Hoje vou falar de uma das mais antigas instituições do Ministério dos Negócios Estrangeiros - o "procurador".
Confrontei-me com ela nos corredores do palácio das Necessidades, durante o período em que fazia as provas para a entrada na carreira diplomática. Um dia, fui aproximado por um contínuo que me perguntou: "O senhor doutor já tem procurador?". Devo ter olhado para ele com cara espantada: "Procurador?! Para quê?". O homem explicou, em breves palavras, que todos os diplomatas, sem excepção, tinham "o seu procurador", alguém que lhes tratava de receber o vencimento (!?) e que era muito útil para várias coisas, em especial quando no estrangeiro. E propunha-se para ser meu procurador, claro.
Ora eu ainda não tinha sequer passado as provas orais, estava a anos de partir para o estrangeiro, por que raio precisava de um procurador? Mas lá fiquei com o cartão do homem. À medida que os exames iam decorrendo, pelas esquinas dos claustros, foram aparecendo outros contínuos ou motoristas a deixarem-me cartões. E eu ia-os guardando, mais por curiosidade do que por convicção.
Entrado no Ministério, colegas mais velhos perguntavam-me: "Já escolheste procurador?". Eu dizia que não, eles estranhavam e, por regra, gabavam logo as vantagens que haveria em escolher o seu. Mas eu continuava relutante e não contratava ninguém. Fazia até uma certa gala nessa atitude singular.
Até que chegou o primeiro fim-do-mês. Perguntei a alguém onde se recebia o vencimento. Nesse tempo não havia ainda o sistema de crédito em conta bancária. O salário mensal vinha em envelopes, com as notas e as moedas dentro. "O teu procurador é que trata disso" - foi a resposta. Sim, mas eu, que não tinha procurador, como é que fazia?: "Não tens procurador? Isso é muito complicado, sem procurador nem sei como é possível receber o salário. Ele é que leva 'as folhas' ao banco".
Sabia lá eu o que eram "as folhas"! Entrei em fúria. Já tinha sido funcionário público noutro departamento do Estado e nunca tinha tido dificuldade em receber o salário. Era agora, no MNE, que isso ia ser impossível? "Vai ao 4º andar, pode ser que te informem de outra maneira de receberes o dinheiro, mas, desde já te digo, não vai ser nada fácil" - disse-me uma voz amiga, embora muito céptica.
Faço aqui um parêntesis para explicar que o "4º andar" é o andar do poder administrativo do MNE, da mesma maneira que o "3º andar" é o andar do poder político, onde está o gabinete do Ministro e, antes, também estava o do Secretário-Geral, até que um "golpe de mão" do ministro Deus Pinheiro praticamente "correu" com o chefe da carreira do gabinete que ocupava há décadas. Mas, na realidade, se se entrar no MNE pelo Largo do Rilvas, o 4º andar é, verdadeiramente ... o 2º andar! Na "casa", as contas fazem-se sempre desde "lá de baixo", de outros andares que só se vêem da Tapada das Necessidades. E estas coisas, no MNE, já não se discutem. Aliás, na conversa normal da carreira, é vulgar ouvir-se: "Falei hoje com o 4º andar sobre as promoções, mas disseram-me que o assunto ainda não tinha saído do 3º andar". Frase que, às vezes, é complementada por outra ainda mais críptica: "Dizem que é a 7ª que está a criar dificuldades". A "7ª" significava a 7ª repartição da Contabilidade Pública, então o braço armado do Ministério das Finanças dentro do MNE.
E lá fui eu ao 4º andar. Eram dois corredores em cruz ("et pour cause"...), sem nada que identificasse o que fazia quem estava por detrás daquela imensidão de portas fechadas. Andei de seca para meca, a entrar e a sair de salas atulhadas de senhoras, algumas que vim a saber historicamente poderosas: Olhavam com superioridade o jovem "adido de Embaixada" que eu era, particularmente o teimoso que não queria ter procurador: "Ó dona Maria Garcia, está aqui um doutor que quer receber o ordenado sem ter procurador!" - dizia uma delas, como se acabasse de avistar um extra-terrestre, provocando a concentração em mim de dezenas de olhos incrédulos, acompanhados por alguns sorrisos de benévola piedade. "Isso só vendo amanhã, passe então por cá da parte da tarde, pode ser que estejam por aí as 'folhas', mas olhe que vai ter muito trabalho, ó doutor!", advertiu-me logo alguém. No dia seguinte, afinal, também não foi possível. E, no outro, as 'folhas' ainda não apareciam... "To make a long story short", cedi e lá acabei por arranjar um procurador...
Verdade seja que, se o procurador era quase inútil em Lisboa, ele era, num tempo sem internet e com dificuldades de comunicação, precioso durante as nossas longas estadas no estrangeiro: ia aos bancos, pagava contas, mandava e expedia correspondência, fazia diligências de todo o tipo (alfaiates e costureiras incluídos). Contudo, para mim, a sua função mais apreciada era e continua a ser mandar-me livros e jornais pela mala diplomática.
Entre os procuradores, houve sempre "classes" bem distintas e até gratificações diferentes: os procuradores mais "finos" só tratavam de prestigiados embaixadores e já não aceitavam "mais gente". Outros, eles próprios mais velhos, dedicavam-se preferencialmente a diplomatas muito antigos, já na reforma ou perto dela. Finalmente, os mais novos procuravam singrar na vida através de clientela das gerações recentes. Os mais afortunados ou poderosos tinham mesmo cubículos ou vãos de escada, com chave própria, onde guardavam os embrulhos e envelopes. E, se bem me lembro, alguns havia que já subcontratavam mais novos, para tarefas ou deslocações mais pesadas.
Na minha memória de algumas décadas, o grande procurador do MNE foi o senhor Jaime Matos, homem da portaria, figura de grande educação e óptimo trato, sempre delicado, mesmo para os mais novos. Nunca foi meu procurador, mas eram famosas as cartas com que fazia acompanhar as contas mensais, nas quais pré-anunciava os "movimentos diplomáticos": "Saiba Vossa Excelência que consta pelos corredores que o Senhor Embaixador X poderá vir a ser substituído em breve pelo Senhor Ministro Plenipotenciário Y, que corre que será promovido. Quem não estará contente, ao que se diz, é o Senhor Embaixador Z, que agora poderá que ter de aceitar "tal posto"...". E depois, modestamente, terminava: "Mas Vossa Excelência sabe, bem melhor do que eu, que isto podem ser só boatos...". Qual quê! O Matos acertava sempre, pelo cruzamento de ouvidos vários, que faziam da portaria do Ministério um lugar privilegiado de informação.
Confesso que não sei se, nos dias de hoje, os meus colegas mais jovens ainda têm o seu procurador. Provavelmente já não. Eu tive um, de uma eficácia imbatível e que, além do mais, se transformou num querido amigo.
(Reedição adaptada)