Daqui a pouco esta historieta vai fazer 30 anos, caramba! A nossa viagem a Cantão, saídos de Macau, havia sido algo acidentada. Por razões que não vêm para o caso, os chineses que nos acompanhavam não queriam que saíssemos de Zhuhai. Por pouco não desistimos. Mas, depois de grande parlamentação, acabámos por ir, com guias que mal compreendíamos, por estradas cheias de trânsito, bordejadss por uma paisagem permanentemente rural, até a uma grande cidade, que nos disseram ser Cantão.
Para espalhar a confusão, lancei então a dúvida de que fosse realmente Cantão. “Há tantas cidades grandes na China, isto, se calhar, nem é Cantão...” E prossegui, perante a perplexidade dos circunstantes: “Quem pode ter a certeza de que é Cantão? Para nos despacharem, trouxeram-nos a uma cidade qualquer, das milhares que há na China, e vamos regressar a casa convencidos de que fomos a Cantão”. A verdade é que, como não tínhamos a mais leve indicação sobre a urbe em que estávamos, deixámo-nos guiar para uns pontos turísticos apresentados por gestos - uns templos, restaurantes e coisas assim. Devia ser Cantão, embora o meu pedido de que fôssemos à estação ferroviária central da urbe, que sempre acho um referencial decisivo para avaliar as cidades, tivesse sido ignorado pelos nossos “minders”.
E o dia lá foi correndo. No final, no início do regresso a Macau, os nossos guias “perderam-se”. De súbito, começámos a assistir a uma discussão acesa entre o motorista e o acompanhante. O primeiro era de Macau, nunca ali tinha vindo, o segundo não sei de onde era, era apenas incompetente. A certo passo, nesse regresso infindável, demos conta de ter passado, pela terceira vez, pelo mesmo sítio, com o motorista já a pedir indicações aos transeuntes. Percebemos que as coisas não estavam fáceis.
A tarde já caía. Cantão, ou o que passava por sê-lo, era agora um mar de gente de bicicletas, de regresso às casas. Os cruzamentos tinham-se transformado em enxurradas de trânsito, com sinaleiros, de braçadeira amarela, a tentar regular a maré. A nossa carrinha avançava a custo, metida no “rush”. Era um espetáculo único.
Foi então que o vimos. Olhava para nós, para aquela carrinha de modelo pouco conforme com padrões locais, com gente ocidental a espreitar curiosa pelas janelas, que observava, qual objeto antropológico, aquele mundo tão diferente que nos rodeava. Era um homem alto, novo, fácies fechado, de roupas vulgares, parado no semáforo, com uns óculos finos redondos, “à Trotsky”. Nada tinha de particular, exceto o olhar. O homem fixava-nos friamente, sem denotar qualquer excessiva curiosidade a nosso respeito, mas com uma mirada que nos trespassava. “Há naquele olhar um ódio de classe”, alvitrou alguém, numa leitura ironicamente mecanicista. “Nada disso: é apenas a manifestação de um imenso desprezo de classe”. A exegese, cheia de criatividade em matéria de “luta de classes”, perante a continuada impassibilidade do homem, que manifestamente percebia que devíamos estar a falar dele, prosseguia entre nós, cheia de rebuscadas ressonâncias marxistas, embora curiosamente oriundas de escolas bem diversas. O sinal verde ou a ordem do sinaleiro abriu, finalmente, para nós. Eu ia no último banco da carrinha. Olhei uma última vez, pelo vidro traseiro, para o homem. Ia jurar que me pareceu detetar, por detrás daqueles óculos à Trotsky, um ligeiro sorriso. Seria um “gozo de classe”?
Dedico este post ao António Russo Dias e ao José Manuel Correia Pinto, frequentadores deste portal, “atores” principais desta “peça”, (também) viajantes comigo por Cantão, ou lá o que foi. (E que, naturalmente, podem corrigir e complementar o script).