Foi no domingo, num fim de tarde alentejano, com o sol a declinar sobre o mar, como esta imagem (medíocre) atesta. De súbito, olhando a paisagem, perguntei a quem ia ao meu lado: "Isto não te lembra nada?". A resposta foi "Luanda".
Em rigor, não era bem Luanda, era a estrada que saía de Luanda para sul, passada a Samba e a Corimba, o Costa do Sol, a misteriosa zona presidencial do Futungo, a caminho do Quilómetro Dezassete, onde uns "camaradas" procediam "ao reconhecimento das viaturas", antes de entrarmos no longo percurso até à barra do Quanza. Depois de novo controlo na ponte - "já há kwachas por aqui!", dizia-se, nos últimos anos -, seguia-se pela reserva da Quissama até a um ponto alto de onde se descia para Cabo Ledo, para as belas lagostas do Mário, cozinhadas em água do mar. Praia, conversa, almoçarada longa e divertida e regresso à capital, com paragem obrigatória no Morro da Lua, para um último whisky, seguida de pores do sol magníficos, que gozávamos como versões lusotropicais da "National Geographic".
Esta era a vida privilegiada de alguns diplomatas, técnicos estrangeiros, "cooperantes" e amigos angolanos, nos domingos luandenses dessa segunda metade dos anos 80, que quase sempre ainda acabavam numa jantarada generosa em casa dos "Guedais". Na véspera, no sábado, o programa tinha sido, em geral, o Mussulo, uma romagem em barcos com arcas frescas e vitualhas, que saíam sabe-se lá bem de onde.
Éramos, há que reconhecer, uma quase obscena "ilha dourada" nessa cidade de grande pobreza, onde afluiam dos campos centenas de milhares de refugiados, expulsos pelo conflito, que viviam um musseques cada vez mais gigantescos e miseráveis. Cruzávamo-los pelas ruas, nas suas deslocações, a pé sob o sol a pique ou atafulhados em "combies" abafantes, a caminho do sustento. Eram milhões, mas só conhecíamos alguns, aqueles que trabalhavam para nós, junto de quem absolvíamos, com gestos facilmente simpáticos, o nosso íntimo desconforto.
Às vezes, raras, essa nossa Luanda tocava, em algumas ocasiões públicas ou sociais, estratos da classe política angolana, nesse tempo muito radicalizada politicamente, com muito escassa propensão à ostentação, vista talvez como inconforme com os rigores do conflito que atravessava o país. Era gente quase sempre esforçadamente distante de nós, com menos compreensíveis (ou, se calhar, nem tanto) exceções, que afivelava uma lusofobia oficiosa militante, atenuada à chegada à Portela de Sacavém, para visitar a família.
Luanda era então, recorde-se, uma cidade em guerra, quase sitiada pela instabilidade, pelos rumores de erráticos incidentes. A Norte, podia passear-se até ao Cacuaco, a Leste até Viana - mas para ir aí fazer o quê? Arriscar uma avaria e, em tempo sem telemóveis, "entrar numa fria"? Frequentes eram os cortes de energia elétrica, as falhas de água, havia imensa malária, as escassas lojas estavam quase vazias, os imensos mercados populares estavam muito aquém dos limites da salubridade, os serviços públicos eram altamente deficientes, os hospitais e clínicas de evitar a todo o custo, havia dois ou três restaurantes "íveis", imprevisíveis na abertura e a "fazer-se caros" nas reservas, era zero a oferta cultural (salvo filmes repetidos à exaustão em ruidosos e algo caóticos cinemas ao ar livre e livros soviéticos ou aparentados traduzidos, à venda numas livrarias manhosas, onde, de português, só se encontrava o "Avante!"). Nas madrugadas, entre a meia-noite e as cinco, era proibido circular durante o "recolher obrigatório", exceto com salvo-conduto cuja eficácia sempre temíamos, atenta a distração, às vezes etilizada, das tropas de serviço.
E, no entanto, esse foi um tempo magnífico das nossas vidas! De amizades para a vida, de histórias deliciosas, de convívios memoráveis. Um tempo único, talvez porque a idade também ajudasse. Tenho muitas imagens que me ficaram de Luanda. Uma boas e outras más. Faço um deliberado esforço para só guardar as primeiras. E, dentre elas, guardo sempre os sorrisos.
Fiquei com os sorrisos alegres, às vezes desdentados, das simpáticas quitandeiras dos mercados, preocupadas que algum "camarada ladrão" nos assaltasse a carteira. Os sorrisos ingénuos dos jovens soldados nos controlos das estradas, que se rasgavam com um maço de tabaco ou uma cerveja. O sorriso resignado daquela logista onde, ingénuo, entrei para comprar algo que estava na vitrine e que, nesse imenso armazém cheio de prateleiras vazias, me retorquiu com ironia triste que aquilo era "para encher montra". O imenso sorriso e a gargalhada franca do Sambo, o empregado do "grill" do Trópico, quando com ele inventávamos ágapes imaginários, garrafeiras míticas, num teatro amigável e divertido, com que procurávamos dar a volta à realidade trágica dos dias.
E, principalmente, lembro-me muito bem dos sorrisos abertos das crianças. Aqueles filhos de pescadores do Mussulo a quem levávamos o "lanche", as sandwiches e as Coca-Cola, que sorviam como um banquete. E as crianças da vizinhança do "compound" da embaixada, que por anos nos diziam adeus a dançar para as nossas janelas, das casas pobres onde viviam, quando, pelos Natais, lhes trazíamos de Portugal caixotes de brinquedos que os nossos sobrinhos tinham já posto de lado. Nunca esquecerei o brilho daqueles olhos. Que será feito deles? Sorrirão?