sábado, agosto 07, 2010

A truta

Os dias tinham sido cansativos. A Embaixada de Portugal naquele periférico país era muito pequena e a pressão de trabalho, preparatório e de acompanhamento da "comissão mista", tinha sido intensa. A visita tinha compreendido mais do que uma cidade, o que constitui sempre um pesadelo logístico. O embaixador e o seu único colaborador ansiavam já pelo regresso a Lisboa da imensa delegação, que se faria após o almoço (quando via partir visitas oficiais, o embaixador tinha por hábito comentar, aliviado: "mais uma lebre corrida!").

Vale a pena dizer que, no início dessa década de 80, as comitivas portuguesas ao exterior eram quase sempre grandes, brindadas com um  luzido painel de representantes de vários ministérios (os "ministérios sectoriais", no nosso calão diplomático), a fazer de "corte" ao membro do governo que as chefiava. Por essa razão, a mesa da residência do embaixador estava completa, nesse almoço de despedida.

O ministro - que, no futuro, estava destinado a ter uma interessante carreira política - era do género pouco falador, entre o tímido e o distante. Muito "business-oriented", não era de graçola fácil ou de contar historietas para a assistência. Quando, em momentos raros, lhe saía algo mais "solto" e com mínima pinta de graça, convocava logo atentos sorrisos ou gargalhadas da sua "corte", publicamente feliz por poder partilhar essa inesperada intimidade.

Por essa limitação do convidado de honra, o nosso embaixador, com a técnica de alimentação social das conversas que os anos na "carreira" ensinam, lá procurava "encher" o ambiente, elegendo como interlocutora principal a mulher do ministro, que percebera ser uma figura mais expansiva e opinativa. Tudo, porém, sempre num registo bastante formal.

A certo ponto da refeição, foram servidas uma belas trutas. Mais como comentário de circunstância do que como manifestação de curiosidade, a mulher do ministro inquiriu: "Costuma ter por cá trutas, senhor embaixador?". É então que ao diplomata, talvez com a prudência e a contenção fragilizadas pelo imenso cansaço que o invadia, lhe saiu esta inopinada graça: "Não tenho estado mal servido de trutas. Logo que aqui cheguei, apareceu-me o dr. Mário Soares. Pouco tempo depois, esteve aqui a engª Lurdes Pintasilgo e, logo a seguir, o professor Freitas do Amaral. Agora, esteve cá o sr. ministro. Como vê, minha senhora, de trutas estou bem aviado".

(Vale a pena assinalar, para quem o não saiba, que, numa certa geração - que era a do embaixador -, o termo "truta" era utilizado coloquialmente como sinónimo de "pessoa importante".)

A mesa gelou, com os cantos dos olhos dos presentes a tentarem analisar a reação do ministro. Houve cinco trágicos segundos de interminável silêncio, até que o mais velho membro da delegação, um homem já com algum mundo, soltou uma forte gargalhada, que teve o condão de provocar um "ressurant" esgar no ministro, um largo sorriso da respetiva mulher e rumores de risada nos restantes presentes. Do gelo, passámos ao alívio e, logo de seguida, às trutas.

8 comentários:

Jose Martins disse...

Senhor Embaixador,
Cá o “manga da alpaca” que haja sido sou desse tempo, em que as visitas de individualidades, públicas, de Portugal eram constantes.
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Ora eu o fotógrafo da corte (ainda não tinha chegado a praga das câmaras digitais e dos telefones) estava envolvido nessas visitas, (bazófias minhas com cerca de umas 20 mil fotografias digitalizadas), era uma chatice dos diabos com essa gente e o tratamento cuidadoso com ela.
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Como fotógrafo compreendia melhor que ninguém aquilo que se ia passando nas recepções e uma carga de trabalhos para conseguir retirar da imagem, pessoas que se encostavam aos (PM, ministros, embaixador) para ficar no “boneco”.
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Um embaixador que eu me prezo muito de ter servido um dia entre os dentes diz-me numa recepçao: “lá anda esta (....) atrás de mim...”
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Num final de jantar (em honra de um ministro dos estrangeiros), a seguir aos brindes da “praxe” houveram discursos e o meu embaixador de então, absolutamente, empertigado o tópico do discurso foi dirigigo ao sr.ministro.
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Elogios e mais que estes e numa passagem o meu embaixador: “durante a visita do sr. ministro, tudo por aqui, rolou sobre rodas”.
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Em seguida o sr. ministro discursou e agradecendo as palavras do senhor embaixador, diz então: “as rodas a que o senhor embaixador se referiu devem ser as das malas que comprei esta tarde”
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De facto o ministro tinha comprado malas de rodas (falsas como Judas) numa loja nas proximidades da embaixada.
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Isto é apenas a ponta do novelo, pois tenho imensas histórias saborosas, passadas durante mais de 24 anos a servir a diplomacia portuguesa...
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Lá irei para mais para diante.
Saudações de Banguecoque
José Martins

Anónimo disse...

Do gelo, passámos ao alívio ...
In (FSC:2010)

Nota-se perfeitamente na expressão facial da truta...
Isabel Seixas

margarida disse...

Nova deliciosa história, para abrir sorrisos em mais um dia deste escaldante Verão.
Folgamos todos que essa imobilização forçada não tenha deixado prostrado e, digamos, lacónico.
A bem da nação (de leitores).

patricio branco disse...

O embaixador estava bem acima do ministro, que não tinha graça nenhuma, como em geral a maioria deles não tem. Fez muito bem o embaixador em lhe servir trutas.
E que bom ver o ministro, homem sem graça nem simpatia, partir.

Helena Sacadura Cabral disse...

Senhor Embaixador
Não sei quando - porque a sua carreira está longe de terminar - mas devia publicar estes "Apontamentos de um Diplomata", que constituem um precioso modo de os outros - nós - percebermos a delicadeza de "situações sociais" que, por vezes, surgem na vida dos nossos representantes no exterior.
Estas, todos nós entendemos. As questões politico-económicas já só são para especialistas!

Santiago Macias disse...

Os ambientes de corte são, aos mais variados níveis, sempre fascinantes. E divertidos. Tive a oportunidade de, há uns meses, assistir à chegada de uma ex-primeira dama a um evento social. A descrição que faz do almoço na embaixada assenta na perfeição ao que assisti. E fez-me lembrar, irresistivelmente, a descrição que Procópio de Cesareia nos deixou da entrada de Justiniano na Santa Sofia.

Helena Oneto disse...

Mais um deliciosa "truta" da diplomacia!!!
Só aqui se passa, elegantemente, do rubro ao gelo!
Como diz Margarida: A bem da nação!:)

Anónimo disse...

Mais uma saborosa "anedota" que o senhor embaixador nos deixa com a elegância habitual.

Sem a sua elegância (nunca deixarei de ser o camponês que desenraizaram), deixo uma pergunta que é também um palpite:

O "nosso" ministro chegou a presidente da República, não chegou?

Carlos Serra

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