Começou a Volta a Portugal em bicicleta. Olho o espetáculo na televisão com uma curiosidade limitada. Não conheço os ciclistas, hoje interessa-me muito pouco a prova, salvo as subidas à Senhora da Graça e à Estrela (mas nem sei se fazem parte da prova deste ano). Acompanho com bastante mais interesse o "Tour de France" do que a nossa Volta, confesso.
Mas nem sempre foi assim, como por aqui creio já ter dito. Na minha juventude, sabia de cor os segundos que separavam os dez primeiros classificados da "geral", tinha os meus favoritos para os "sprinters" dos pontos, para os "heróis" da montanha, para a classificação por equipas.
Num ano da década de 60, uma fábrica de boinas de Viana do Castelo decidiu constituir uma equipa de ciclismo - a Cedemi. Nas minhas férias de agosto eu passava regularmente junto à fábrica (existe agora, no mesmo espaço, o Café "A Boina") e, naturalmente, não me era indiferente o destino desportivo da equipa da terra do meu pai, cidade a que me sentia afetivamente muito ligado.
Creio que no primeiro desses vários anos em que a Cedemi marcou presença na Volta, a sorte foi madrasta para a equipa. A certo passo, ficou reduzida a um único corredor - cujo nome, por mais que puxe pela cabeça e pelo Google não consigo identificar. A sua classificação era já na casa das largas dezenas, pelo que a chegada ao fim da prova era, com toda a certeza, o ponto de honra almejado.
Uma das etapas da Volta desse ano acabava em Vila Real, vinda dos lados do Porto. A terrível subida do Marão, a partir de Amarante, tinha feito a seleção natural das hostes. A chegada ao Alto de Espinho, antes do início da descida em direção a Parada de Cunhos, já se fizera de um modo que retalhara o pelotão. Atingir Vila Real implicava, além disso, uma última subida, a partir da ponte do rio Cabril, antes da meta, situada nas imediações das traseiras da Mocidade Portuguesa. Algumas dezenas de espetadores distribuiam-se pela então "Avenida Marginal" (hoje "1° de maio"), saudando o esforço dos atletas.
De súbito, vi surgir, isolado no infortúnio classificativo, quer na etapa quer na "geral", o tal corredor da Cedemi. Com o entusiasmo filo-vianense que era o meu, à sua passagem soltei um "Força, 'fulano' ". O homem, não obstante o cansaço, surpreendido por ver gritado o seu nome numa artéria da capital transmontana, onde provavelmente não esperava ser conhecido nem era expectável que a sua equipa tivesse fãs, quase que abrandou a marcha, olhando-me com um esgar sorridente e, presumivelmente, também grato.
Ao final da tarde, como sempre acontecia, os corredores, alojados nas pensões nas cercanias da Avenida Carvalho Araújo, vinham passear-se por ali, de chinelos de dedo, mobilizando a atenção dos curiosos. Nesse dia, com naturalidade, o meu pai procurou os seus conterrâneos vianenses, as pessoas que tinham a equipa a seu cargo. Eu acompanhei-o e, por minutos, assisti à breve conversa.
Num certo momento, juntou-se ao grupo o tal único ciclista da Cedemi ainda em prova. Foi apresentado ao meu pai e, olhando para mim, com um imenso sorriso, deixou no ar, cúmplice: "Nós já nos conhecemos!" Eu devo ter corado, com aquele momento de intimidade com o desportista residual da Cedemi a encher-me de orgulho.
Infelizmente, isso não foi suficiente para eu decorar o nome do homem.