O cigarro começou a tremer fortemente na mão daquele membro do governo turco. A minha assessora olhou para mim (mais tarde, disse-me que pensou que, naquele instante, a reunião ia ser suspensa). A conversa estava a ser tensa, mas não tinha passado os limites da razoabilidade. Mas, para Mehmet Irtemçelik, ministro dos Assuntos europeus e Direitos humanos (curiosa designação), a referência que eu acabara de fazer tocara uma corda sensível. Eu dissera-lhe que a União Europeia não deixaria de reagir muito negativamente se acaso o líder histórico do PKK, Abdullah Öcalam, que havia sido detido escassas semanas antes, viesse a ser condenado à pena de morte.
Estávamos em 1999. No final desse mesmo ano, se tudo corresse bem, o Conselho europeu, a ter lugar em Helsínquia, iria dar um sinal de partida para as negociações de acesso da Turquia à União Europeia. Mas apenas se tudo corresse bem... Se acaso, a montante dessa reunião, a moratória (suspensão de aplicação efetiva) de aplicação da pena de morte, que a Turquia vinha a seguir, desde há anos, fosse interrompida, naturalmente que a UE não deixaria de retirar daí as devidas consequências. E Portugal, que iria assumir, em janeiro de 2000, a presidência das instituições europeias, teria de ter isso em devida conta. Essa era a palavra de um país que, como Portugal, sempre demonstrara uma grande abertura face à Turquia.
Fora apenas isso que eu dissera a Irtemçelik, a convite de quem eu visitava Ancara. A sensação com que eu ficara, desde o início, era de que o ministro não tinha a certeza absoluta se a rigidez máxima da justiça não seria, de facto, aplicada a Öcalam. Daí o seu nervosismo, daí também a minha insistência. Mas o encontro acabaria por correr relativamente bem.
Nessa tarde, dei uma entrevista à CNN turca (a Turquia é dos poucos países que têm uma CNN própria) em que, escolhendo bem as palavras, me referi ao assunto. Mas já evitei fazê-lo numa conferência, ao fim do dia, na excelente "Middle East University", onde foi reconfortante debater a Europa e as então perspetivas para a integração turca, durante duas horas, com uma audiência de mais de duas centenas de estudantes e professores - num notável ambiente pró-europeu, que então estava em crescendo.
No dia seguinte, ao ser recebido pelo ministro dos Negócios Estrangeiros, Ismail Cem, um homem encantador, falecido poucos anos depois, e que já conhecia de outras ocasiões, voltei a explicar o meu "mandato". Penso que, ao contrário de Irtemçelik, ele compreendeu bem a posição que eu transmitia. Este "banho escocês" de encontros, com sinal de aceitação diferente, culminaria com um jantar, com uma conversa bastante dura, na nossa embaixada, com um grupo de deputados, proporcionado pelo nosso embaixador, José Stichini Vilela. É que, horas antes, eu fizera questão de aí receber um grupo de militantes de Direitos humanos, encontro que lhes não tinha agradado. Dias complicados...
Esta visita não terminaria sem uma surpresa. A horas do regresso a Portugal, Irtemçelik telefonou-me, informando que o primeiro-ministro, Bülent Ecevit, queria receber-me. Confesso que, sendo apenas secretário de Estado, não tinha a menor expetativa de ser recebido pelo chefe do governo turco. A conversa começou de forma estranha. Mal acabados de sentar, Ecevit colocou-me, de um modo pretendidamente intimidatório, uma questão sobre Chipre, que um dia já contei aqui. Depois, tratou da minha visita. Com serenidade, disse que a Turquia tinha tomado nota das preocupações que eu transmitira. "A seu tempo, a Europa saberá o que vamos fazer", acrescentou, críptico. E acabámos a falar de Mário Soares, de quem era velho conhecido.
E a Europa não tardou em saber das intenções da Turquia. Escassas semanas depois, ainda antes da reunião de Helsínquia, a Turquia anunciou que manteria a moratória sobre a pena de morte, pelo que o processo negocial de adesão se iniciou então. Depois, em 2002, Ancara suprimiu a pena de morte para delitos em tempo de paz e, dois anos mais tarde, em todas as circunstâncias. A Turquia aderiu também à Convenção Europeia sobre Direitos do Homem. E Öcalam continua vivo. E preso.
Apeteceu-me hoje lembrar este episódio, agora que o presidente Erdogan, no rescaldo do fracasso de um golpe de Estado, que confessou ter sido "uma bênção de deus", anunciou ser sua intenção estudar a reintrodução da pena de morte, imagino que com o objetivo de ser aplicada (retroativamente) aos militares sediciosos. O mundo dá muitas voltas.