quinta-feira, junho 02, 2011

O relógio

O Melo era aquilo a que agora se chama um cromo. Projetava uma imagem caricatural do diplomata: sempre de fato com colete, de onde sobressaía a corrente de ouro do relógio de bolso. Como tique, tinha por hábito dar lustre nas calças ao brasão que trazia no anel. Falava de forma pausada, mimando o estilo que ele admirava em vetustas figuras da carreira, vindas de um tempo a cujos sinais exteriores ficara fiel. Velho conselheiro já sem hipóteses de promoção ou de chefia de missão, arrastava agora a sua consabida calaceirice por um posto onde fora colocado contra a vontade expressa do embaixador. Este pagava-lhe com uma atitude de permanente ironia e desprezo. Porque era um pouco tonto, o Melo parecia não perceber que era regularmente gozado pelo seu chefe.

Uma tarde, na embaixada, foi chamado ao gabinete do embaixador. Encontrou-o com um colega mais velho, que tinha vindo de Lisboa, em férias. Tratado o breve expediente, o embaixador perguntou-lhe:

- Ó Melo, você tem horas certas?

O conselheiro sacou, com orgulho, do seu velho e valioso relógio de bolso, preso pela ostensiva corrente de ouro. E esclareceu o embaixador. Este voltou à carga, dirigindo-se para o colega de Lisboa:

- Tu queres saber que o nosso Melo nunca muda a hora no relógio?!

Perante o espanto afivelado pelo embaixador visitante, o Melo, sorridente, voltou a tirar o relógio, explicando que, de há muito, decidira não proceder aos acertos horários, ao longo do ano, para evitar forçar o delicado mecanismo do velho relógio. E lá mostrou que, precisamente, tinha então a hora errada.

- É verdade que estes relógios ingleses são frágeis, comentou o chefe do posto.

O Melo reagiu. Não, o relógio era americano! Retirou-o, uma vez mais, do bolso do colete e mostrou a marca, a ambos os embaixadores. E preparava-se para sair quando o seu superior hierárquico, com alguma ironia, lhe lançou:

- Ó Melo, eu perceberia o seu cuidado, se o relógio fosse de ouro, mas assim...

O conselheiro, que herdara o precioso relógio de ouro da família, reagiu e, retirando-o de novo do bolso, mostrou o contraste, sobre o qual deu algumas explicações, que pouco pareceram interessar aos seus interlocutores. E foi saindo. Estava já prestes a fechar a porta, por fora, quando ouviu o seu chefe dizer para o embaixador visitante:

- Aquele relógio do Melo não é nada mau. O que é pena é que não tenha ainda ponteiro dos segundos. Mas percebe-se, é de outro tempo.

O Melo, contudo, ainda tinha ouvido o comentário. Reabriu a porta, pediu desculpa e mostrou, à evidência, que o seu embaixador estava errado: o seu relógio marcava os segundos. E saiu.

O conselheiro já não testemunhou a "barrigada de riso" que invadiu ambos os embaixadores. E, em especial, a frase do seu chefe:

- Eu não te dizia que o tipo sacava do relógio, pelo menos cinco vezes?!  Com jeito, ainda tinham sido algumas mais...

Esta história foi-me contada, há cerca de um quarto de século, por um embaixador. Já não conheci o "Melo", nem qualquer os outros protagonistas. Longos anos houve em que era possível a subsistência de algum autoritarismo nas relações hierárquicas, dentro das nossas missões diplomáticas. Eram outros tempos, embora eu ainda tenha encontrado alguns "Melos", pelos corredores das Necessidades.

20 comentários:

Anónimo disse...

É revelador...
Quando é preciso Ser através do ter, há um travo a pobreza desde a riqueza, que quem desvenda esconde...

Agora a história é hilariante principalmente do ponto de vista do "Melo" que acho que era o que ria no fim, até porque ia passando o tempo.

Acordei de pernas pro ar, tenho saudades da minha "Velha" amiga, a protegida do Anonimato...

Isabel Seixas

Anónimo disse...

Esses “Melos” eram, pelo menos, inofensivos, não tinham, ao que vejo, mau carácter. Hoje em vez de “Melos”, há “Melros”, pequenos títeres em potência, convencidos de imensa sabedoria adquirida em pouco tempo de carreira, preocupados em fazer “net-work”, encostados oportunisticamente aos dois Partidos que sistematicamente alternam no Poder com vista a galgar rapidamente as escadas da carreira, lambendo as mãos da Hierarquia, temerosos perante ela, vivaços, vestindo, de Inverno fato de bancário, cinzento e no Verão beije ou verde azeitona. O uniforme adequado às estações do ano, segundo eles. E lá vão lampeiros. E acreditem, chegam rápidos à estação final: embaixadores. E aí deslumbram-se. A importância do cargo aumenta-lhes o ego vaidoso. Uns figurões estes “Melros. Que até são fáceis de detectar, mas hoje já ninguém os trava. Nem a Hierarquia, que já convive com eles com naturalidade.
Adido de Embaixada

patricio branco disse...

Talvez melhor um relógio parado, que sempre dá a hora certa 2 vezes por dia, que um relógio a funcionar mas sem estar acertado, que nunca dá a hora certa.
Bem, isto dos velhos relógios de familia, herdados do pai ou do avô, é tema comum de filmes, histórias. Imagino que se pode sentir um grande apego por um velho relógio ligado à nossa vida e historia.
Claro que o tema principal da história é o dono do relógio e os traços da sua personalidade. Não o relógio. De que marca seria e qual a verdadeira nacionalidade do objecto?

Helena Sacadura Cabral disse...

Salvou-se Senhor Embaixador de encontrar alguns Mel(r)os...que eu ainda conheci!

João Forjaz Vieira disse...

Esta estória dá conta da enorme arrogância que, muitas vezes,caracteriza as elites, no caso uma elite profissional contra um desgraçado de um pouco inteligente funcionário aparentemente pertencente a uma outra elite mal representada.
João Vieira

Fada do bosque disse...

ahahahahah!! a história do Sr. Embaixador está muito gira! :)) mas com o comentário da Drª Helena! ahhahahhah!!!

Helena Sacadura Cabral disse...

Ri, com gosto - a unica coisa, aliás, que, nestes dias, quase a terminarem, faço com gosto -,com a descrição do vestuário sazonal feita pelo caro Adido de Embaixada.
E ainda pode duvidar-se que o Eça ou o Ramalho estejam completamente actuais?!

Anónimo disse...

Estou de acordo com João Forjaz Vieira. Não gosto da pinta dos gozadores arrogantes. Há Embaixadores que julgam ter o Rei na barriga. Como esse do Post, pelos vistos. Gozar com os outros sempre foi coisa que me repugnou. É coisa de gente fraca, que, quando encontra quem lhes faz frente mostram afinal o seu verdadeiro carácter (ou falta dele).
P.Rufino

Anónimo disse...

Cara Drª HSC,
Um dia destes, noutra ocasião, quem sabe, "Adido de Embaixada" identifica-e, aqui neste Blogue. Aliás, já o tem comentado.
Consideração,
A.D

Anónimo disse...

A minha velha rimalhadeira, sensibilizada pelas saudades da cara Isabel Seixas, quadrou quadra forçada que lhe dedica:

o relógio de viver
dá morrer desde o começo
rimalhar é vão prazer
e rimalhando o confesso.

Anónimo disse...

Caro Adido de Embaixada,

Quem fala assim, não é gago!

Isabel BP

Jose Tomaz Mello Breyner disse...

Acho que o João Forjaz Vieira tem toda a razão. Gente educada não "goza" com quem não lhe pode responder.

Quanto aos "Melros" a que o Anónimo "Adido de Embaixada" se refere saiba que deriva este nome Mello de uma alcunha e a família que o adoptou por apelido é da mais remota e nobre ascendência.
Deriva ela, com efeito, de D. Soeiro Reimondes, o Merlo - ou «melro» -, (contemporâneo dos reis D. Afonso III e D. Dinis) que era o chefe de linhagem dos «de Riba de Vizela» e, por esta via, da dos «da Maia».
Vindo para o Sul, fundou na Beira a vila de Merlo, depois Melo, sendo dela senhor, bem como de Gouveia.
Do seu casamento com D. Urraca Viegas, filha de D. Egas Gomes Barroso e de sua mulher D. Urraca Vasques de Ambia, teve descendência na qual se fixaria o nome Melo.
Mantem-se, na actualidade, o uso por parte de várias famílias, da grafia Mello.

Cumprimentos

Fernando Correia de Oliveira disse...

belo quadro queirosiano, não resisti a citá-lo no Estação Cronográfica (http://estacaochronographica.blogspot.com/2011/06/o-relogio-de-bolso-em-ouro-uma-cronica.html)

Anónimo disse...

Oh! Rimalhar é mesmo à desgarrada,
com a minha amiga "Velha" gaiteira
Até o relógio e a subtil embaixada
Nos Servem de mote à quadra brejeira

Isabel Seixas

Anónimo disse...

Diz-me a velha que diga à jovem colega Isabel que isso de brejeirices já nem a brincar os outros (e a idade) lhe perdoam - o que a faz espumar em raiva e palavrões de revolta, mas muitas vezes a deprime. E avança, como prova do seu estado de espírito, a versão original da quadra e dum dístico que se lhe segue :

o relógio de viver
dá morrer desde o começo
rimalho pra me entreter
antes de morrer confesso.

ps enquanto não morro
voto amanhã por socorro.

Anónimo disse...

O que tem mais piada é o "à jovem" só porque me conheço...

Agora, que bonito adorei, nem me atrevo a continuar rendo-me à natural hegemonia...

Adoro charadas de missão(...),que profissionalismo!
Isabel Seixas

Anónimo disse...

Cara Isabel Seixas
'charadas de missão'?
'profissionalismo'?
A menina desculpe mas a velha não entendeu - e nem lhe digo (nem posso, em blogue de embaixador) os palavrões que aquela boca sagrada vomitou. Sim, porque a velha senhora odeia não entender.
Mas não se preocupe, que já lhe passou. Desde as 8h que não fala, constipou-se. Não há-de ser de cuidado, esperemos.

Anónimo disse...

Nomeadamente a Velha Senhora, cada vez mais gosto dela, é paradoxal na higiene do sono podendo estar a desenvolver um fator de neuroticismo que a desgasta... O comum é adormecer de terço na mão a rezar e a não blasfemar...
E matutinamente acordar entre as cinco e as sete...

Agora explicitar subjetividades só em chaves e em presença física com direito a café e pastel...

Fora de questão!...
Pois anonimato,já me tinha dito.
Isabel seixas

Anónimo disse...

A 'nossa' velha desde as fatais 8h da noite de domingo que não fala (o que a não impede de ser quem é: responde-me a quanto digo com manguitos de todo o tamanho, daqueles ajudados por alto, sabe). Deu-lhe forte a constipação (ou é da ressaca?), Mas garatujou e entregou-me 'PRÁ JOVEM ISABEL' (leio, em maiúsculas) uma sextilha que, se bem decifro, reza assim:

gosto que goste
velha não dorme
nas mãos aposte
só um enorme
se em chaves há
talvez lá vá .

videira disse...

Melro -> Mello -> Melo ...
Se Melo -> Melro voltariamos aos velhos tempos.

A lei da bomba

Acho de uma naïveté simplória os raciocínios que levam a sério a letra da doutrina nuclear russa. Como se a Rússia, no dia em que lhe der na...