terça-feira, agosto 19, 2014

Uma guerra perdida?

Foi ontem, ao jantar, num restaurante de Lisboa. Na mesa ao nosso lado, dois franceses procuravam "desembrulhar-se" com o menu. Que estava escrito em português e inglês. O pessoal, com uma gentileza impecável, lá procurava ajudar, mas a incomunicabilidade era quase total. Tentámos dar "uma mão" mas, como é sabido, é precisamente nos momentos em que procuramos lembrar-nos do nome de um peixe ou detalhar o modo de cozinhar um prato que o conhecido "alemão" mais nos ataca e os nomes não nos saem.
 
A conversa, inevitável, com os franceses acabou com a constatação, por eles, de que a preservação do francês como língua internacional de comunicação era uma "guerra perdida". Sem querermos concordar em absoluto, tivemos de anuir que, nas novas gerações portuguesas, a apetência pela língua francesa é residual. Há semanas, esta nostálgica constatação já havia sido feita numa sessão no Instituto Franco-Português onde, perante uma dezenas de pessoas reunidas em torno da apresentação de um livro francês de ficção editado em Portugal, houve oportunidade de desenvolver um pouco mais o assunto.
 
A progressiva perda do francês em favor do inglês como língua conhecida pelas novas gerações é um "fact of life" - e não é por acaso que uso uma expressão inglesa para exprimir isto. O inglês veio para ficar como língua veicular. Não apenas o inglês simples, não sofisticado, com umas centenas de vocábulos, aquilo a que alguns chamam "o inglês de aeroporto" ou "de hotel", que será cada vez mais o meio comunicacional do futuro. Mas igualmente o inglês mais elaborado. Nos últimos meses, foi em inglês que dei aulas numa universidade portuguesa, fiz parte (em Lisboa e em outra capital europeia) de júris de concursos de acesso a uma empresa portuguesa em que foi usado o inglês, integro órgãos de direção de empresas nacionais em que as reuniões se passam exclusivamente em inglês (porque estão presentes pessoas de outras nacionalidades e o léxico comum dos negócios é em inglês).
 
E, no entanto, o francês continua a ser uma língua magnífica, dá-nos acesso a uma cultura ímpar e insubstituível. Por isso, posso anunciar aos leitores "francófilos" que está em curso uma saudável "conspiração" para fazer renascer em Portugal o "Cercle Voltaire", uma estrutura que pretende promover a língua e a cultura francesa, organizando eventos e outras iniciativas nesse âmbito. Este blogue não deixará de dar conta, em breve, do que vier a ser público nesse âmbito. A "guerra" pode estar perdida, mas há ainda belas "batalhas" a disputar em torno da língua francesa. Lutar pelo francês "c'est de bonne guerre"!

segunda-feira, agosto 18, 2014

Pires Veloso


A História é feita de heróis improváveis. Pires Veloso, o general que agora desaparece aos 88 anos, é um deles. O bom senso com que conduziu o processo de transição de S. Tomé e Príncipe para a independência (um tempo que não foi tão fácil como alguns podem hoje supor) trouxeram algum prestígio a este militar, um tanto simplório (e que muitos acabaram por vir a conhecer quase apenas como o tio de Rui Veloso), que as forças conservadoras haviam de incensar e conseguir colocar no comando da Região Militar Norte.
O país com memória recorda as "romagens" do país político a um hospital onde recuperou de um aparatoso acidente de helicóptero, um "beija-mão" quase ridículo, que ficou no anedotário do "Verão quente" de 1975. Pires Veloso era a "resposta" de uma zona conservadora do país que abertamente rejeitou a tutela gonçalvista, titulada pela figura militar de Eurico Corvacho. À sua volta, juntou-se toda a gente que rejeitava a deriva esquerdista: desde verdadeiros democratas até bombistas (do MDLP ao ELP). Veloso terá cometido o erro de não pretender distinguir, com algum critério, dentre quem se opunha ao "inimigo" e isso levou-o a aceitar coisas que só a candura dos costumes políticos lusos é capaz de ter esquecido. Militarmente, e por conflitos mais pessoais que políticos, cometeu o erro de se opor a Eanes e isso acabaria por ditar o seu destino como figura com alguma ambição.
Tal como Pinheiro de Azevedo, Veloso acreditou que os episódicos banhos de multidão anti-comunistas se transformariam um dia numa maré de votos, pelo que arriscou protagonizar uma triste candidatura presidencial. As memórias que deixou - sob o titulo significativo de "Vice-rei do Norte" - são um registo de acrimónia desnecessária, que nada lhe acrescentam à biografia, que hoje se completou.

domingo, agosto 17, 2014

Os postos

Há dias, numa solta conversa de Verão, surgiu a questão frequentemente colocada aos diplomatas: qual a colocação no estrangeiro de que mais gostámos. Tenho sempre uma grande dificuldade em responder a essa pergunta, que nunca resolvi bem perante mim mesmo. A razão, aliás, é bem simples: não somos "os mesmos" ao longo do tempo, não temos exatamente a mesma anterior experiência e as expetativas quanto ao futuro quando nos confrontamos com um novo desafio. Em cada lugar a que chegamos somos pessoas diferentes ou, como dizia Ortega y Gasset, "nós somos nós e as nossas circunstâncias". A idade influencia o modo como olhamos as coisas, a vivência anterior torna certos lugares mais interessantes num certo período da vida, essas mesmas cidades ou países tornam-se mais atrativas ou menos agradáveis, dependendo do tempo em que por ela passamos. Mas também são importantes os amigos que criamos, os colegas com que convivemos e até os estados de saúde, nossos ou alheios, que alteram as perceções que nos ficam desses locais.

Vivi um posto como Oslo com o entusiasmo "maçarico" de ser a primeira experiência de trabalho no exterior, passei em Luanda dos tempos mais tensos e profissionalmente desafiantes de toda a minha carreira, pude "ler" em Londres o que Portugal significa perante essa Europa que ainda conta, pressenti em Nova Iorque que, com empenhamento, podemos facilmente "to punch above our weight", tive em Viena a prova de como, com alguma "arte" se pode dar a volta por cima a "ratoeiras" profissionais bem urdidas, vivi no Brasil uma das experiências humanas e diplomáticas mais fascinantes que um diplomata português pode ter e, finalmente, reeencontrei em França, cuja idiossincrática leitura da Europa sempre mobilizou a minha curiosidade, um Portugal expatriado de extrema dignidade, embora sob o peso dos tempos mais dramáticos da nossa afirmação externa recente.

Mas, depois daquela conversa de Verão, e da constatação clara de que me posso dar como excecionalmente satisfeito com todas as experiências profissionais que tive, dei comigo a colocar-me outra questão: que postos diplomáticos não fiz e gostaria de ter feito? Afastadas as opções lúdicas - o Estado não nos paga para estar em certos locais só porque eles são agradáveis para viver ou para fazer turismo - olhei friamente para as alternativas profissionais que me "falharam" e cheguei a três cidades em que, com total franqueza, gostaria de ter trabalhado: Madrid, Rabat e Buenos Aires. Por duas vezes me foi oferecido o ensejo de ser colocado na capital espanhola, e nunca aproveitei a hipótese. Rabat poderia ter sido, se assim o quisesse, o meu primeiro posto. Já Buenos Aires nunca apareceu no meu "screen".

A Espanha é o mais relevante posto bilateral que um diplomata português pode ter. A intensidade das relações, os desafios estratégicos da proximidade, a frequente diferente perspetiva nos assuntos europeus e a diversidade cultural e nacional espanhola devem constituir uma experiência fascinante para um diplomata entusiasmado e atento, como sempre procurei ser. O nosso único vizinho terrestre, com o qual temos uma relação não isenta de uma inescapável ambiguidade, converte Madrid num desafio profissional único. A eleger uma única "frustração" em toda a minha carreira, essa terá sido o facto de não ter servido em Madrid.

Considero Marrocos, não obstante toda a dificuldade que a barreira cultural deve criar, uma outra oportunidade profissional de extremo interesse. Vou dizer uma coisa que alguns portugueses não entenderão: Marrocos, cuja capital está mais próxima de Lisboa do que Madrid, é um país cujo potencial de desenvolvimento da relação com Portugal o país está ainda muito longe de ter entendido, em especial na perspetiva da própria relação marroquina com Espanha e França. O futuro se encarregará de o demonstrar, se e quando viermos a ter uma política externa à altura.

Finalmente, porquê Buenos Aires? Desde logo, porque é um país fascinante, mas essencialmente porque entendo que, tendo nós a relação que temos com o Brasil - uma relação que, só por si, mereceria um "tratado" -, temos estrita obrigação de saber (um dia...) explorar o imenso potencial que existe na nossa articulação com um representante singular de um mundo hispânico que é o seu contraponto, que nos olha como um parceiro interessante e amigo, até para "escapar" ao abraço demasiado paternal  (com tudo o que complexo isso traz, como bem sabemos) da antiga potência colonial. E a Argentina é um caso ímpar nesse mundo latino-americano, no qual projeta a sua história ciclotímica, a sua ambição e a sua cultura, as suas frustrações e o modo muito particular de se colocar no xadrez desse espaço geopolítico de imenso futuro.

Nesta altura do texto, alguns colegas que me estejam a ler, estar-se-ão a perguntar: mas não gostaria ele de ter sido embaixador num posto tão importante como Washington? E Roma, essa cidade mítica para tanto diplomata? E a Representação junto da União Europeia, por onde hoje passa o essencial dos nossos interesses? Em diferentes tempos, tive o ensejo de ter sido colocado nesses três importantes postos e não o fiz, sempre e exclusivamente, apenas por opção pessoal. Reconheço, sem a menor dúvida, que se trata de postos diplomáticos cimeiros, do maior interesse e relevância, mas a nossa vida é feita de escolhas e eu sou plenamente responsável pelas minhas.

Mas vou mais longe. Noutra dimensão, ter-me-iam também interessado Moscovo, Nova Deli, Berlim (se falasse alemão, confesso que seria das primeiras opções), Pequim ou Tóquio. E teria curiosidade profissional em ter servido em postos tão diversos como Teerão, Ancara, Varsóvia ou em consulados-gerais com a importância de Barcelona ou São Paulo. Cada um de nós tem o direito de fazer as suas opções e as minhas aí ficam, de forma muito sincera. Aposto em como alguns amigos meus devem ter ficado surpreendidos com o que acabam de ler.

sábado, agosto 16, 2014

À conversa no "Pereira" (15)

- Então já te vais embora? Foi pouco tempo...
- É pá! A brincar, a brincar, foram duas semanas. Mas, tens razão, parece que foi ontem...
- E voltas para o ano?
- Se puder, volto.
- Já essa certeza não podem ter alguns Espírito Santo! Ainda há semanas andavam por ali calmamente na Comporta e hoje é o que se vê! 
- Se a Justiça que temos não funcionar, p'ró ano, ainda eles vão comer o belo peixe do Dona Bia ou os novos petiscos do Cavalariça.
- E, na pior das hipóteses, vão para férias um pouco mais abaixo...
- Mais abaixo? Para o Pego?
- Não! Para o Pinheiro da Cruz...

Falar na cadeia

A propósito da recente morte de Canais Rocha (1930-2014), um nome de que a esmagadora maioria dos portugueses nunca ouviu falar, veio ao de cima uma história antiga, relacionada com esse grande dirigente sindical e antigo militante do PCP.

Era um episódio conhecido nos meios políticos, ao tempo do 25 de abril: Canais Rocha, que se tornara na grande figura do sindicalismo português no início do período democrático, ao ser eleito o primeiro coordenador geral da CGTP, desapareceu de cena poucas semanas depois. Aparentemente, através da consulta da documentação interna da PIDE/DGS, o Partido Comunista veio a constatar que Canais Rocha havia revelado, sob tortura durante uma anterior prisão, nomes de militantes comunistas que, por essa razão, seriam presos. O PCP não perdoou, obrigou-o a renunciar ao cargo e afastou-o da sua militância. Anos mais tarde, Canais Rocha apareceu ligado ao MDP-CDE, uma espécie de partido "genérico" onde os comunistas colocavam os seus "compagnons de route".

A história das ditaduras está cheia de casos de militantes políticos, de todas as cores, que acabaram por "fraquejar" sob pressão da tortura - e a PIDE/DGS era particularmente violenta, com o uso da "estátua" e outras formas de tortura do sono. Victor Serge, um revolucionário mítico, tem sobre esse tema um livro muito curioso, que li há muitos anos, onde fala destes processos: "Ce que tout révolutionaire doit savoir sur la répression". O PCP tem também um pequeno manual intitulado "Se fores preso, camarada..."

Nunca na minha vida consegui condenar alguém que, sob tortura, tivesse "falado". Sei lá como me portaria se tivesse de suportar idênticas circunstâncias!. Tenho amigos que "falaram" e outros que "não falaram" na cadeia. Não tenho menor ou mais apreço por eles, por essa razão. Acho assim miserável que o PCP nunca tivesse reabilitado este seu antigo militante. Um partido também se mede pela sua humanidade.

sexta-feira, agosto 15, 2014

À conversa no "Pereira" (14)



- Já leste o documento do Costa? E as propostas do Seguro?
- Estou em férias... Para a semana, leio.
- Mas é muito importante saber o que cada um deles pensa para o futuro do país, ou não é?
- Claro que sim. Mas diz-me lá uma coisa: se acaso viesses a ler o programa do candidato que menos gostas e concluísses que, afinal, as propostas dele eram fantásticas, muito melhores do que as do teu preferido, mudavas e ias a correr votar no outro, nas "primárias"?
- Eu?! Cruzes, canhoto! Eu sei muito bem em quem vou votar, diga o outro o que disser. Sobre isso não haja a menor dúvida!
- Então isso quer dizer que, mesmo que o teu candidato tenha o programa mais fraco, tu votarias nele na mesma. Estás-te "nas tintas" para o texto que apresente. Votas é na pessoa que mais te agrada, não é?
- Bom, de facto, é assim.
- Então para que é que tu queres que eu leia os manifestos dos dois?
- Para te informares...
- Mas eu também já sei muito bem em quem vou votar.
- Ai sim?! E pode saber-se em que é?!
- Claro! É muito simples: é naquele que eu acho que mais facilmente pode derrotar este governo.

Uma nova NATO?

Há poucos anos, em Lisboa, a NATO estabeleceu o seu novo "conceito estratégico". Como acontece sempre com este tipo de documentos, ele traduz necessariamente um compromisso sincrónico entre várias perspetivas e diversas geografias de interesses. Assuma-se ou não, este "conceito" NATO dependeu essencialmente da nova filosofia americana sobre o mundo, fruto conjugado do ambiente pós-11 de setembro, das esperanças de poder encaminhar o espaço muçulmano para um diferente futuro institucional e daquilo que se pressentia poder vir a ser o modelo de enquadramento da Rússia num compromisso global de estabilidade. Os europeus, todos eles, carrearam para o texto as suas limitadas ambições como eterno ator secundário, desde logo a começar pela UE, esse poder vocal que, à falta de músculo militar, se anda a tentar convencer a si próprio de que pode exercer um papel de "soft power", armado dos seus instrumentos económicos, sacudidos pela fragilidades recentes. 

Muito mais rapidamente do que, há uns escassos anos, se poderia legitimamente estar à espera, o mundo mudou - e não no melhor sentido. Para além da continuação da cobardia euro-americana em fazer frente à recorrente chantagem israelita (o que, aliás, já teve mais importância como potenciador de descontentamento no Médio Oriente do que tem hoje), o "mundo NATO" começou por perceber as suas limitações na intervenção nos processos árabes, com o "fracassado êxito" da Líbia, com a total incapacidade de ser minimamente relevante na Síria e com o (já discreto e hipócrita) esbracejar perante o regresso da ditadura ao Cairo. No Afeganistão, a NATO contentou-se em ser "carro vassoura" dos EUA, país com o qual o diretório europeu partilha o "diálogo crítico" com o Irão nuclear, um Estado que, ironicamente, conseguiu ganhar tempo para ser hoje chamado a participar no quadro de resolução do atoleiro iraquiano. Ao que obriga a "realpolitik" do petróleo!

Mas é o caso da Ucrânia, e a revelação fria do modo como a Rússia de Putin II olha o seu "near abroad", que parece ser o banho de realismo de que a NATO necessitava para entender que o documento estratégico aprovado em Lisboa já está mais do que datado. Essa constatação autoriza-nos a revisitar abertamente os instrumentos institucionais que regularam o fim da guerra fria, bem como os compromissos deles recorrentes em matéria de colocação de armamentos convencionais. Mas isso deve ser feito preservando um forte sentido de realismo e de responsabilidade. Quero com isto dizer que essa reflexão deve afastar-se claramente de quaisquer perspetivas aventureiras, em especial sopradas por quem, no Leste do continente e da organização, já deu sinais de pretender transformar os seus medos e os seus traumas na linha diretriz da futura relação com Moscovo. Não temos a menor obrigação de tomarmos como nossas as fobias estratégicas dos outros, salvo se elas se revelarem relevantes para a nossa própria leitura do quadro de segurança em que acreditamos. A NATO é uma organização de defesa. Isto significa que pode ter de sacrificar vidas dos seus soldados para proteger os seus objetivos. Nem um tiro poderá ser disparado - até porque se sabe que seria sempre o primeiro de muitos - se não corresponder a necessidades imperativas da nossa defesa. Repito: imperativas.

Nos dias de hoje, a NATO e a Europa necessitam de olhar para Rússia com grande frieza. Devem perceber que estão perante um poder cujo maior risco é poder ter tentações imediatas de ação que não são controladas por um processo decisório interno equilibrado pelos "checks and balances" que caraterizam as democracias. Pelo contrário, estão marcadas por um poder autoritário tanto mais perigoso quanto dispõe de uma forte popularidade interna. Mas a NATO também deve compreender que não lhe podem ser indiferentes (e os não podem tratar como irrelevantes) os temores que hoje alimentam as atitudes de Moscovo. Por isso, mais do que nunca, "medidas geradoras de confiança" têm de ser tentadas e implementadas e é necessário um esforço multilateral nesse sentido. 

Se da reunião ministerial da NATO, em setembro, no Reino Unido, sair apenas uma linguagem jingoísta, como aquela que o seu atual secretário-geral se entretem desde há meses a espalhar, com "cara de caso", para "assustar" os russos, não iremos a lado nenhum. Os setores mais razoáveis da NATO necessitam de dizer aos russos que devem ajudar a irganização a fazer uma leitura real daquilo que são as suas verdadeiras pretensões. Respeitando os seus atendíveis interesses e confrontando com firmeza as suas ambições desrazoáveis.

Seria importante que, desde já, percebêssemos o que Portugal pensa sobre isto, sem necessáriamente surgir como um discreto "master's voice" do parceiro transatlântico. Muito da "batalha" futura com o autoritarismo moscovita, que veio para ficar, passa por este mar atlântico onde não somos um parceiro menor. Já perdi a esperança em que isto seja percebido no Restelo. Ainda conservo algum residual atentismo de que, nas Necessidades, alguém esteja acordado para isto. Mas posso estar a ser inocente.

quinta-feira, agosto 14, 2014

"A Questão Agrária"


Foi em 1971, em Paris. A livraria existia (ainda existe?) na rue de Monsieur le Prince, quase a chegar ao boulevard St. Michel, ao Luxembourg. Tanto quanto me recordo (mas posso estar enganado), havia, na altura, uma grade a bordar um passeio alto. Hoje, julgo que há por aí umas escadas a compensar o desnível forte desse passeio.

Não sei como fui lá parar, mas deve ter sido por uma dica de alguém que me disse que era possível aí adquirir a primeira edição, brasileira, da obra de Álvaro Cunhal, "A Questão Agrária em Portugal", editada pela "Civilização Brasileira". Não a devo ter encontrado na "Joie de Lire", repositório de "esquerdalhices" portuguesas onde me abastecia, sempre que passava por Paris.

Cunhal surgia-nos então como a grande figura mítica dentre os principais atores políticos da oposição à ditadura. Eu ouvira falar desta obra, que era tida por "fundamental". Consegui-la foi algo para mim muito interessante, porque me permitia ajudar à construção de uma biblioteca que, por essa época, eu cuidava em formar sobre a oposição ao Estado Novo - e que, ainda hoje, constituiu um conjunto muito completo de obras que me orgulho possuir (e que um dia irá também integrar a Biblioteca Municipal de Vila Real). Lembro-me que adquiri logo dois exemplares - e que foi uma compra cara! -, um dos quais para um amigo "do partido". Não sei como os trouxe para Portugal.

Anos mais tarde, em 1980, de passagem por Paris, fui a uma "Fête de l'Humanité" em La Courneuve. Lá estava o livro à venda no stand do PCP. Comprei mais um exemplar, também para oferecer.

Esta questão agrária ainda é atual? Leio que a ministra Assunção Cristas quer reverter a decisão de Francisco de Sá Carneiro de entregar parcelas de uma herdade alentejana a diversos rendeiros. O "Público", no quadro de comemoração das obras proibidas pela ditadura, anunciou ontem o lançamento de um "fac-simile" desta obra. Resta-me confessar que me não recordo de ter lido uma única linha desse livro "histórico". E agora, tenho mais que ler... 

quarta-feira, agosto 13, 2014

Eduardo Campos

A morte, às vezes, tem dias bem ocupados. Eduardo Campos, o promissor político brasileiro, neto de Miguel Arraes, candidato às eleições presidenciais brasileiras, morreu, há pouco, num acidente aéreo. Era uma figura de recorte "kennedyano", um orador convincente, com uma agenda de modernidade reforçada pela aliança, por muitos vista como algo estranha, com a ambientalista Marina Silva. Campos não parecia ter hipóteses de colocar em causa a condição de principal "challenger" de Dilma, assumida por Aécio Neves, mas numa eleição a duas voltas o seu papel poderia vir a ser importante nos "marchandages" em que a política brasileira é muito fértil. Esta tragédia reabre agora vários cenários de futuro.

Emídio Rangel (1947-2014)

Tal como se pode dizer, num outro tempo, para Luís Filipe Costa, a informação na rádio portuguesa não seria a mesma sem a TSF criada por Emídio Rangel. Que fez muito mais: ele foi a alma por detrás da SIC, o primeiro canal privado de televisão no nosso país e, por essa via, uma das maiores e mais criativas figuras nesse setor. Era alguém que tinha em si aquela irrequietude e ambição inventiva que os retornados trouxeram à sociedade portuguesa - e isto é um elogio, entenda-se.
 
Alimento há muito a tese de que, para o mal e para o bem e medidas as distâncias, Rangel acabou por ajudar à "criação" de dois primeiros ministros sucessivos - Santana Lopes e José Sócrates -, ao tê-los colocado por longos meses em confronto (e evidência política) dominical nos telejornsis da RTP.
 
Conheci mal Emídio Rangel. Recordo que não era um homem fácil, no seu estilo cortante e algo ácido-irónico, que lhe criou bastantes inimigos. Mas nunca ouvi ninguém negar-lhe a genialidade criativa. Deixar uma obra feita é coisa que conforta uma vida, como é de justiça ser lembrado na hora da morte.

Lauren Bacall - a legend

"If I'm a legend, I'm dead. Do you want me to be dead? Legends are of the past." (Lauren Bacall)

terça-feira, agosto 12, 2014

À conversa no "Pereira" (13)

- Não sabia que falavas alemão! Vi-te muito animado à conversa na praia com aqueles teus amigos "teutónicos".
- A vantagem de se falar com estrangeiros é que isso nos permite fugir dos temas inevitáveis das conversas entre portugueses - o BES e o PS.
- Isso é bem verdade! E de falavam vocês?
- Olha, quando passaste por lá, por acaso, estávamos a falar da "selfie" do macaco.
- É uma conversa bem mais interessante, de facto...

Robin Williams (1951-2014)

Nunca fui muito dado a nostalgias por figuras de Holllywood desaparecidas da cena. Não cultivo afetividade por figuras do cinema e, de certo modo, encaro a sua ocasional morte como a sequência normal de uma vida em que andaram sempre nas margens da ficção. Na qual, por definição, tudo é possível, até a própria morte, neste caso deliberadamente encenada pelo próprio.

No caso de Robin Williams, sempre o considerei um ator mediano. Ao tempo em que vivia na Noruega, divertia-me (confesso, não demasiado) uma série televisiva em que se apalhaçava com uma parceira, nuns diálogos para sorrir, que se chamava "Mork & Mindy". Reencontrei-o depois em vários filmes de segunda linha, sempre num registo caricatural excessivo, nos quais a sua qualidade de representação nunca me surpreendeu. De certo modo, ligo-o à figura de Steve Martin, o que, em mim, não é necessariamente um elogio.

Gostei muito do Robin Williams do "Good Morning, Vietnam!" Mas não sou um cinéfilo minimamente elaborado. Contento-me, nisso como em outras coisas da vida, em apreciar simplesmente aquilo de que gosto. E divertiu-me, como há muito me não acontecia, a figura daquele locutor magnífico, subversivo qb, que conseguia alegrar as tropas metidas no atoleiro militar. O filme, longe de ser uma obra prima, quase parecia uma sequela (menos boa, claro) do MASH. O que me foi suficiente para uns minutos de boa disposição.

Depois, voltei a reencontrar Williams no "Clube dos Poetas Mortos", onde esteve bem. Nos dois ou três outros filmes dele que vi depois, pareceu-me representar obsessivamente o seu "character", numa atitude de "clown" muito marcada. Teria ele consciência disso? Bom, para mim, desapareceu o fantástico locutor do "Good Morning Vietnam". É a imagem dele que quero guardar.

segunda-feira, agosto 11, 2014

À conversa no "Pereira" (12)

- Então andas a escrever sobre mitos urbanos sexuais no teu blogue?
- Sexuais!?
- Sim, disseram-me que falas lá de uma "figura púbica".
- Púbica? Eu falei de uma "figura púbLica"! Ouviste mal.
- Ah! Já estava a estranhar... Não te via nesse registo.
- E tu, já viste o filme "Os Canhões de Navarone"?
- Já. Porquê?
- Por nada...

Os mitos urbanos

 
O tempo estival, com as conversas na praia, entre a "Flash" e a 'Gente", é o pasto social certo para a alimentação daquilo a que os anglo-saxónicos chamam "urban legends". São historietas bizarras que se repetem ("estou a contar-ta como ma contaram!) de boca em boca e que, nos últimos anos, encontraram nas redes sociais um terreno excelente para divulgação.

Alguns desses "mitos urbanos" ficaram clássicos. Há a do tipo cuja sogra teve um ataque de coração e morreu, em Espanha. Para evitar burocratices, a família trouxe o cadáver da senhora "sentado" no carro, passou a fronteira, parou numa bomba de gasolina, saiu por um minuto e... roubaram-lhes o carro (com a sogra dentro!). E quem conta a história acrescenta: "Até hoje!". Na internet, enviada por amigos reformados, quem é que não recebeu já os "avisos" clássicos para não se aceitar uma bebida oferecida por estranhos, logo apimentado com o caso de alguém que, depois disso, adormeceu e, quando acordou, tinham-lhe tirado um rim, para venda de órgãos?

Às vezes, os "mitos" são políticos. Durante anos, muita gente tinha visto (ou tinha-lhe contado uma prima que tinha um colega que tinha visto) uma fotografia com o Otelo a levar aos ombros o caixão de Salazar. Nunca soube bem o que isso provaria, se acaso fosse verdadeiro, mas corria nos meios "anti-25 de abril" como facto indesmentível. Outro, de idêntico jaez, era a célebre fotografia (que também ninguém viu, mas que alguém tinha um afilhado de um primo de uma tia que jurava "a pés juntos" que lha tinham mostrado) de Mário Soares a pisar a bandeira nacional, numa manifestação em Londres. Um dia, Soares, confrontado diretamente por uma miserável repetidora da canalhice, colocou-lhe um processo em tribunal, que naturalmente ganhou, e o boato esmoreceu. 

Agora, desde há umas semanas, anda por aí outro "mito urbano" (sobre o qual não dou o menor dado, para não ajudar "à festa"), envolvendo uma figura pública. Já ouvi três versões, cada uma mais pateta do que a outra. Nem o facto de ser totalmente inverosímil faz com que algumas pessoas se coíbam de repeti-lo, às vezes distanciando-se ("foi o que me disseram..."), mas deixando ainda um toque se segurança: "mas não há fumo sem fogo..."

Memória da tropa, depois de abril

Ontem, falei aqui de um juramento de bandeira ocorrido nas vésperas do 25 de abril, na Escola Prática de Administração Militar (EPAM). Hoje, conto algumas coisas aí passadas imediatamente após o golpe de Estado.

Convém dizer que, contrariamente ao que tudo faria prever, o ambiente de harmonia política entre alguns oficiais milicianos, entre os quais eu me incluía, e o novo comando da EPAM não durou muito tempo. Por razões políticas e motivos militares.

As razões de natureza política prendem-se com as dúvidas que, desde a primeira hora, o texto do "programa" do MFA suscitou em alguns de nós. Em causa estavam as equívocas orientações sobre a política colonial e o estranho "wording" do texto sobre o associativismo político permitido. À época, desconhecíamos, por completo, que essa ambiguidade fora produto do compromisso, logo no "posto de comando" da Pontinha, entre a vontade do MFA e as posições de Spínola e da ala mais conservadora da recém-indigitada Junta de Salvação Naciinal.

Logo no dia 26 de abril, numa reunião ao final da tarde com o novo comando e os oficiais do quadro, tive o ensejo de suscitar, em nome de alguns colegas milicianos (outros, talvez a maioria, não colocavam grandes objeções ao curso das coisas), as nossas dúvidas e a leitura de que se tratava de um programa inaceitavelmente "recuado". Que o era veio a ser confirmado pelos factos: o processo descolonizador aceleraria quase de seguida e a realidade das ruas veio dar aos partidos a força e a dignidade que o "programa do MFA" ainda hesitava em conferir-lhes.

Algo se agravaria, contudo, algumas semanas depois. A recusa de dois milicianos de integrarem uma força militar que se iria opor ao movimento de greve nos CTT levou à prisão desses colegas, originando mesmo uma manifestação pelas ruas de Lisboa, sob o lema "Anjos, Marvão, libertação", que foi realizada não obstante a sua proibição e onde fiz questão de participar. Na nossa unidade, de onde eles eram originários, o ambiente de revolta era grande e muitos de nós não deixámos de o potenciar.

Por esses dias, ocorreria um juramento de bandeira, o primeiro após o 25 de abril. Embora a "Ação Psicológica" tivesse sido abolida (o que me deixava com muito pouco para fazer), a tarefa de orador coube-me de novo mim, muito embora a ninguém tivesse passado já pela cabeça "visar" superiormente o texto que eu ia escrever e ler. O que foi pena: o meu discurso acabou por ser de uma inaudita violência, contestando orientações e práticas do ainda jovem MFA. Lembro-me de nele ter perguntado, ironicamente, coisas tão insensatas como se, às forças armadas, passaria a caber o papel de se substituir às estruturas representativas da ditadura, na gestão violenta dos conflitos laborais. E dei também fortes "bicadas" no que considerei ser a "falta de vontade política" de fazer avançar o processo de descolonização. No geral, o texto era de uma inaceitável pesporrência. O meu radicalismo de então vinha ao de cima...

Não seria apenas o comandante da unidade a ficar desagradado comigo - o coronel Marcelino Marques, um homem excelente, a quem nunca cheguei a pedir a devida desculpa por toda aquela minha infantilidade. Dias depois, eu seria chamado à direção do Serviço de Administração Militar, bem como ao Estado Maior do Exército, onde fui objeto de duas repreensões orais sucessivas. A circunstância do "Diário de Notícias" ter publicado uma reportagem sobre o assunto e do "República" ter respigado desse texto um extrato que considerou uma aberta defesa da repressão (eu próprio fui ao jornal falar com o autor do texto, Mário Mesquita, para esclarecer o equívoco), num tempo complexo e já tenso como o que então se vivia, criou à minha volta um ambiente crescentemente desagradável. A situação agravou-se ainda mais em meu desfavor quando contestei abertamente, com outros colegas, uma punição militar decidida pela hierarquia da unidade a um soldado-cadete, já não me recordo porquê. Fui então convocado pelo comando da unidade e foi-me feito um ultimato: ou eu me comprometia a entrar "na linha" (no que subsistiam poucas esperanças) ou saía da unidade pelo "meu pé". Se continuasse com a atitude que vinha a ter, seria expulso. Optei pela segunda hipótese e foi assim que vim a ser colocado na "comissão de Extinção da ex-PIDE/DGS e LP", no início de junho de 1974. Fiquei colocado, por uns dias, no estabelecimento prisional de Caxias.

Desde então, e até passar à disponibilidade, em Agosto de 1975, ainda viria a ser assessor da Junta de Salvação Nacional (até à extinção desta, em fins de setembro de 1974), a integrar a 2ª divisão do Estado-Maior General das Forças Armadas (até à suspensão desta, em fins de abril de 1975) e a ser "fundador" do SDCI (Serviço Diretor e Coordenador da Informação) do Conselho da Revolução (de onde me demiti, em julho de 1975). Pelo meio, fui ainda relator da Comissão de inquérito ao motim dos agentes da PIDE/DGS (agosto/setembro de 1974), efémero integrante da "comissão ad hoc para investigar os acontecimentos de 28 de setembro"(outubro de 1974) e participei em várias Assembleias do MFA. Há um mistério que já desisti de resolver: explicar como me foi possível, ainda dentro desse mesmo período de um ano, fazer exame de uma cadeira universitária que tinha em falta e, após isso, concorrer, estudar e ser aprovado nas exigentes provas de acesso à carreira diplomática. Ah! e manter, em todo esse tempo, um emprego diário de quatro horas presenciais na empresa de publicidade Ciesa-NCK, fazer locução para filmes na "Cinegra", participar de forma razoavelmente ativa no Movimento da Esquerda Socialista (MES), bem como escrever e editar, com um amigo, um livrito chamado "O Caso República", aliás um dos grande insucessos editoriais da época. Quanto temos vinte e tal anos, de facto, tudo é possível.

domingo, agosto 10, 2014

Grande Agostinho!


Hoje, último dia da Volta a Portugal, este blogue deixa uma saudação à memória do grande Joaquim Agostinho.
 
Ele foi, não apenas o mais extraordinário ciclista português de sempre, mas, principalmente, alguém que, durante largos anos, foi uma referência e um orgulho para todos os portugueses espalhados pelo mundo.

À conversa no "Pereira" (11)

- Olha lá! Então agora deixaste de ser embaixador? Um jornal trata-te por "ex-embaixador".
- É apenas um lapso. Algumas pessoas acham que quem deixa de chefiar de uma embaixada passa a "ex". Desconhecem que a categoria de embaixador é o último escalão da carreira diplomática e é independente do facto de se dirigir ou não uma embaixada. Houve mesmo embaixadores que nunca chefiaram uma embaixada.
- Não acredito!
- Por exemplo, o Franco Nogueira.
- O quê?! O embaixador Franco Nogueira, o MNE do Salazar, nunca foi embaixador em nenhum sítio?
- Não, o máximo posto que ocupou no estrangeiro foi de cônsul-geral.
- Não fazia a menor ideia.
- E já viste quem ali vai a passear?
- Tens razão! É o general Eanes!
- Mais um que ainda se arrisca a que, um dia, alguém o trate por ex-general...

Juramento de bandeira

O juramento de bandeira é aquele momento solene em que os soldados prestam fidelidade à instituição militar em que formalmente ingressam, no termo da instrução. No tempo em que por lá passei, há mais de quatro décadas, esse era um momento em que alguns nos confrontávamos com a contradição de iniciar o serviço numas forças armadas com cujos objetivos nos não identificávamos, ao tempo da ditadura e da guerra colonial.

Lembro-me do meu divertido "juramento de bandeira", na parada do quartel de Mafra, comigo e muitos outros a optar por apenas balbuciar o juramento, sem emitir nenhum som, o que tornou algo bizarra a cerimónia, para fúria dos nossos superiores, os quais, olhando para nós à distância, não distinguiam quem, de facto, não pronunciava audivelmente o compromisso.

Na entrevista que ontem dei ao "jornal i", surgiu numa "caixa", mas nada aparece no texto, uma referência a um discurso que pronunciei num juramento de bandeira na Escola Prática de Administração Militar, em inícios de 1974. Foi a jornalista Isabel Tavares que me suscitou a história, informada não sei bem por quem. Seguramente por falta de espaço, o episódio não surge no texto. 

Eu era "oficial de ação psicológica" da unidade (além de instrutor, bibliotecário e diretor do jornal "O Intendente"...) e tinha a meu cargo os discursos no dia dos juramentos de bandeira. Decidi escrever um texto muito burilado e ambíguo, que ainda conservo algures, aliàs com um despacho de concordância prévia (que era essencial) do comandante da unidade. No texto, eu fazia uma série de "desafios" aos novos soldados, do género: "se acreditais que para o futuro de Portugal se torna imperativo esmagar militarmente quantos se opõem à continuidade da presença portuguesa nas suas possessões africanas, então deveis jurar a fidelidade que vos é pedida". E continuei com outras frases de natureza condicional similiar. Lembro-me que, antes de obtido o "imprimatur", apenas mostrei o texto ao então soldado-cadete António Reis, um amigo que viria a ter um papel destacado no 25 de abril e no período político subsequente, que chegou a duvidar que o texto "passasse".

No dia da cerimónia, li o texto com alguma apreensão, perante o silêncio pesado de toda a unidade e convidados, reunidos na ampla parada. Quando terminei, vi o brigadeiro chefe do serviço de Administração Militar levantar-se da tribuna e, à distância, ordenar-me: "Nosso Aspirante! Chegue aqui!" Um frio percorreu-me a espinha e atravessei aquelas dezenas de metros numa imaginável taquicardia. Subi os degraus do palanque, fiz a necessária continência e dei-me então conta da mão estendida do oficial general, que me dizia: "Quero felicitá-lo pela elevação do seu discurso!" E acrescentou outras amenidades, que toda a tribuna e os oficiais presentes ouviram. Sorrindo por dentro, fui juntar-me ao grupo de Aspirantes e Alferes que assistiam à cerimónia, alguns discretamente divertidos pelo equívoco com que eu tinha "levado" o brigadeiro. Recordo bem o comentário do Alferes Mário Viegas - esse mesmo, o ator e criador teatral, na imagem - que me disse, baixo: "quando o gajo te chamou, julguei que era para te dar voz de prisão..."

À cerimónia, seguiu-se um beberete. Notei que o comandante da unidade, o tal que havia dado o seu "visto prévio" ao texto, me olhava de soslaio. A certa altura, disse-me: "Estive a pensar melhor no seu discurso. É, de facto, um belo texto. Aqui ou na Checoslováaquia...". Fiz uma "cara de caso" e terei dito: "Não estou a perceber, meu comandante...". Ao que ele retorquiu, antes de me virar as costas: "Está, está!". Meses depois, quando participei na sua detenção, na manhã de 25 de abril, é capaz de ter-se lembrado do episódio.

sábado, agosto 09, 2014

À conversa no ""Pereira" (10)

 
- Esta história do Novo Banco ter cortado o crédito ao Benfica é muito chata...
- Porquê?! Já era tempo de vocês começarem a pagar as contas!
- Olha a "lagartada" a falar! Vocês, se calhar, ainda devem a relva da Academia de Alcochete!
- Tá bem, tá! Mas não andamos a vender a equipa a retalho.
- Não deixa de ter graça! Logo tu a falares do retalho...
- Por este andar, um destes dias, vocês ainda alugam a águia...
- Deixa-te de conversas! Isto é uma crise que atravessa todos os clubes. Ninguém escapa, vais ver!
- És capaz de ter razão. Mas há uma coisa de que ainda estou à espera.
- O quê? 
- Que alguém venha dizer que, lá no fundo, a culpa do estado a que o Benfica chegou é do governo do Sócrates!
- Pronto! Só faltava essa! A seguir ainda me vens com o PEC 4, não?
- Ó Isabelinha! Traga mais dois cafés.

À conversa no "Pereira" (9)

- Já li a tua entrevista ao "jornal i" hoje.
- E que achaste?
- Não gostei daquela parte sobre o PS...
- Porquê?
- Parece que dás legitimidade ao Seguro para se agarrar ao lugar...
- O que eu disse foi que ele, tendo ganho as eleições internas há um ano, tem todo o direito de considerar que está lá por direito próprio. Além disso, ele faz uma leitura positiva das vitórias que o PS teve nas autárquicas e nas europeias.
- Mas tu achas mesmo que a vitória nas europeias foi uma coisa "por aí além"? 
- Não, não acho. Por isso é que me parece que as primárias são uma boa ideia. Sem prescindir da legitimidade formal, ele abre a porta a que as pessoas se exprimam por outra via. Se for em seu desfavor, ele já disse que sai.
- Não era mais fácil fazer um congresso e eleições internas?
- Acho que isso seria pedir demais a quem ganhou um congresso há um ano e na sequência dele fez entrar gente do Costa para a sua direção. Não podemos só olhar para um lado das coisas.
- Mas achas mal que o Costa tenha avançado?
- O Costa tem plena legitimidade para querer uma mudança de rumo. E não estou minimamente de acordo com quem o acusa por ter avançado. Ele é um grande quadro do partido, com provas dadas e, como se vê, dá voz a muita gente, dentro do PS, que está muito descontente com a atual direção, que acha que o partido "assim não vai lá" e que, a continuar desta forma, pode até vir a não ganhar as legislativas em 2015. Por isso, as eleições primárias são a oportunidade para testar se a maioria pensa ou não como ele.
- Continuo a não estar de acordo contigo...
- Não me digas que, por causa disso, sais daqui do "Pereira" e passas para a esplanada do "Onda Azul"?
- Não, continuo aqui no "Pereira". Um café é como um partido. As discussões fazem-se cá dentro...

Entrevista ao jornal i

Foto de Ricardo Cabrita
 
Aqui fica a entrevista que hoje dou ao jornal i

sexta-feira, agosto 08, 2014

À conversa no "Pereira" (8)

- Viste a atitude daquele tipo, ao balcão?
 
- Não! O que foi?

- Perguntou à Isabelinha de onde vinha o café que é servido no "Pereira". Ela, coitada, foi ver o rótulo e disse que era de Angola. O tipo atirou com a chávena e disse: "com esses gajos não quero mais nada!". E saiu pela porta fora. 

- Quem seria o homem?

- Dizem que era o contabilista do BES no Luxemburgo...

A direita, de Costa a Costa

Durante meses, senão mesmo anos, a direita burguesa, em especial lisboeta, incensou António Costa. Dos "dîners en ville" às conversas mais sérias, Costa era o "enfant chéri" das pessoas "bem" - e podem crer de que sei do que estou a falar. Era sempre sublinhado o seu sentido de Estado, o seu humor e cultura, a sua personalidade forte, a experiência governativa, o saneamento feito na autarquia. Nas redes sociais conservadoras ou mesmo "reaças", era-lhe quase sempre dado um claro benefício da dúvida, o que passava a mensagem subliminar de que, no fundo, "O PS, com o Seguro, não vai lá!" mas que "Ah!, se fosse o Costa, bom, isso então tudo fiava mais fino!".

António José Seguro era olhado com sobranceria, com um "parvenu" de província, com um "boyish style" insuspeito de carisma, o ar  de eterno "calimero", de um "jota" crescido, que dificilmente levaria o PS a parte alguma, muito menos ao lugar de Passos Coelho. Concedia-se, no limite, que "pode ser que seja sério", o que é, nos dias que correm, uma espécie de atestado mínimo de aceitabilidade política, embora às vezes dispensável, como é sabido. Mas era um "coitado". Sempre que apresentava uma medida, a imprensa "desfazia-a" no dia seguinte: era logo qualificada como uma proposta "avulsa", feita a reboque dos acontecimentos, não inserida num projeto político coerente e diferente. Quando, um dia, se decidiu a apresentar uma "batelada" delas, então foram medidas a mais! Não, não ia lá!

Vieram as europeias. Em face do seu próprio descalabro, a direita percebeu, num instante, que a potencial alternativa partidária não tinha sequer aproveitado a sua queda. O desgosto ficou assim mitigado e viu, já com alguma satisfação, instalada a imediata confusão no campo adversário. Observou Costa a desafiar, a sério, a liderança de Seguro, dando voz a um setor do PS que não se conformava com a escassez da vitória. Viu as espadas saírem a terreiro, os caceiteiros desengravatados dos dois lados a afinarem a voz nas tv's, a tecla nas colunas de retratinho ao canto e nas redes sociais, para as grosserias e para as insídias, a acidez em ambos os campos da família do Rato a vir ao de cima, como um "remake" dos tempos "do sótão", só que agora em registo de lota.

Discretamente, a direita começou por se rir da imensa zizania instalada no seio "dos chuchas". E, logo de imediato, tentou cavalgar a onda, pela desqualificação: "Aquilo no PS é um saco de lacraus! Vai ser o bom e o bonito!". A ideia das "primárias" e a perspetiva do longo e penoso desgaste que elas implicavam para o ambiente no PS e a sua capacidade de sustentar uma oposição eficaz encantou-os: "Vão pegar-se todos à estalada. No fim de setembro são um partido totalmente partido". E o sonho, já perdido, de uma vitória em 2015, começou então a renascer, ainda a medo, das catacumbas da S. Caetano a S. Bento. Nem que tivessem de aturar o CDS, uma vez mais! Ficar no poder vale bem uma missa!

Entretanto, Costa começou a mostrar-se, a andar pelo país, com muita gente à volta, com as estruturas partidárias a equilibrarem-se, usufruindo da sua tradicional boa imprensa, a sugerir-se como um potencial PM. E toda essa gente do "outro lado" que, até então, ele encantava nos salões, que gabava a sua firmeza e assertividade elegante, que lhe destacava a irrepreensível urbanidade e abertura, passou a olhar como suspeitos os seus "silêncios" táticos na Quadratura do Círculo, a fazer a exegese de tudo o que ele dizia ou, mais importante ainda!, do que ele, afinal, não dizia. Começou a perceber que, de facto, talvez Costa pudesse vir a converter-se numa grande "chatice", se acaso chegasse a disputar S. Bento com Passos Coelho.

E é assim que, quase de um dia para o outro (a "Opinião" do "Observador" tem sido disso o melhor barómetro), o "olhar" sobre Costa mudou, radicalmente: "Olhem que o homem não fecha a porta a ligar-se aos comunas!", "É a tralha socratista aí de volta, vais ver!", "Já ouviste o que ele disse sobre o cumprimento do Tratado Orçamental? É de uma grande irresponsabilidade!", "E aquela gestão na Câmara é um bluff! Olha o estado em que está o lixo! Ó filha! e os buracos?!", "O homem, afinal, agora vê-se: não tem uma ideia!", "E não é que ele não quer falar do défice? Se calhar também não quer pagar a dívida!?" e coisas assim. O Costa simpático, moderado e consensual, transformou-se, de um dia para o outro, no Costa perigoso, esquerdista, quiçá vermelhusco.

E, nesta deriva mundana saltitante, já um tanto atoleimada, passaram a ouvir-se vozes, em contraponto, a dizer coisas do género: "Ó qu'rida! Pelo menos, o tal de Seguro não se bandeia com o PC, essa é que é essa! Já este...". Ou então: "O "menino" já viu como o Seguro fala agora, bem mais "solto"? Ele, afinal, tem mais garra do que parecia. E vai fazer cara a vida ao Costa, ai vai, vai!". Até que, de uma dessas vozes, feminina e "rouca", muito Linha, "p'cebe" e pulseiras, mas sem nada de parva, veio um angustiado argumento: "Isto não é tão fácil como parece! O Costa, se for montada uma boa campanha a acusá-lo de estar ligado ao Sócrates, pode ser que venha a suscitar rejeição no eleitorado. Mas vai ser difícil, porque ele é bastante popular. Já o Seguro, com aquele ar agora um pouco mais determinado, será que vai conseguir dar a volta? Se arranjar coragem para se distanciar abertamente do "Sócras", com o balanço de uma vitória nas primárias e se a economia descarrilar um pouco, pode final ser bem mais perigoso do que pareceu nas europeias. Mas isto está mesmo muito complicado!"

Devo dizer que, como "voyeur" assumido da direita doméstica, especialidade masoquista em que tenho um MBA com distinção pela universidade do meu bairro, isto é, da Lapa, sigo com grande curiosidade lúdica esta sua deliciosa angústia, esta tragédia de, afinal, ter de escolher entre quem a vai derrotar. Porque, como dizia o outro, lá no fundo, a direita já percebeu que vai perder, só não sabe é com quem e por quantos...

ps - prometi e dedico este post à minha amiga Helena, a de Tróia. A sério!

quinta-feira, agosto 07, 2014

As perguntas sobre a PT

Raramente tenho visto um governante fazer um ataque tão cerrado a uma empresa como aquele que, nas últimas horas, Pires de Lima fez à gestão da PT, a propósito, não apenas das suas incríveis trapalhadas com o grupo Espírito Santo, mas igualmente face ao "saldo" do negócio brasileiro da empresa. Fico com a sensação de que esta intervenção do ministro da Economia, a que não deve ser estranha a sensibilidade que resulta da sua experiência empresarial, não está minimamente em consonância com a forma como o primeiro-ministro costuma abordar este tipo de assuntos. Logo veremos.

Devo dizer que percebo a frustração de Pires de Lima. Noutras funções, acompanhei muito de perto a saudável aventura da PT no Brasil, nos tempos gloriosos da "Vivo". Testemunhei os receios brasileiros de ver a operadora portuguesa assumir uma posição predominante, não apenas nesse mercado, mas, igualmente, num quadro lusófono alargado, como à época se prespetivava. A força da PT assustava claramente o protegido e protetor setor brasileiro. As propostas que a PT então apresentou, num quadro potencial de proposta de alianças, não agradavam aos brasileiros, por não confortarem as suas nunca escondidas legítimas ambições de dominação. 

Por sucessivas opções estratégicas, o resultado é o que hoje se vê. A PT tem muito que explicar e é tempo de alguém, como agora fez Pires de Lima, colocar "a boca no trombone". É que imagino que, tal como a mim, tenha feito alguma impressão a Pires de Lima ler ontem o comunicado do CFO da ÓI onde, com sobranceria, se falava da vida interna da "nossa controlada PT Portugal SGPS".

Em tempo: o presidente da PT, Henrique Granadeiro, anunciou a sua demissão. Era o mínimo. Agora, vamos às explicações

A frase de Carlos Costa

Carlos Costa, governador do Banco de Portugal é homem sério e competente. Neste difícil caso do BES pode ter cometido alguns erros na avaliação atempada dos factos, o que conduziu a que o seu processo de decisão acabasse por parecer desfasado daquilo que a realidade exigiria. Mas nós não estamos na pele dele nem temos ideia das "descobertas" que, tanto ele como Vitor Bento, foram sucessivamente fazendo, à medida que a "cebola" BES ia sendo descascada. Alguém que sabe do que fala disse-me que a sensação que eles tiveram foi a de um cirurgião que só acaba por ter a verdadeira noção da gravidade da doença depois de "abrir" o paciente. Ao dizer isto, estou a ter para com ele a consideração que muitos dos seus amigos não tiveram para com Vitor Constâncio.

Em abono de Carlos Costa, devo dizer que, "visto, lido e respigado" (onde é que isto se dizia, no passado?) muito do que já se escreveu sobre o assunto, fica a sensação de que a solução encontrada terá sido a que, potencialmente, parece ser a mais favorável, no equilíbrio global de interesses. Que, por definição, não é neutro para nenhum deles.

Numa coisa, porém, Carlos Costa pode ter cometido um grave erro: ao ter afirmado que "a medida de resolução, agora decidida pelo Banco de Portugal, e em contraste com outras soluções que foram adotadas no passado, não terá qualquer custo para o erário público e nem para os contribuintes". Esqueceu-se porventura de acrescentar: "se tudo correr bem"...

É hoje evidente que isso pode, ou não, ser verdade. Para a vida, essa frase vai ficar-lhe colada à pele. Se tiver razão, a sua presciência será creditada, com louvor, no seu excelente currículo de grande servidor público. Se acaso se tiver enganado, esse erro não lhe será perdoado pela História. E pelos contribuintes.

Comes & bebes


Hoje, coloquei um interlúdio gastro-lúdico no "Ponto Come", a propósito das terras por onde preponderaram os Espírito Santo e por onde tenho andado. Coisa despretenciosa e leve, para o Verão e como verão. 

quarta-feira, agosto 06, 2014

À conversa no "Pereira" (7)


- Viste passar o défice?

- O défice?!

- Sim, passou há bocadinho por aqui... Então não ouviste os dois F16 a passar? Aquilo anda a Chanel  nº5...

- Vê-se mesmo que fizeste a tropa na Marinha!

- Porquê?!

- Porque tu não "ouves" o défice dos "teus" submarinos, que é bem maior!

Edouard Balladur (2)

O tempo (ou a preguiça) estival suscita mais a memória.

Ontem, falei por aqui de Edouard Balladur. Uma nota de JP Garcia fez-me recordar um episódio. Um dia, no início de 2012, o meu colega romeno em Paris, Bogdan Mazuru, havia-me convidado para um almoço com Edouard Balladour. Não havia nenhum motivo especial, tratava-se apenas da possibilidade proporcionada a uma meia dúzia de amigos para encontrar o antigo PM francês, ouvindo-o discorrer um pouco sobre a vida política do país, nas vésperas das eleições presidenciais. Estava-se ainda no tempo da presidência de Nicolas Sarkozy, de quem Balladur era próximo e, sabia-se, discreto conselheiro.

Na manhã do dia do almoço, a imprensa francesa surgiu carregada de fortes títulos, que faziam ressuscitar o escândalo que por lá se chama de "affaire Karachi". Trata-se de uma clássica acusação de que a campanha presidencial de Balladur, em 1994, teria sido financiada por dinheiros oriundos de um contrato de armamento com o Paquistão. O facto de Sarkozy ter estado no centro de direção dessa campanha tornava então o tema mais apelativo para a imprensa. As sombras em torno do nome de Balladur, por uma qualquer razão conjuntural que não posso precisar, voltavam a adensar-se e a sua honorabilidade política e pessoal - um "fond de commerce" que ele cuida obsessivamente em preservar - era fortemente posta em causa.

Lembro-me que entrei no Palais de Béhague, ali na rue de Saint Dominique (interlúdio gastronómico: não percam, no 129, o "Fontaine de Mars" e, no 79, neste caso apenas se lhes tiver saído o Euromilhões, o "Thoumieux", que este ano foi duplo-estrelado pelo guia Michelin), com a sensação de que iríamos ter um almoço sem o convidado principal. À subida dos esplendorosos mármores da escadaria da residência romena, esta minha opinião foi também partilhada por dois outros convivas. E mais se acentuou quando, com um copo de champanhe na mão, todos sentimos os minutos passar. Então o pobre do Balladur, depois de uma manhã de massacre mediático, repercutido por tudo quanto era rádio e televisões, podia lá dar-se à maçada de ir almoçar com um grupo de embaixadores cuscuvilheiros sobre a "petite politique" doméstica?!

Era não conhecer o personagem! Estávamos nós nesta íntima e partilhada interrogação quando, com aquele ar de aristocrata florentino do retratismo italiano, com impassibilidade snobe que lhe fez o estilo e lhe arruinou os votos, Edouard Balladur fez a sua entrada serena na magnífica biblioteca do Palais de Béhague (se conseguirem, tentem um dia visitar o espaço e, de caminho, peçam para ver o original teatro que a embaixada também comporta). Cumprimentou-nos a todos com aquele fácies um tanto sobranceiro que nunca o abandona, coroado por aquilo a que os britânicos chamam o "stiff upper lip", mas completamente à vontade, como se, para ele, esse início de dia tivesse sido igual a todos os outros.

O almoço acabou por ser muito interessante. Eu estava à direita de Balladur (era sinal que a minha antiguidade em Paris prenunciava a saída próxima...) e tenho na memória a apreciação serena, tanto quanto possível distanciada, com que nos falou de Sarkozy, dos conflitos deste com Villepin, das tricas dentro da UMP, da sobrevivência difícil de Fillon como PM, da debilidade de Borloo como "esperança" centrista, entre outros comentários. Tudo num tom de uma certa arrogância de quem fala já de um lugar na História, numa conversa às vezes acidulada mas sempre muito medida, com notas irónicas sobre Hollande e, em especial, sobre Martine Aubry. Lembro-me da leitura muito realista que fez das interrogações económicas europeias do momento e da forma hábil como, respondendo a uma questão mais aguda que lhe coloquei, me colocou de imediato "à defesa" com uma curiosidade sobre um qualquer aspeto da nossa debilidade económico-financeira nacional. 

Claro que a nenhum de nós passou pela cabeça interrogá-lo, durante o repasto, sobre as suas atribulações pessoais, ligadas ao "affaire Karachi". A diplomacia é também a arte de conseguir rondar os extremos da curiosidade sem ultrapassar as fronteiras do incómodo. E, assim, tudo acabou por se converter num belo almoço, informativo e formativo. No que me toca, não lhe falei do meu papel no "Le pouvoir ne se partage pas", de que ontem aqui falei. "Bien entendu"! 

ps - dedico este post ao meu querido amigo JP Garcia, responsável por muita da minha educação gustativa por mesas parisienses.

terça-feira, agosto 05, 2014

À conversa no "Pereira" (6)

 
- É impressionante como já toda a gente se esqueceu de Vitor Gaspar! Há um ano, era um dos nomes mais falados no país, hoje já ninguém se lembra dele! Nem sequer na lista dos potenciais comissários apareceu alguma vez...

- Mas a sua influência ainda está muito presente. Viu-se bem neste caso do BES.

- No caso do BES? Essa agora!?

- Onde é que tu achas que o Carlos Costa aprendeu aquela forma arrastada e lenta de resolver os problemas?

Os EUA e Israel

O "New York Times" aborda hoje o estado das relações entre os governos americano e israelita e, muito em particular, o momento menos bom que o entendimento entre Obama e Nethaniahu estará a atravessa, face à inédita reação pública negativa de Washington perante a carnificina em Gaza. Este tipo de notícias tem sempre de ser lido com extremo cuidado, porque nada é menos inocente na imprensa americana do que o tratamento de tudo quanto se prenda com Israel. 

Em contraste com a suposta tensão que se vive entre as duas administrações, o jornal nota que a opinião pública americana está esmagadoramente a favor da ação musculada de Telavive, o que levou mesmo o PM israelita a considerá-la "terrific" (para quem seja menos versado em inglês, o termo significa "magnífica" ou coisa assim). Foi sempre assim: os EUA foram quase sempre "mais papistas do que o papa" nesta matéria.

A este propósito, lembrei-me de repetir um episódio que testemunhei em Nova Iorque e que aqui contei há uns anos.

Na primeira metade de 2001, estive presente num jantar anual organizado por uma associação de amizade Estados Unidos-Israel, cujo nome exato não posso precisar. Por uma qualquer razão, um grupo restrito de embaixadores junto das Nações Unidas era convidado para esse evento. A cada um competia a presidência de uma das mesas, com cerca de uma dúzia pessoas, pelas quais se desdobrava o imenso repasto, num local luxuoso de Nova Iorque. A bandeira portuguesa, tal como a americana e a israelita, figurava no centro da mesa em que eu me sentava.

O convidado de honra desse jantar era Shimon Peres, então vice-primeiro ministro e ministro dos Negócios Estrangeiros de um governo israelita chefiado por Ariel Sharon. Peres teve uma intervenção de grande sensatez, com elevado sentido de compromisso, sublinhando os riscos que havia se se viesse a provocar o isolamento de Yasser Arafat e da Autoridade Palestiniana. O futuro, aliás, veio a dar-lhe completa razão.

O ambiente que recebeu as palavras de Peres, nesse encontro que juntava uma elite da comunidade judaica americana, foi de um progressivo gelo. Passados os primeiros minutos do discurso, as palmas que tinham começado por sublinhar algumas das suas frases esmoreceram, até desaparecerem por completo. No final, notei que, na minha mesa, eu tinha sido o único a aplaudir. Na cara e nos comentários secos dos meus vizinhos senti a rejeição profunda da mensagem de Peres. Ouvir alguém falar de perspetivas de negociação com os palestinianos, com cedências na política de expansão dos colonatos, na lógica do "land for peace", era um visível sacrilégio para aquelas pessoas, que aparentemente consideravam que, das suas "trincheiras" de Manhattan, defendiam melhor os interesses de Israel do que um seu líder histórico. Nessa noite, confirmei muito do que pensava sobre o papel da comunidade judaica americana na questão israelo-palestiniana.

À conversa no "Pereira" (5)

 
- Isto está um inferno! Já fui a Tróia e agora mesmo ao Multibanco da entrada de Soltróia e nenhum deles tem dinheiro!

- Porque é que não tentas ir à Comporta. Lá devem estar cheios "dele"...

(Ouvi isto há cinco minutos. Juro!)

À conversa no "Pereira" (4)

- Eh pá! Não estou a perceber esta reação negativa da banca comercial à solução encontrada para o BES, com a criação do Novo Banco!?

- Pois é! Até deveriam estar eufóricos por verem reconstituir o seu maior concorrente, que tinham pensado que já tinha ido desta para melhor, e, ainda por cima, saberem que terão de ser eles a pagar, se acaso a operação de colocação da nova instituição no mercado não vier a ter sucesso. Deviam estar felicíssimos!

Edouard Balladur

Entre o sol e a areia, ando a ler um livro de Edouard Balladur, "La tragédie du pouvoir", as suas memórias, quase dia a dia, sobre os últimos meses do presidente francês, George Pompidou, em 1974, ao tempo em que Balladur desempenhava o cargo de secretário-geral do Eliseu.

Edouard Balladur viria depois a ser ministro e primeiro-ministro, neste último caso ao tempo em que François Mitterrand era presidente da República, isto é, um período de "coabitação", de convivência entre um presidente e um primeiro-ministro oriundos de linhas políticas contrárias. Sobre esse interessante período, escreveu "Le pouvoir ne se partage pas", também uma memória das suas conversas com Mitterrand.

Entre 2009 e 2013, fiz parte do júri do "Prix des Ambassadeurs", um galardão literário que anualmente é atribuído a uma obra de um autor francês dedicada a temáticas de História política, quer interna francesa, quer de relações internacionais. O prémio é decidido por um júri de não mais de 20 embaixadores (na prática, só cerca de 12-15 participam), todos claramente francófonos, escolhidos entre os representantes diplomáticos bilaterais em funções em França, junto da UNESCO ou da OCDE, cooptados pelo júri em funções, à medida que se processa alguma "baixa", pela partida de um dos membros. Recordo que a minha entrada, em abril de 2009, foi apadrinhada pelos meus colegas checo e polaco, respetivamente Pavel Fischer (agora diretor político em Praga) e Thomasz Orlowsky (ainda hoje embaixador em França), dois queridos amigos. Um "petit comité" de membros da Academia francesa faz uma pré-seleção de uma dúzia de obras, sobre as quais o júri se pronuncia. As reuniões do juri, que têm lugar no "Cercle de l'Union Interalliée", conduz sempre a polémicos debates, que são apoiados em apresentações orais e relatórios escritos, sempre mais do que um sobre a mesma obra. A cada reunião, as obras são "retenues" ou afastadas, por consenso, processando-se no final um voto secreto, com base numa "short list" de três livros.

A par do colega belga, que tinha o imponente nome de Boudouin de la Kethulle de Ryhove, escolhi fazer a apreciação da obra de Balladur, "Le pouvoir ne se partage pas". Durante vários dias, li com atenção o livro, tomando bastantes notas. Balladur escreve bem, de forma não apenas escorreita mas muito elaborada, num francês culto que, contudo, não me impressionou o suficiente para daí extrair um ponto absoluto em favor do livro. Por isso, marcou-me mais o facto de, na maioria dos seus diálogos com o Mitterrand, acabar sempre por ser Balladur a ter a última palavra, sendo também evidente que, por mais de uma vez, as conversas "fugiam" dos assuntos desagradáveis para o primeiro- ministro. Sabendo-se hoje o que se sabe do antigo presidente, pareceu-me algo implausível que, não obstante a crescente debilitação física de Mitterrand, ele não tivesse a capacidade de se impor nas conversas com o seu primeiro-ministro. Balladur, aliás, mostra no livro uma contida sedução pela figura do presidente socialista, dando conta da "perfídia" com que Mitterrand foi alimentando a sua (já então evidente) ambição de lhe suceder, estimulando uma emulação com Jacques Chirac, que aliás acabaria numa inimizade aberta. Considerei, por isso, que o livro não tinha méritos literários suficientes para ultrapassarem o que entendi ser uma construção suspeitamente "biaisée" em favor da figura do autor, cuja memória demasiado "seletiva" me parecia evidente. Para ser mais claro: parecia um livro "sobre" Balladur, um pouco "à custa" de Mitterand.

A apresentação dos nossos relatórios, algo contrastantes, provocou uma larga discussão. Sem negar os indiscutíveis méritos da obra, eu entendia que ela não devia ficar na "short list". O meu colega belga era de parecer diametralmente oposto. O presidente do júri, o embaixador congolês e grande figura da francofonia Henri Lopes (antigo primeiro-ministro do seu país, embaixador em Paris desde 1998!), bem como o académico Alain Decaux (que, semanas antes da minha entrada, havia sucedido ao histórico Maurice Druon, que não tive o privilégio de conhecer), viram-se em dificuldade para superar o cordial dissídio instalado, tanto mais que, do lado da Academia, surgiu um apoio forte à obra, por parte de Eric Roussel, um prestigiado biógrafo, que vim depois a saber ter sido o responsável pela pré-seleção da obra de Balladur. "To make a long story short", lá levei a minha avante e a obra de Balladur foi "non retenue". Mas fiquei sempre na dúvida sobre se isso não teria sido injusto.

Agora, ao ler a memória de Balladur sobre Pompidou, ao notar a constante "magnificação" do seu papel nas decisões e opções presidenciais, bem como o mesmo estilo, muito culto mas sempre e apenas na soleira do brilhantismo, fiquei mais confortado pelo destino que a sua anterior obra teve no "Prix des Ambassadeurs".

Mas - note-se! - o livro merece ser lido, porque se trata de um curioso "tratado" sobre as relações entre um primeiro-ministro e um presidente que se confrontam e vivem um quotidiano de tensão política, mais ou menos surda.

Um dia, o então primeiro-ministro José Sócrates passou por Paris, para um encontro com o presidente Sarkozy, de onde partiu depois para Bruxelas, de comboio. À despedida, à entrada na carruagem, ofereci-lhe o livro, envolvido em papel, com a recomendação (que ele, no momento, não entendeu), de não abrir o embrulho diante dos jornalistas que o acompanhavam. Num tempo em que as suas relações com Cavaco Silva já iam de mal a pior, apresentar-se perante a imprensa com um livro que tinha por título "O poder não se partilha" seria, seguramente, motivo para muitos... títulos!

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