Troyat, entre muito outros.

Foi curioso ouvir Pierre Grosser, com um papel determinante na Escola Diplomática do "Quai d'Orsay", sublinhar a sua fidelidade ao trabalho de uma grande figura do pensamento conservador, como é o caso de Raymond Aron - a quem os acontecimentos de 1989 seguramente muito diriam, se acaso não tivesse desaparecido em 1983. Igualmente notei que Grosser increve afirmadamente o seu nome numa linhagem de estudos de história onde estão nomes como Jean-Baptiste Duroselle ou Pierre Milza, que muito ajudaram a minha geração diplomática a melhor compreender o mundo.

Não escondo que me agrada muito ficar ligado, nesta minha passagem por Paris, a uma iniciativa de destaque sobre uma dimensão relevante da vida intelectual francesa. 

sábado, junho 26, 2010

Brasil - Portugal

O título deste post não tem nada a ver com o jogo disputado na sexta-feira entre Portugal e o Brasil. Refere-se apenas ao modo como as relações bilaterais são tratadas nas memórias do meu amigo Luiz Filipe Lampreia, antigo embaixador do Brasil em Lisboa e ministro das Relações Exteriores do seu país.

No "O Brasil e os Ventos do Mundo", livro que acaba de sair e que já estou a acabar de ler, aprende-se muito sobre o modo como a potência da América Latina olha as relações internacionais e, em especial, aquelas que são mais relevantes para o seu bem merecido processo de afirmação à escala global. Nesse olhar, há um espaço para a relação com Portugal, que deve ser lido na exata medida da importância que esta tem para a política externa brasileira. 

Anoto duas referências.

Na primeira, Lampreia lembra a crise dos dentistas - uma temática sensível. que deixou algumas feridas na memória pública brasileira. A perspetiva do então embaixador brasileiro em Portugal não valoriza suficientemente, a meu ver, um conjunto de fatores importantes na ordem interna portuguesa que condicionaram então a nossa atitude. Tenho esperanças que, da nossa parte, venha a aparecer ainda a público uma leitura deste caso, que possa "dialogar" eficazmente com a visão de Luiz Filipe Lampreia.

A segunda referência, no contexto da densificação das relações político-económicas bilaterais nos anos 90, prende-se com a CPLP. Registo o que diz: "Essa instituição vem prestando bons serviços à aproximação entre os países que partilham a língua portuguesa, ainda que seu escopo seja limitado e que no Brasil não exista nenhum entusiasmo com a instituição. Na alfândega em Lisboa, por exemplo, existe uma fila especial para os portadores de passaporte da CPLP".

O memorialismo diplomático brasileiro, ao contrário dos escassos trabalhos entre nós publicados, é imenso e tem uma grande importância para a fixação da história contemporânea das relações externas do Brasil.

sexta-feira, junho 25, 2010

"Notas Verbais"

A "nota verbal" é a forma de comunicação mais corrente entre os serviços diplomáticos. Tem esse nome porque, no passado, a entrega de um texto consagrava aquilo que fora dito num contacto pessoal.

Fez ontem precisamente sete anos, surgiu, na blogosfera portuguesa, o "Notas Verbais", um blogue dedicado à política externa e à diplomacia. O nome logo despertou  imensa curiosidade nos corredores das Necessidades, bem como nas suas antenas exteriores. O blogue trazia comentários e notícias sobre a atividade do Ministério dos Negócios Estrangeiros, muitas vezes incisivos, outras vezes neutrais ou meramente informativos.

Ao final de uns tempos de dúvida, o seu autor revelou-se: era Carlos Albino, um jornalista que (creio) iniciou a sua carreira no "República" e que viria, mais tarde, a ser responsável por uma secção de acompanhamento da vida diplomática no "Diário de Notícias". Como dado pessoal curioso, lembro que Carlos Albino teve um relevante papel no processo de transmissão da "senha" radiofónica que lançou o 25 de Abril.

Esta minha nota - que é escrita e não "verbal" - destina-se a destacar que, com intermitências (algumas bem longas), Carlos Albino mantém, com determinação, aquele que é talvez um dos mais antigos blogues portugueses. E que é um espaço opinativo que muito de nós, profisionais da diplomacia, visitamos, com maior ou menor regularidade.

Como é da natureza destas coisas, e que também diz bem da independência do autor, não foram (nem são) raras as vezes em que a minha leitura de algumas das questões que o blogue aborda diferiu, às vezes de forma muito contrastante, com a que era sustentada por Carlos Albino. Em alguns desses casos, porque estavam em causa pessoas que muito respeito ou posições com que eu discordava abertamente, entendi ser minha obrigação dizer-lho por escrito, com toda a frontalidade. Carlos Albino sempre teve a simpatia de acolher, sem acrimónia, essas minhas críticas ou divergências - e, como ele bem sabe. algumas mantêm-se ainda hoje...

Souto Moura

Os franceses ficam sempre encantados quando ouvem uma certa geração portuguesa expressar-se bem na sua língua. Embora lamentando muito, costumo acabar-lhes cedo com as ilusões, informando-os que, com algumas exceções, somos, em Portugal, uma "raça em extinção".

Ontem, ao ouvir Eduardo Souto Moura ler um belo texto num excelente francês - no qual assumiu a inspiração da sua obra na de Mies van der Rohe -, foi muito curioso ver o público presente na sessão anual da Académie de l'Architecture, aqui em Paris, prolongar essa ilusão de que Portugal permanece como sólido pilar do proselitismo linguístico da língua francesa. Não é verdade, infelizmente.

Souto Moura esteve em França para receber um prémio pela sua obra, dado pelos seus pares franceses, consagrando assim um reconhecimento internacional da arquitetura portuguesa que a todos nos honra.

quinta-feira, junho 24, 2010

Carta ao Mathis

Olá, Mathis

Soube há pouco, por um jornal, que não te deixaram entrar na escola, aqui em França, porque levavas vestida a camisola da seleção portuguesa. Os teus pais, ao que parece, ficaram aborrecidos com isso.

Queria dizer-te que não deves ficar preocupado com o que aconteceu. Pelos vistos, o objetivo da direção da tua escola foi evitar a possibilidade de outros meninos, de várias nacionalidades - a começar pelos franceses -, poderem meter-se contigo e criar alguma confusão. Se calhar, na tua escola, há meninos da Coreia do Norte...

É muito bom que tenhas sentido orgulho em usar a nossa camisola. A França é o país onde vives mas, como se viu, Portugal é o país que trazes no teu coração. É aqui que, provavelmente, irás fazer a tua vida, no futuro, mas isso não te torna menos português. A França é uma terra onde há muita gente que veio de outros países, como de Portugal, à procura de oportunidades para trabalhar. A França deu-lhes essa possibilidade e os portugueses retribuíram com o seu esforço, com a sua seriedade e a sua honestidade, para a riqueza da sociedade francesa. E aqui estão, também em sua casa. Ninguém deve nada a ninguém. E tu és a melhor prova do sucesso da integração dos portugueses em França, com a tua mãe francesa e o teu pai luso-descendente.

Os portugueses que aqui vivem devem ser sempre leais para com a França que os acolhe, da mesma maneira que a França tem de aceitar que tu, tal como os outros meninos que se sintam ligados a Portugal, possam mostrar isso, nas ruas ou nas camisolas. Pode discutir-se se a escola é o lugar mais indicado para andar com as camisolas da nossa seleção, mas, aos teus amigos de cá, deves lembrar que foi a Revolução Francesa, aquela que está na bela "La Marseillaise", que ensinou o mundo a lutar pela liberdade, a defender a igualdade entre todos e a demonstrar a nossa fraternidade perante os outros.

Para ti, caro Mathis, quero deixar-te um abraço bem lusitano e um convite para, um destes dias, vires, com os teus pais, visitar a Embaixada. E também espero que, qualquer que seja o resultado que a seleção portuguesa venha a ter no Mundial, tragas vestida a camisola das quinas. É que nós, os portugueses, temos por tradição ser muito orgulhosos do nosso país, tanto nos bons como nos maus momentos.

Francisco Seixas da Costa

Em tempo: leiam também o que o Tintin no Tibete escreveu. E vejam e ouçam a história, contada com fluência pelo próprio Mathis, aqui.

"Trivia"

Este post é dedicado a um amigo, que às vezes julgo que aparece anonimamente pelos comentários deste blogue, o qual, tal como eu, é dado ao domínio do misterioso significado de algumas palavras e expressões, comigo trocando livros, de há muito, sobre esse fascinante tema. 

Há umas semanas, uma importante personalidade política portuguesa, que viajava ao meu lado num automóvel, pelas margens do Sena, perguntou-me: "De onde é que vem o nome dos 'bateaux-mouches'?

Apanhado de surpresa - mas com a obrigação inerente a um diplomata em posto, que deve ter resposta pronta para tudo - respondi, com a imparável segurança dos que têm inconfessáveis dúvidas, que me parecia que a designação dada aos barcos que andam pelo Sena, cheios de turistas, derivava da suas grandes janelas de vidro, que se assemelhavam aos grandes olhos das moscas. Não fazia ideia de onde me tinha vindo essa súbita "sapiência", mas tinha-a na cabeça e preferi-a à versão, que ouvira ainda há pouco tempo, de que o nome derivava das vagas de moscas que, no Verão, pululavam pelo rio, atormentando os passageiros desses barcos.

Ontem à noite, estava a jantar numa "péniche", uma dessas embarações que estão ancoradas aos cais nas margens do Sena, onde vive um amigo meu de bom gosto e, ao ver passar um "bateau-mouche", suscitei a minha dúvida. E logo um conviva, mais sábio, me explicou: o nome é já do século XIX e deriva da antiga zona de la Mouche, em Gerland, a sul de Lyon, onde se situava um estaleiro em que os primeiros barcos (que viriam a ser utilizados para transporte de carga e passageiros no Sena) foram construídos.

"Voilà"! Às vezes, as coisas são bem mais simples do que pensamos.

quarta-feira, junho 23, 2010

"Bleus"

A propósito da episódica greve ao treino (e da mais prolongada "greve" aos bons resultados) da seleção de futebol de França, um amigo conservador deu-me ontem uma interpretação bem-humorada: "A França é conhecida, em todo o mundo, por ser um país de grevistas. Para estar à altura dessa tradição, só faltava sermos capazes de organizar uma greve de milionários. Agora já conseguimos!"

terça-feira, junho 22, 2010

Aristides Sousa Mendes

Gostava de ter tido ontem comigo, na Embaixada, aqueles que, em Portugal, insistem em não prestar tributo ao gesto do antigo cônsul em Bordéus, Aristides Sousa Mendes, que, nessa qualidade, emitiu alguns milhares de vistos, desobedecendo às ordens recebidas

Gostava de ver essas pessoas confrontadas com a emoção que observei nos olhos de uma cidadã judia, hoje americana, que nesses dias trágicos de Junho de 1940, esteve nas filas do nosso Consulado em Bordéus, entre muitos milhares de refugiados, e que ontem me contou pessoalmente como aí pôde obter um visto gratuito para entrar em Portugal, e daí partir para a liberdade.

Gostava de os ver fazer entender a essa senhora, olhos nos olhos, que Aristides Sousa Mendes não deveria ter emitido o visto que lhe salvou a vida e deveria, com exemplar zelo burocrático, ter seguido as determinações na Circular nº 14. de 11 de Novembro de 1939, segundo as quais "os cônsules de carreira não poderão conceder vistos consulares sem prévia consulta ao Ministério dos Negócios Estrangeiros (...) aos judeus expulsos dos países da sua nacionalidade ou daqueles de onde provêm".

Gostava.

Coreia do Norte

Muito provavelmente, o meu sentimento patriótico não está, em matéria futebolística, à altura das circunstâncias. Ontem, ao assistir ao descalabro da equipa da Coreia do Norte perante a seleção portuguesa, e embora sabendo que um resultado folgado dava a Portugal uma margem de segurança importante para o apuramento para os oitavos de final, tive um insuperável sentimento de pena por aquele quase anónimo conjunto de jogadores, servido por um guarda-redes digno de um confronto entre-solteiros-e-casados. Para essa atitude contribuiu também o facto - provavelmente, pouco notado por muitos - de que os coreanos, em especial durante a primeira parte, praticamente não cometeram uma única falta, executaram um jogo disciplinarmente irrepreensível.

É que me recordei que, em 1966, no regresso a casa, depois da derrota por 5-3 contra Portugal, e não obstante terem então chegado bem mais longe na competição, os membros da equipa coreana e as suas famílias, segundo reza a história, acabaram por ter alguns problemas no seu país. Infelizmente, com o tempo, os tempos não mudaram muito para os lados de Pyongyang. Ontem, ao ver o resultado avançar para um registo de humilhação nacional, neste que foi o primeiro jogo de futebol transmitido em direto, desde sempre, pela televisão norte-coreana (!), não pude deixar de temer que agora possa acontecer coisa idêntica. A vida ensina-nos que, não raramente, a alegria de uns arrasta a tragédia de outros.

As mulheres e a diplomacia

Há semanas, ao entrar na sala onde ia falar aos novos "adidos de Embaixada" - a categoria de entrada na "carreira" -, não pude deixar de fazer um comentário de alguma surpresa pela circunstância de, entre os presentes, haver muito poucas mulheres. De facto, estava convencido de que, nos últimos anos, havia um progressivo reequilíbrio de género dentro da diplomacia portuguesa, correspondente, aliás, ao maior sucesso académico das mulheres na sociedade portuguesa atual. Pelos vistos, enganei-me.

Fiz parte do primeiro concurso de entrada de diplomatas para o Ministério dos Negócios Estrangeiros ao qual as mulheres portuguesas foram admitidas. Não por acaso, foi o primeiro realizado após o 25 de abril. Para quem não saiba - e para especial benefício de quantos por aí louvam ainda a bondade de hábitos da ditadura -, convém deixar claro que, até essa data, as senhoras não eram admitidas na diplomacia. Ou melhor, algumas senhoras andavam pelo MNE e pelos postos no exterior, mas apenas em lugares de secretárias, dactilógrafas, funcionárias administrativas e, em muitos escassos casos, como técnicas. Foi nesse concurso de 1975, de cujo júri fazia parte um jovem professor de Económicas chamado Aníbal Cavaco Silva, que foram admitidas as primeiras diplomatas mulheres, graças a uma anterior mudança no regulamento de admissão, da responsabilidade do ministro dos Negócios Estrangeiros Mário Soares.

Várias diplomatas assumem hoje importantes funções dentro do MNE ou em postos no exterior, nomeadamente em chefia de Embaixadas. Impõe-se que, no futuro, isso aconteça cada vez mais, porque se torna importante que a carreira diplomática portuguesa seja um espelho verdadeiro da própria sociedade portuguesa.

domingo, junho 20, 2010

Os sapatos

Seria possível? Seria a mesma loja? Erick olhava deliciado para o pequeno espaço que acomodava o sapateiro, naquela estreita rua da cidade perdida na Bretanha de onde saíra, à pressa, numa tarde de 1939, quando os alemães, que já haviam ocupado a sua Bélgica natal, avançavam pela França dentro.

Erick era então professor na cidade bretã. As suas origens judaicas haviam-lhe recomendado que procurasse sair de França, tão rapidamente quanto possível. Procurou a fronteira espanhola e, com a ajuda de amigos, conseguiu, algumas semanas mais tarde, chegar aos Estados Unidos. Por aí ficou a viver. Só no final dos anos 50 decidira voltar à Europa, à sua Antuérpia, já como turista. A curiosidade e a memória levou-o também a revisitar aquela pequena terreola da Bretanha, que ficara para sempre ligada a um momento complexo da sua vida.

Agora, perante essa pequena loja do sapateiro, uma recordação, que o acompanhara todos esses anos, mostrava-se bem viva: deixara aí uns sapatos para consertar e, na pressa da fuga, nunca os levantara. Quase vinte anos passados, uma imensa curiosidade fê-lo entrar.

A cara do velhote que o olhou, do fundo da loja, não lhe dizia nada. Mas não resistiu a perguntar se, por acaso, já estava por lá há duas décadas. O homem confirmou: era dono da loja desde sempre. Erick contou então a história dos sapatos que deixara para compor e que nunca tivera ensejo de levantar. O sapateiro olhava-o, com uma curiosidade que, contudo, não acompanhava a emoção de Erick. Não se recordava do episódio, naturalmente. Mas, a certo ponto, inquiriu: "que tipo de sapatos eram?". Erick lembrava-se, porque essa imagem ficara-lhe para sempre: "Eram castanhos, com um desenho levemente ondulado na zona lateral".

Abriu os olhos de espanto quando viu o sapateiro, sem uma palavra, dirigir-se para uma arrecadação interior, de onde saíram então uns ruídos de caixas a serem movidas. Até que a voz do sapateiro, lá de dentro, inquiriu: "Eram de cordões ou de pala?". "De cordões", respondeu Erick, cada vez mais perplexo com o jogo que se desenhava. E o sapateiro, ainda de dentro da arrecadação, voltou a perguntar: "Era uma sola descosida no sapato do pé direito?".

Erick não queria crer no que ouvia. Era isso mesmo! O homem descobrira os seus sapatos! Mas, rapidamente, uma núvem de desilusão lhe passou pelo olhar quando viu o sapateiro sair da arrecadação, sem nada nas mãos. O homem olhou-o com um rosto neutro, profissional, e esclareceu: "Estão prontos amanhã. Pode vir buscá-los da parte da tarde".

Não garanto, claro, a veracidade desta história. Contou-ma o meu velho amigo Frederico Amaral Neves, mais ou menos assim, ontem, ao final da noite, na pastelaria Gomes quase deserta, numa Vila Real em tempo de corridas de automóveis. Achei que merecia um lugar neste blogue.

Entrevista à revista "Must"

Aque horas se costuma levantar?  Em regra, tarde. Desde que saí da função pública, recusei todos os convites para atividades “from-nine-to-f...