Há dias, tive uma surpresa: vi numa notícia que uma delegação de esperantistas portugueses a um congresso internacional fora chefiada por um amigo que há vários anos perdi de vista, o Miguel Faria de Bastos. Não fazia a menor ideia de que o Miguel, que conheci como advogado de renome em Angola e que mais tarde cruzei várias vezes em Lisboa, se dedicasse ao Esperanto, essa língua internacional que existe há bem mais do que um século e que, como conceito, incorpora uma ideia interessante de entendimento e de paz. Por uma qualquer razão ligo-a também sempre ao anarquismo.
O meu primeiro "encontro" com o Esperanto foi na biblioteca dos familiares de um tio que não cheguei a conhecer, onde descobri um manual de Esperanto. Na altura, entusiasmei-me em aprender algumas palavras daquela estranha língua. Conhecendo-me bem, imagino que o entusiasmo deva ter durado escassos dias.
O Esperanto viria a cruzar-se comigo de novo, anos mais tarde, no Porto, quando por ali andei na universidade, na segunda metade dos anos 60.
Eu tinha alugado, a meias com um amigo, um quarto num apartamento na Rua Miguel Bombarda (alguém acredita que, nessa altura, praticamente não havia nenhuma casa comercial nessa artéria hoje "trendy" do Porto?). A dona da casa era uma senhora que devia ter então os seus 80 anos, muito digna e educada, com os cabelos muito brancos agarrados num puxo, que se percebia, até por alguns objetos restantes na decoração da casa, que tinha tido tempos de uma vida mais "aisée". Por aquela altura, alugava dois quartos para o seu sustento. Por ocasião dos tumultos do maio de 1968, o seu filho, que trabalhava na embaixada ou no consulado em Paris (ou seria na Casa de Portugal, na Cité, então invadida?), por uma qualquer razão que me escapa, mas que se ligava aos acontecimentos, terá regressado apressadamente ao Porto. A pobre senhora, que lembro que era menos bem tratada pelo antipático cavalheiro, teve de ir dormir para um divã na sala de jantar, que eu e o meu amigo éramos obrigados a atravessar, para aceder ao nosso quarto, nas madrugadas de algumas borgas. A penosa situação só durou alguns meses, porque, entretanto, no final desse ano letivo, abandonámos o quarto.
Mas onde é que o Esperanto entra nisto? Um dia, ao pequeno almoço, num conversa com a dona da casa, D. Isabel, ela mencionou, já não sei bem a que propósito, que o seu falecido marido era autor de um importante manual de Esperanto. Nesse instante, lembrei-me do livro que descobrira na biblioteca do meu tio. Vi a velha senhora abrir-se num sorriso de esperança, saindo apressadamente da cozinha, onde a cena se passava, e, um minuto decorrido, surgiu com um livro na mão. Era aquele mesmo! Vi então algumas lágrimas a molharem as rugas de uma cara que devia ter sido bonita. A coincidência fora bem feliz!
A minha memória também não reteve o nome do autor do manual de Esperanto, bem como o da sua viúva, que se fosse viva teria hoje cerca de 130 anos... Será que algum leitor esperantista me pode ajudar a descobrir esse nome e o manual, que deve datar dos anos 30 ou 40 do século passado? Ou talvez eu recorra ao Miguel Faria de Bastos, como belo pretexto para nos revermos.
Por que luas me lembrei do Esperanto hoje? Porque alguém falou nesta língua mítica num dos comentários hoje feitos no blogue, e isto é como as cerejas...
(Alterei ligeiramente este texto depois de uma conversa com o meu antigo companheiro de quarto, um dos meus grandes amigos, que me ajudou a precisar melhor os factos.)
(Alterei ligeiramente este texto depois de uma conversa com o meu antigo companheiro de quarto, um dos meus grandes amigos, que me ajudou a precisar melhor os factos.)