Há semanas, em Londres, no
caminho para o aeroporto, num “mini-cab”, perguntei ao motorista o que é que
ele pensava da possibilidade do Reino Unido vir a sair da União Europeia.
O homem, de tez escura e sotaque
iniludível, tinha ideias firmes sobre o
assunto: nas últimas eleições tinha votado pelo partido anti-europeu UKIP, por
achar que havia toda a vantagem em que o país abandonasse “essa coisa de
Bruxelas”. E logo acrescentou: “Não sei de que país o senhor é, mas nós já estamos cheios
de estrangeiros, não queremos cá mais”.
“Onde é que nasceu?”, perguntei. O homem confirmou: “No Sri Lanka. Vim há 11 anos para
cá. Tenho nacionalidade britânica”. Não me enganara e não resisti a comentar: “Você e a raínha...”
Um cidadão da Comunidade britânica,
como era aquele motorista, entendia que,
pelo facto de ter obtido a cidadania, já se tornara
“um deles”. Estrangeiro, para ele, era um
português ou um grego que, graças a “essa coisa de Bruxelas”, andava a disputar-lhe os postos de
trabalho.
Tenho-me lembrado bastante disto, depois dos atentados na Bélgica.
Desde há anos que, com amigos belgas, venho discutindo a questão do que
é “ser belga”. Como é sabido, as tensões comunitárias são ali fortíssimas,
entre valõese flamengos. Há mesmo quem diga que o conhecido empenhamento do
país no projeto europeu reside na tentativa de, por essa via, tentar diluir as
suas fortes clivagens internas.
Mas alguém já se interrogou sobre o que pensarão, sobre isto, os
habitantes de Mollenbeek, as comunidades árabes que, desde há muito, povoam as
ruas de Bruxelas e de outras cidades? O que se lhes oferecerá pensar sobre a
clivagem valões-flamengos? O que será, para eles, ser belga? Dir-lhes-á alguma
coisa ser súbditos do “rei dos belgas”, num país em que, por uma razão concreta,
o soberano se não intitula “rei da Bélgica”? Provavelmente, a sua pertença à
nação árabe, talvez mais do que à Argélia ou Marrocos de onde vieram os seus
pais, releva sobre qualquer afetividade à terra que os viu nascer. Imagina-se, aliás,
como essa juventude reagiria se, numa guerra, fossem chamados a defender as
fronteiras do país de que são nacionais.
Olhando para a sociedade internacional, fácil é concluir que há poucas
realidades tão complexas como as que derivam da nacionalidade e do sentimento
comunitário de pertença, em especial quando eles se misturam com questões
étnicas e religiosas, em caldos de cultura frequentemente explosivos.
Por estranha felicidade, deve haver poucos povos mais mal preparados do
que nós para entender essas mesmas realidades: uma população com unidade
étnica, sem conflitos de crenças, com fronteiras e nacionalidade fixadas há
quase nove séculos.