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sábado, dezembro 20, 2025

"A russa a caminho do Marão"

Dentro de dias, terá passado uma década desde que este artigo surgiu no "Diário de Notícias", assinado pelo jornalista José Ferreira Fernandes. Há minutos, a internet lembrou-mo. 

"Um amigo e, embora só recentemente conhecido, um rapaz do meu tempo, o embaixador Francisco Seixas da Costa tem um blogue. Há dias, a caminho da sua terra, passou por Amarante, foi atestar a uma bomba e encetou conversa com os olhos não mediterrânicos da garagista. "De onde é?" e tal, seguido de respostas em reticências, de alguém resignado a tão pouco se saber do seu país. Russa... de uma ilha... a norte do Japão... Rapaz do meu tempo, do tempo em que os atlas eram devorados com uma vontade que atestava na suspeita de talvez nunca se ir nem a Badajoz, Seixas da Costa disse-lhe: "É de Sacalina?" E a mulher derreteu-se: "Estou em Portugal há 12 anos. É a primeira pessoa que me disse o nome da minha ilha."

Porque também sou um rapaz do meu tempo, eu também diria Sacalina e, como gosto de apostar, talvez prescindisse da sugestão sobre ser do norte do Japão. A russa: "Sou duma ilha..." E eu, logo: "Sacalina!" E como gosto também de competir aproveitei para mandar ao meu amigo uma pergunta, em SMS: "De que país era capital a cidade antigamente conhecida como Santa Maria Bathurst?" Tinha uma armadilha, a Wikipédia não reconhece esse nome inteiro, só Bathurst, antigo nome da capital da Gâmbia, hoje Banjul. O nome da capital, no meu tempo liceu, incluía a ilha onde Bathurst estava (Santa Maria), nome completo que desapareceu bem antes do advento desse saber universal que é o Google. A resposta veio no quinquagésimo de segundo, afastando a hipótese de pesquisa prévia (que, aliás, não serviria de nada): "Gâmbia." Na verdade, porque ele é diplomata, escreveu em forma de dúvida delicada: "Gâmbia?"

Só confirmei o que já sabia, Seixas da Costa é um trota mundos, o seu blogue chama-se Duas ou Três Coisas, um piscar de olho ao filme de Jean-Luc Godard, Duas ou Três Coisas Que Sei Dela, sendo ela, Paris, onde ele foi embaixador. Apesar de ser sobre Paris, o filme tem como protagonista Marina Vlady (olha, outra russa pelo mundo), atriz a quem o realizador cometeu a tolice de pedir em casamento no começo das filmagens. Tendo levado com o pés, Godard nunca mais falou com a sua atriz durante a rodagem, com exceção de algumas ordens ditas para o microfone de orelha, a que ela tinha de responder olhando a câmara. Um dia, Godard atirou-lhe: "Define-te numa palavra!". Marina Vlady respondeu (e está no filme): "Indiferença." O exato oposto do que define Seixas da Costa, mesmo quando para numa estação de serviço a caminho do Marão.

Aquele breve diálogo quase trasmontano que culminou em Sacalina já me deu para três parágrafos, muitos comentários no tal blogue e, até, a poemas de amigos que partilham com Seixas da Costa uma mesa no bar Procópio, em Lisboa. Julgo que o desinteresse que os jornais colhem nos quiosques tem muito a ver com a indiferença com que eles passam por uma russa numa estação de serviço no caminho para o Marão. E, o que mais é, uma russa de Sacalina.

Um comentador do post prestou uma homenagem: garantiu que conhece uma aventura contada por Hugo Pratt na ilha russa. Estarei talvez enganado mas Corto Maltese nunca desembarcou em Sacalina. Mas há erros que revelam boa ciência: aquelas ilhas agrestes do extremo norte, com povos exagerados como os russos, cruzando-se com civilizações que desaparecem, são cenário típico do marinheiro de perfil cortado à faca. Estou a ver Corto Maltese a gostar do concerto duma nivkh, de um povo perdido que tange os tinrin, instrumentos em que, como todos sabemos, as cordas são vibradas com a língua.

A ilha Sacalina - lá vem o meu liceu, grande como Portugal, 600 mil habitantes, no extremo-nordeste da Ásia - foi disputada durante séculos pela Rússia e o Japão, e depois da II Guerra ficou soviética. Os japoneses levaram os aïnous, os russos ficaram com os nivkhs, cada um com as suas minorias, ambos povos siberianos. No ano passado, a empresa estatal Gazprom descobriu jazidas colossais de petróleo, a juntarem-se ao gás natural da ilha que já era o de maior produção na Rússia.

Já decidi, no próximo Natal vou encher o depósito a uma certa estação de serviços a caminho do Marão. Se a russa não estiver lá, deduzo que acabou a ironia da venda a retalho tão longe da grande produção (de Amarante a Moscovo, 4,5 mil quilómetros, de Moscovo a Sacalina, 9 lmil). Se a russa estiver, quero saber dos muitos portugueses que, ao longo de 2016, lhe falaram do nome da sua ilha. Se eu não ficar satisfeito com a curiosidade dos portugueses, sigo outra sugestão de Seixas da Costa e em Amarante compro lérias, papos d"anjo, São Gonçalos, foguetes e brisas do Tâmega, doces de tanger a língua."

Há dez anos, a palavra "Rússia" soava diferente aos ouvidos de muita gente. Há poucas horas, passei junto àquela estação de serviço à saída de Amarante para Padronelo e, pela enésima vez, resisti à tentação de perguntar o que é feito da russa que por lá trabalhava quando aqui escrevi o texto a que dei o título "O Dr. Ladislau e a bela russa da bomba de gasolina".

domingo, dezembro 20, 2015

O dr. Ladislau e a bela russa da bomba de gasolina


A jovem, que há pouco, na noite fria e chuvosa de Amarante, atestava o depósito do meu carro, falava um português irrepreensível. Os seus olhos, contudo, não enganavam.

- De que país é? 

- Sou da Rússia, disse com um belo sorriso.

Não estranhei. Mas, atentando para o rasgado dos olhos, inquiri:

- De que região da Rússia? 

Talvez para não entrarem em demasiadas explicações, estou preparado, desde há muito, para ouvir, dos imigrados russos em Portugal com quem me cruzo, a resposta "de Moscovo" ou "da região de Moscovo". Ela não foi por aí mas, sempre a sorrir, ainda tentou afastar a minha curiosidade:

- Sou de uma ilha ...

- Em que zona? 

Deve ter estranhado um pouco, mas foi ainda vaga:

- É uma ilha a norte do Japão.

De repente, a minha memória deu um "salto" de mais de meio século. De uma conversa numa tarde, no Centro de Estudos Geográficos do Liceu Nacional de Vila Real, aí por 1964. 

O Centro tinha sido criado por iniciativa do Dr. Ladislau, um professor de Geografia oriundo de Braga, que com isso dera alento a um grupo de interessados pelo tema, sob o imparável impulso do Sérgio Moutinho, que já se foi há muito. Dele faziam parte o José Barreto, o Elísio Neves, o Carlos Leite, o Ribeiro e mais dois ou três. Reuniamo-nos e discutíamos, publicávamos um boletim impresso na Minerva Transmontana, o "Meridiano". Graças a esse extraordinário professor, um homem que via muito mal mas que sabia como ninguém motivar o nosso interesse e a nossa curiosidade, conseguíamos então romper a modorra da vida chata de um liceu de província.

- É de Sacalina? 

A jovem quase que parou o que estava a fazer e, olhando para mim, agora com os olhos rasgados muito abertos de espanto:

- Estou em Portugal há 12 anos. É a primeira pessoa que me disse o nome da minha ilha.

O frio da noite e a pressa dos passageiros não me deu tempo para lhe perguntar se, como dizia Tchekov, "em Sacalina não há clima, só há mau tempo", razão porque foi, durante muitos anos, um sinistro lugar de degredo. E vinha ainda muito menos a propósito dizer-lhe que foi graças a uma conversa com o Dr. Ladislau, que um dia me falou dos conflitos da Rússia com o Japão, em tempos a propósito de Sacalina e até hoje sobre as Curilhas, que eu ouvi falar pela primeira vez da ilha onde ela nascera, que era mesmo capaz de apontar o seu lugar no mapa e que agora, meio século mais tarde, estava ali a fazer uma "figuraça", na bomba de gasolina da Prio em Amarante, sob a chuva miúda do inverno do Marão, à saída para Padronelo. 

Se têm dúvidas, passem por lá, falem com a bela "sacalinense", a quem há pouco me esqueci de perguntar o nome.

(Ah! e se forem durante o dia, aproveitem e comprem, ali bem perto, o excelente pão de Padronelo, dos melhores do norte. E, na "Tinoca", o "quinteto" maravilha de doces, mesmo a calhar para o Natal: as lérias, os papos d'anjo, os São Gonçalos, os foguetes e as brisas do Tâmega.)

"A russa a caminho do Marão"

Dentro de dias, terá passado uma década desde que este artigo surgiu no "Diário de Notícias", assinado pelo jornalista José Ferrei...