quarta-feira, abril 15, 2015

O exílio

Fui ontem ao lançamento do novo livro de Manuel Pedroso Marques, "Os Exilados - não esquecem nada mas falam pouco". Com a sala a abarrotar, a fila para a aquisição do livro era tão grande que desisti de o comprar na ocasião (fá-lo-ei mais tarde). Mas dei um abraço ao autor, pessoa que estimo e considero. E dei por bem empregue o tempo, porque a evocação feita por Manuel Vilaverde Cabral e pelo autor deram-me alguns motivos para pensar.

O exílio foi sempre algo que me fascinou. A ideia de que alguém, por perseguição política do governo do seu país, é obrigado a abandoná-lo e a reconstituir vida noutro país é algo que, de há muito cativou a minha imaginação. A literatura sobre a matéria (aliás, pouco abundante no caso português) ajudou ao resto. 

Na apresentação que fez do livro, Vilaverde Cabral distinguiu os exilados de outros "E" - os emigrados e os expatriados - elaborando um pouco sobre o modo como essas categorias, de diferente tipologia, se cruzaram no Portugal fora de Portugal, ao tempo da ditadura. Deu alguns exemplos e pistas para reflexão.

Na minha vida diplomática, cruzei diversos portugueses que haviam saído do país para fugir à perseguição política. Encontrei alguns a quem o 25 de abril não estimulou o regresso a Portugal. Parte deles tinha, entretanto, organizado a sua vida pessoal e profissional no estrangeiro, as oportunidades que o novo Portugal lhes oferecia eram, provavelmente, muito menos apelativas do que aquelas que os países de acolhimento lhes proporcionavam. E foi sempre muito interessante para mim, que sempre fui um "voyeur" curioso da luta exterior contra a ditadura, ouvir essas pessoas sobre esses tempos de chumbo, sobre quem então haviam conhecido, os grupos com que haviam colaborado, as ações em que haviam estado envolvidos. Falei com alguns deles no Brasil e em França, mas também no Reino Unido e nos Estados Unidos. E com vários outros já em Portugal. E aprendi bastante.

Desde logo, aprendi a complexidade e o peso psicológico da condição de exilado. Fiquei ciente de que as culturas de exílio, com o secretismo e a desconfiança que lhes são inerentes, são pasto fácil para a conflitualidade, para a intriga, para algumas traições e para o "vir ao de cima" daquilo que de mesquinho pode existir em qualquer de nós. Mas também ouvi casos de despojamento, de solidariedade, de ajuda desinteressada, criadores de amizades duradouras, de cumplicidades para o resto da vida. Porém, o facto da política - e a política de um emigrado tem, com naturalidade, algum radicalismo associado - sobredeterminar todo o contexto em que a existência no exílio se processa acaba, com alguma naturalidade, por marcar fortemente esses núcleos, onde também se disputam ambições e projetos pessoais e coletivos contrastantes. Ouvir falar sobre o exílio português no Brasil nos anos 50 ou 60, sobre as tensões em Argel nos anos 60 ou 70, bem como sobre esse microcosmo que foi Paris na década que antecedeu o 25 de abril, ensinou-me muito sobre o exílio. E, em definitivo, esclareceu-se sobre quão violenta a ditadura foi para essas pessoas, a quem destruiu a estabilidade, as carreiras e, muitas vezes, a própria esperança. 

Por tudo isso, logo que puder, vou ler o livro de Manuel Pedroso Marques. 

terça-feira, abril 14, 2015

Quatro anos


Expliquei ao “Les Echos” que a embaixada não fazia qualquer declaração. Não obstante a insistência da “BFM-TV”, reforçada com uma “cunha” de um jornalista português, disse estar indisponível para entrar em direto na sua edição da noite, como fizera, por duas vezes, em semanas anteriores. Repeti o mesmo à “France 24”, que me queria na sua emissão em inglês. Não sabia (ainda) o que dizer. Era o dia seguinte ao pedido de ajuda de Portugal. Foi há quatro anos.

É talvez cedo para se saber como os vários embaixadores portugueses, nas principais capitais europeias, viveram esses meses. Cada um falará por si. No meu caso, em Paris, acompanhava, dia após dia, as diligências que as nossas autoridades desenvolviam para tentar escapar ao pedido de ajuda externa e as mensagens que, nesse âmbito, eram por nós passadas às congéneres francesas, com o objetivo de garantir um apoio europeu (e, essencialmente, alemão) para a nossa posição oficial. Parte substancial dos contactos passava-se entre os gabinetes dos chefes de governo. A nós, cabia-nos explicar a racionalidade das nossas posições e enquadrar, sob a matriz da (real) normalidade democrática nacional, a fortíssima tensão política que se vivia em Lisboa, do PEC IV aos dissídios partidários em crescendo.

Com o passar dos dias, sentia, cada vez mais, que as coisas se aceleravam. (Tenho pena de não ter guardado quaisquer notas). Era o tempo das movimentações das agências de notação, o crescente “downgrading” português, o disparar do “spread” dos nossos “bonds” a 10 anos, que eu acompanhava, todas as manhãs, ao abrir o “Financial Times”. Passei então a ser chamado a falar nas rádios e, um pouco menos, em televisões. Nunca antes, como embaixador em Paris, me fora dada tanta “atenção”. Só que não era pelas melhores razões. Sem a menor dificuldade, publiquei alguns artigos na imprensa. A minha “narrativa” era quase sempre a mesma: defesa dos índices favoráveis conhecidos, denúncia do exagero das agências de “rating”, afirmação de que era possível dispensar a ajuda externa. Como dizem os americanos, “my country, right or wrong”. 
  
A partir de certa altura, Lisboa, como fonte de instruções, foi desaparecendo. Falava com colegas portugueses noutros postos, mas todos comungavam do mesmo desconhecimento. Para além das declarações públicas, nada mais transpirava. Os escassos responsáveis políticos portugueses com quem consegui contactar também já não ajudavam. Por aqueles dias do fim, senti uma inédita solidão e, essencialmente, a angústia de não saber o que fazer (ou se devia fazer algo) como representante de Portugal junto de um dos mais importantes países do mundo. Recordarei para sempre uma conversa telefónica com um alto responsável do Eliseu, que teve a sensibilidade de não me inquirir para além daquilo que ele sabia que eu podia dizer (e saber) e que me deixou palavras de discreto conforto, sem, contudo, as fazer soar de forma paternalista.

Depois, a toalha caiu no ring. O discurso mudou. A vida de um diplomata é assim.

(Artigo que hoje publico no "Diário Económico")

segunda-feira, abril 13, 2015

François Maspero


Morreu Gunther Grass. Porém, na data de hoje, prefiro lembrar François Maspero, que também desapareceu. A sua "Joie de Lire", na Saint-Séverin, a dois passos do boulevard Saint-Michel, foi a "meca" para muitos de nós, nesses pesados anos 60 e 70, que só a nossa juventude e os nossos sonhos iam tornando mais leves.
Como aqui lembrei um dia, François Maspero tinha como orientação não entregar à polícia - à "polícia da burguesia" - quem fosse apanhado a roubar livros, o que criou, em muita gente, uma espécie de impunidade que, ao que se dizia, terá acabado por levar a livraria à ruína económica. Fui testemunha presencial de uma frutuosa e furtuosa "romagem" à Maspero de um amigo português, ao tempo estudante em Paris, convenientemente dotado de um avantajado capote alentejano, que dava espaço para um eficaz "arquivar" de volumes. Ainda o estou a ouvir: "Ora cá está ele! Faltava-me o volume 8 das obras do Bataille!". E lá desapareceu o avantajado volume da Gallimard no bojo do capote...

Memorabilia diplomatica (XXV) - Ártico


Dormir num saco-cama, assente numa placa de esferovite diretamente pousada sobre o gelo, numa tenda militar, bem a norte do Círculo Polar Ártico, com uma temperatura exterior de cerca de 25º negativos, é uma experiência para a qual se exige uma certa coragem. A verdade é que a tenda tinha no centro uma espécie de aquecedor, com uma chaminé que saía pelo tecto. E, no seu interior, valha a verdade, a temperatura estava bem acima dos números de fora. Mesmo assim...

Estávamos num campo de treino da NATO, organizado pelas tropas norueguesas, em 1980. O dia fora longo e eu partilhava o espaço com dois colegas, um belga e um turco. Chegados à nossa tenda, enfiei-me logo no meu saco-cama, saquei de uma lanterna de bolso, que prudentemente levara comigo, e pus-me a ler o "Herald Tribune", nesse dia trazido de Oslo. Acompanhava-me uma pequena garrafa metálica com um belo whisky de malte, em cuja tampa, com esmero, coloquei algum gelo que raspei do chão. As recomendações NATO tinham sido estritas - nada de alcool! -, mas achei que uma pequena excepção podia ser admissível para o civil inverterado que eu era. E nem a proximidade do Pólo Norte tinha o condão de me afastar de alguns comezinhos prazeres mais cosmopolitas...

Notei que o meu amigo belga adormeceu logo e estranhei ver o turco a tentar fazê-lo fora do saco-cama. Disse-me que estava com calor e que ficaria bem assim...

Acabadas a minha dose de whisky e a leitura, adormeci também. Acordei, creio que cerca de uma hora depois, alertado pelo belga. O nosso colega turco, imprudente, ao ter-se deixado dormir fora do saco-cama, estava agora enregelado, sentia-se mal e não conseguia aquecer, nem sequer aproximando-se do aquecedor.

Que se podia fazer? Sair da tenda, à procura de ajuda, na gélida e ventosa noite ártica, era quase suicida. Adiantei uma ideia: porque não bebia o nosso amigo turco um bom trago do meu whisky? Seguramente que isso poderia ter um efeito-choque, ajudando à sua recuperação. O belga concordou que era uma boa sugestão. E é aí que o turco nos surpreende: "não posso beber álcool. Sou muçulmano". E continuava a tremer de frio.

Com diplomacia e poder argumentatório - estávamos entre diplomatas - tentámos convencê-lo de que os ditames religiosos, com toda a certeza, eram passíveis de uma pontual derrogação quando estava em causa a salvação de uma vida. O whisky podia assim ser considerado, no caso vertente, como um mero medicamento - "embora bem mais saboroso do que é habitual", lembro-me de ter pensado.
 
O turco, já um pouco em pânico, acabou por concordar em seguir a opção que lhe era oferecida: bebeu uma boa dose do meu velho malte e até repetiu... E lá aqueceu, como previsto, conseguindo dormir.

Pergunto-me, até hoje, se a minha leitura das regras religiosas muçulmanas esteve ou não correta. E será que me posso considerar culpado se acaso o meu amigo turco, por via da minha sugestão, mudou de hábitos de vida?
 
(Reedição de historietas da diplomacia por aqui já publicadas)

domingo, abril 12, 2015

Os submarinos voadores


Aquela minha amiga, figura pública do espetáculo bem conhecida, charlava com o taxista sobre a política caseira. Rapidamente percebeu que o discurso do motorista era "avançado" (para quem não saiba, é a expressão que, durante a ditadura, se utilizava para designar gente "bem à esquerda"). Depois de primeiramente zurzir, como é de óbvia regra, o inquilino cessante de Belém, vieram à baila as próximas eleições, E aí, ao nosso homem, virando-se para a passageira e com gesto largo de mãos, saiu-lhe esta:

- Ó minha senhora. O que eu gostava mesmo, para dar a volta a isto, é que os comunistas ganhassem. Aí sim, até os submarinos voavam! 

Saia uma Cuba Libre!

 

Fulgêncio Baptista ter-se-á revolvido na tumba? Imaginem então Che Guevara!

sábado, abril 11, 2015

Memorabilia diplomatica (XXIV) - Os comunistas


A decisão ontem anunciada pelas autoridades de Kiev de proibir os símbolos comunistas no país (presumo que com a exceção prática das províncias do Leste) é, com toda a certeza, o primeiro passo para a interdição do próprio Partido Comunista do país. Não me parece que isso seja um bom sinal para a Ucrânia.

Nada, aliás, que seja estranho na antiga União Soviética. Vai para mais de uma década, visitei um determinado país da Ásia Central, integrado numa delegação de cinco embaixadores da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), idos de Viena. Entre os diversos encontros que nos foram proporcionados na capital do país figurava uma mesa-redonda com representantes dos partidos políticos locais.

Na sua quase generalidade, a classe política desses novos Estados era oriunda das anteriores estruturas comunistas locais, isto é, comunistas reconvertidos em novos e "rápidos" democratas. Com o fim da URSS e a independência dessas antigas repúblicas soviéticas (em alguns caso, a independência foi assumida de forma algo relutante), foram instituídos regimes cuja democraticidade era mais do que duvidosa. As novas formações políticas criadas tinham, na esmagadora maioria dos casos, um caráter pouco genuíno e eram, por assim dizer, atores de um "teatro" que pretendia convencer o mundo exterior de que as novas instituições respeitavam as normas e "standards", em matéria de observância das regras do Estado de direito, respeito pelas liberdades fundamentais e pelos direitos de cidadania. A verdadeira oposição a esses regimes autoritários fazia-se fora dos partidos autorizados, através de ONG fortemente reprimidas e de ativistas políticos e defensores de Direitos humanos, isolados ou em pequenos grupos, que mantinham uma admirável resistência e tentavam, com muita dificuldade, fazer chegar sua voz de revolta ao exterior. As missões locais OSCE porfiavam, muitas vezes sem sucesso, em manter uma ligação a essas figuras fora do sistema, como forma de as proteger.

Mas voltemos à nossa reunião. À volta da mesa, estavam representados aí uns seis ou sete partidos. Cada um deles apresentou-se e definiu o respetivo perfil, ficando claro que estávamos perante um imenso "trompe l'oeil", como o delegado da OSCE já nos tinha alertado. Todas essas formações estavam representadas no parlamento, mas nenhuma delas fez a menor observação crítica ao governo em funções, relativamente ao qual não tinham qualquer objeção visível. Deixámo-los fazer o seu "número" e foram-lhes depois colocadas algumas perguntas por cada um dos visitantes, todos oriundos de democracia ocidentais. Quando chegou a minha vez, não hesitei:

- O representante do Partido Comunista não pôde vir?

Os locais olharam perplexos entre si. Então aquela República tinha-se "libertado" do comunismo e os embaixadores ocidentais, todos de países NATO, onde o comunismo estava bem longe do poder, perguntavam pelos comunistas locais? Imagino se não se perguntavam por que diabo queriam ali comunistas quando o sentido da Guerra Fria fora precisamente derrotá-los.

O "controleiro" da delegação, representante do governo que dirigia a "peça", quebrou o embaraço coletivo e, fixando-me, respondeu com evidente surpresa e não menor firmeza:

- O comunismo acabou neste país. O Partido Comunista foi proibido.
  
O artificialismo da cena era reforçado pelo facto de nós sabermos, de fonte segura, que muitos daqueles "figurantes" haviam sido membros do Partido Comunista local, ao tempo da União Soviética, não muitos anos antes.

- Peço desculpa, mas tem-nos vindo a ser dito que este país vive hoje em democracia. Como é que podem afirmar isso se não autorizam que uma corrente de opinião como os comunistas se pode organizar e afirmar no vosso sistema constitucional? Os comunistas desapareceram aqui de um dia para o outro? Onde estão? A democracia faz-se precisamente para que todos possam ter o direito à representação política, por muito que não concordemos com eles. Pela minha parte - mas não posso falar pelos meus colegas, naturalmente - tenho de concluir que o vosso regime tem uma falha democrática grave. Tomo nota disso e não deixarei de ter isso em conta no meu regresso a Viena.

Os restantes embaixadores ocidentais que integravam o meu grupo não me pareceram ter ficado muito agradados com a frontalidade da minha tomada de posição. Mas o incómodo foi bem maior entre as figuras locais. No resto da nossa estada nessa "democracia" da Ásia Central fui olhado sempre de soslaio pelos nossos anfitriões. E, regressado a Viena, notei que o respetivo embaixador junto da OSCE tinha esfriado as suas relações comigo.

No plano económico, o único que poderia suscitar da minha parte alguma contenção em sede de cinismo de "realpolitik", Portugal não tinha o menor interesse nesse distante Estado. E, como costumo dizer, a grande vantagem de um país como o nosso é que, quando não tem grandes interesses pode dar-se ao luxo de ter grandes princípios....

A placa


Uma certa organização internacional, onde as línguas de trabalho são o francês e o inglês, decidiu colocar nas portas dos gabinetes que, na sua sede, atribui às delegações de cada Estado que dela faz parte, uma placa com a designação do país.

Guardei esta deliciosa foto da nossa placa. Felizmente que o alemão, o português e o espanhol não são línguas oficiais da dita organização, caso contrário a placa seria ainda mais interessante...

sexta-feira, abril 10, 2015

Marcello Duarte Mathias


Desde ontem, estou a deliciar-me com mais um diário, recém-publicado, de um escritor que também é diplomata. Trata-se do "Diário da Abuxarda" (2007-2014), do meu colega e amigo Marcello Duarte Mathias, um dos grandes prosadores portugueses. Os seus diários, sob a epígrafe "No devagar depressa dos tempos", levam-nos pelos pretextos para reflexão que encontrou nas suas errâncias profissionais, de Nova Iorque a Paris, da Índia a Buenos Aires e a Brasília, com Bruxelas e muita Lisboa (e Abuxarda) pelo meio.

Uma visão do mundo por vezes desencantada - e frequentemente diferente da minha -, às vezes a roçar um nostálgico elegante (sei que ele não deve gostar disto), sempre imbuída de um saudável patriotismo, de quem girou mundo com o ideal de Portugal na bagagem. Um livro que, mais do que tributário da experiência de um homem culto, respira a erudição de quem adora a vida e aprecia as coisas boas que ela nos traz - os amigos, as artes e os momentos - coisa que sempre entendemos melhor quando alguma vez tivemos de ultrapassar certos sobressaltos. Um livro que se saboreia como uma bebida requintada, que nos convida a pequenos goles, neste caso podendo sempre recuar nas páginas e na memória dos sabores.

Há anos, o Marcello publicou um pequeno volume, que intitulou de "Brevíssimo Inventário". É uma obra difícil de classificar, mas se se disser que é uma recolha de magníficos aforismos talvez fique mais próximo da verdade. Foi minha prenda de Natal para muita gente e ainda hoje o ofereço a amigos e conhecidos que aprecio e que o podem apreciar.

Termino com duas citações deste Diário que me dizem bastante. Uma de Carlos Lacerda, que Marcello cita: "Viver não deixa muito tempo disponível". A segunda é do próprio Marcello Duarte Mathias: "Hoje é fácil ser-se inconformista: basta andar de gravata". 

E a Europa?


O espetáculo diário do governo grego na sua luta, cada vez mais inglória, com as instituições europeias nada tem de dignificante para a própria Europa. A humilhação de um poder político, que tem atrás de si um mandato de desespero, por mais irracional que ele possa ser, é uma imensa bofetada na democracia e um insulto à própria ideia de União Europeia.

Fruto de imensos erros próprios, somados à irracionalidade da política austeritária imposta pelos credores, a Grécia gerou uma situação que colocou no poder um governo portador da mirífica agenda de pôr termo à tutela estrangeira e recuperar, de um dia para o outro, o poder decisório nacional.

Muitos foram os que olharam com simpatia essa revolta, que prometia uma apetecida luta de um David contra o Golias da “troika”. E não foram poucos os que acreditaram que a atitude grega trazia um saudável abanão no “pensamento único” dominante.

Olhando em perspetiva, somos forçados a concluir que o modo radical como a Grécia carreou para o debate a questão do combate à austeridade acabou por enfraquecer fortemente uma linha menos confrontacional, que estava a começar a fazer o seu caminho, nomeadamente no Parlamento europeu, em algumas forças políticas no governo ou na oposição, bem como no próprio discurso da Comissão e do BCE. O sucesso dessa estratégia reformista estava longe de garantido, mas o facto do combate à austeridade ser hoje bastante identificado, até na comunicação social, com o suicidário “tudo ou nada” grego não facilita as coisas.

Ninguém faz ideia de como este braço de ferro entre a Grécia e as instituições europeias irá terminar. Mas ninguém já espera que Atenas vá cantar vitória ao fim do dia. Para uns, isso significará apenas a prevalência do bom senso. Para outros, traduzirá a humilhação de uma nação, sujeita a um diktat externo.

Vou por outra leitura. Até há uns anos, a União Europeia era a imagem da solidariedade, uma ealiança para o desenvolvimento, o bem-estar e a paz. Com o caso grego a reforçar bem essa nota, a Europa tende, cada vez mais, a ser olhada como um “big brother” disciplinador, zelador de uma matriz comportamental, regida pela lógica obsessiva do mercado, numa hierarquização interna de poderes que relega para as calendas (que, aliás, são  gregas) a ideia da “igualdade dos Estados”, que ainda surge na letra dos tratados. Confesso que tenho cada vez mais dúvidas de que, a prazo, seja possível compatibilizar este modelo de Europa com a salvaguarda das ordens constitucionais nacionais.  

(Artigo que hoje publico no "Jornal de Notícias")

quinta-feira, abril 09, 2015

Memorabilia diplomatica (XXIII) - O detalhe


Ontem, ficou claro que entre Marine Le Pen, líder do Front National, o partido de extrema-direita francesa, e o seu pai, o "histórico" fundador daquela formação política, está instalada uma guerra aberta. De há muito que se sabia que a chefe do partido discordava dos "infamous" comentários do seu pai sobre as atrocidades nazis. O facto de Jean-Marie Le Pen continuar a insistir nesses e outros comentários públicos de raiz xenófoba e racista terá feito transbordar o copo.

Hoje vou recordar uma história que já aqui referi, mas que vem a propósito da polémica aberta em França.

Aquele meu conhecido, um homem encantador que vive numa "péniche" atracada a um cais do Sena, estava claramente hesitante quando me abordou. Queria ter-nos como convidados para um jantar no seu barco, onde vive rodeado de antiguidades, mas não sabia se eu aceitaria que na ocasião também estivesse o seu "ami Jean-Marie". À primeira não percebi, à segunda lá entendi que se tratava de Jean-Marie Le Pen, o líder da extrema-direita, antigo candidato à presidência da República francesa, à época ainda presidente do Front National. Tratava-se de uma personalidade que, pelos seus propósitos negacionistas e outras tomadas de posição conexas, faz claramente parte das figuras "non fréquentables" para um grande número de franceses.

Le Pen é assim, a grande distância, dentre as personalidades do espetro político francês, a mais polémica. Confesso que tinha alguma curiosidade em conhecer, ao vivo, essa figura, com a qual, como já aqui um dia recordei, eu próprio tivera uma "accrochage" no Parlamento Europeu, em 2000. E, ultrapassando algumas hesitações íntimas, decidi aceitar o convite para jantar.

Há figuras que são exatamente aquilo que é a sua caricatura. Le Pen é uma delas. As suas reações em privado, a sua forma de estar e de interagir, reproduziam precisamente a imagem que eu tinha dele, recolhida das muitas aparições que lhe vira na televisão.

Foi cordial para com o embaixador de um país que conhece bem e sobre cujos nacionais, sem ser entusiático, disse as coisas óbvias do "politicamente correto" francês. Contou-me das suas viagens ao Porto, como velejador, onde conheceu o "Duque" da Ribeira, de quem se teria tornado amigo. Elogiou as qualidades gastronómicas de um restaurante português da periferia de Paris, que ainda hoje é uma espécie de cantina informal do "Front National", por se situar ao lado da respetiva sede. Não me disse, mas isso eu sabia, que há uma presença de portugueses e luso-descendentes nos apoiantes do partido.

À mesa, fiquei à sua direita (tem alguma graça, ficar "à direita" de Le Pen). Dominou a conversa, com um discurso bastante crítico do então presidente Sarkozy, muito centrado na necessidade de reforço das políticas securitárias e no combate ao que considerou ser a "permissividade" na gestão dos fluxos migratórios. Os circunstantes, gente claramente conservadora, mostravam-se simpáticos perante o que ouviam. Um, dentre eles, chegou mesmo a afirmar que, pela primeira vez, encarava votar "Front National" nas próximas eleições. O ambiente estava longe de ser desfavorável a Le Pen.  
Durante muito tempo, mantive-me bastante discreto na conversa, interessado que estava em olhar a personagem. "Entre la poire et le fromage", como se diz na linguagem social francesa, decidi intervir. Disse que o fazia como observador estrangeiro, não comprometido com a vida política francesa. Mas que não resistia a expressar uma curiosidade. Como ele bem constatara, algumas das suas propostas políticas até eram relativamente aceites, porque, aparentemente, iam ao encontro das preocupações, em matéria de segurança, que uma certa França alimentava. Por essa razão - perguntei eu a Le Pen - por que razão persistia em manter, no seu discurso político, uma outra dimensão, assente em pressupostos como a desvalorização da barbárie nazi nos campos de concentração, temática com óbvias conotações antijudaicas que acabava por radicalizar a postura do "Front Nationale" e dele afastar potenciais simpatizantes?

Le Pen olhou-me, talvez surpreendido pela frontalidade da questão. Mas reagiu bem. Sem hesitações, perguntou-me: "Está a referir-se ao 'detalhe'? ". Estava. Como disse, ficou famosa a frase em que Le Pen, a propósito da quantificação do número de assassinatos nazis nos campos de concentração, disse que isso não passava de um "detalhe" no contexto das mortes do segundo conflito mundial. E voltou a repetir isto. E acrescentou, por exemplo, que era muito estranho que nunca se falasse no facto das linhas de caminhos de ferro que levavam a esses campos alemães nunca tivessem sido bombardeadas pela aviação aliada (confesso que nunca ouvira isto!).

Tudo isto deu, por completo, e em escassos minutos, a volta ao ambiente. As mostras de simpatia pelas políticas securitárias ou de controlo da imigração preconizadas por Le Pen dissolveram-se no ar, que se tornou pesado. O jantar terminou de forma um tanto apressada. À saída, o convidado que havia dado mostras de poder vir a votar "Front National" aproximou-se de nós e, em voz baixa, pediu desculpa por termos sido testemunhas de "algumas tomadas de posição que envergonham a França".

(Reedição de historietas da diplomacia por aqui já publicadas)

quarta-feira, abril 08, 2015

Inocencio Arias


Inocencio Arias é um conhecido embaixador de Espanha. Coincidimos em Nova Iorque, onde reforçámos uma amizade que já vinha de uns anos antes. Figura agitada, de um humor magnífico, é sempre um prazer conviver com ele. Fez cinema, fala de tudo, sabe de tudo e até ousa expressar-se em russo, nacionalidade de ascendência da sua mulher Ludmila. Com uma larga capa, um "papillon" e um "borsalino" que o tornaram famoso, "Chencho", como é conhecido entre os amigos, foi diretor-geral do Real Madrid, secretário de Estado, tem livros publicados, escreve na imprensa e surge com frequência na televisão, mantendo o blogue "Crónicas de um diplomático jubilado". A sua palavra franca e verdadeira conduziu à sua saída de embaixador junto da ONU. Acontece!

Há dias, numa livraria de Valladolid, deparei com um seu livro já antigo (e que vai na 3ª edição) que fala da ação internacional de cinco primeiros ministros com que serviu ao longo da sua carreira (no meu caso, teria que falar de 15!). Dele retiro, deixando-a em espanhol, esta "pérola" sobre as chefias na carreira diplomática;

"Y de los jefes ya se sabe que uno es buena persona y competente, otro es incompetente y te pone nervioso, otro es competente pero va estrictamente a lo suyo, todo vale para trepar, y el cuarto, competente o incompetente, és un auténtico hijo de su madre. Habría que hacer un estudio para ver qué categoría es la más numerosa."

Grande escola, a carreira!

terça-feira, abril 07, 2015

Tolentino da Nóbrega

Na Madeira, ao longo das últimas décadas, não houve uma ditadura. Porém, só quem é cego, sectário ou de má fé é que poderá afirmar que o modelo político prevalecente na ilha garantia a plenitude dos direitos democráticos à generalidade dos cidadãos e às forças políticas de oposição. O regime que vigorou naquela região autónoma revestiu-se sempre - repito, sempre - de um registo autoritário que, assuma-se ou não, tinha algo de intimidante para quem o afrontasse. Todos os governos continentais viveram no embaraço de ter de lidar com esse modelo muito "sul-americano", que se instaurou à sombra do bananal madeirense, frequentemente fugindo ao confronto com ele, por pura cobardia, numa espécie de "realpolitik" de trazer por casa. Não integra as mais gloriosas páginas da nossa República a história do comportamento de quase todos os executivos lisboetas face à Quinta Vigia.

Nunca conheci Tolentino da Nóbrega, o correpondente do "Público" na Madeira, que agora faleceu. Mas acho que a liberdade da sua voz, a sua frontal e desempoeirada denúncia dos abusos que o poder regional foi cometendo ao longo destes anos, acabou por ser, muitas vezes, bem mais eficaz do que a pífia oposição política dos adversários do presidente cessante daquela região autónoma. Tenho para mim que, antes de levar a cabo algumas das suas recorrentes arbitrariedades, o poder regional deve ter pensado sempre muito mais naquilo que Tolentino da Nóbrega poderia vir a denunciar nas colunas do "Público" do que na efervescência, sem reais consequências, dos seus paroquiais adversários políticos. E esse é talvez o melhor elogio que é possível fazer na hora do seu desaparecimento.

"Boa Cama / Boa Mesa"


O "Expresso" publica anualmente o seu guia "Boa Cama/Boa Mesa", com uma listagem por distrito (é interessante como se utiliza ainda a divisão distrital, mesmo depois dela ter acabado na ordem administrativa portuguesa) dos locais selecionados para dormir e para comer, um pouco por todo o país.

Falemos apenas destes últimos. Como todas as seleções, trata-se de uma lista discutível. O que sempre achei mais criticável nas notas que acompanham as referências é um tom genericamente elogioso que por vezes não nos ajuda a destrinçar o que é, de facto, excelente do que é, frequentemente, menos bom. Dito isto, que fique claro que não passo sem o "Boa Cama/Boa Mesa" que é um "livro de cabeceira" que não abandona o meu carro.

O guia atribui galardões: um "Garfo de Platina" e vários "Garfos de Ouro".

O primeiro, como já é quase de regra, vai para um restaurante algarvio. Desta vez, é o "São Gabriel". No Algarve, à base de uma cozinha internacional que não raramente pouco tem a ver com a tradição culinária portuguesa, é viável manter, graças ao turismo estrangeiro, diversas unidades de restauração sofisticada, as quais, sejamos justos, tanto podiam estar lá como noutro lugar do mundo. Mas é lá que estão, têm muito boa qualidade e é bom que sejam reconhecidas e, nalguns casos, atraiam "estrelas" Michelin, o que se torna num chamariz interessante para o turismo. Que muitas floresçam!

Os 25 "Garfos de Ouro" ousam, por vezes, sair desse modelo internacional de culinária. Estão nesse caso quatro magníficos restaurantes: o "Cozinha da Terra", perto de Paredes, o "São Gião", em Moreira de Cónegos" e, pela primeira e merecida vez, o "Restaurante G", na pousada de Bragança (um abraço de parabéns ao Óscar e ao António Gonçalves, bem como aos seus pais, responsáveis pelo "Geadas"), e o "Vallecula", em Valhelhas, perto de Belmonte (um abraço à Fernanda e ao Luis Castro, cujo trabalho sigo há muitos anos). Entra também neste "ranking", pela primeira vez, o "Boa Nova", na antiga "casa de chá" desenhada por Siza Vieira, em Leça, um restaurante de maior ambição gastronómica, e preço a condizer!, do meu amigo Rui Paula, um excelente chefe nortenho.

Com o IVA da restauração a 23%, nunca é demais contribuir para a divulgação o trabalho das dedicadas pessoas que asseguram a indústria da restauração neste país.

segunda-feira, abril 06, 2015

Memorabilia diplomatica (XXII) - A planta


Era um aeroporto de um país tropical. A sala VIP era desconfortável, arejada por ruidosos aparelhos à espera eterna de revisão, que quase abafavam as conversas. A delegação portuguesa espojava-se por horrorosos sofás de napa, no final de cinco dias de uma viagem oficial quase tão intensa quanto inútil. 

O dignitário português que chefiava a comitiva, enfarpelado como a ocasião ainda recomendava, encaixara-se num canto, acompanhado por um qualquer ministro local, trocando banalidades.

Sem uma contraparte natural para a ocasião da despedida, já ansiosa pela "executiva" do avião que tardava, a esposa do chefe da delegação portuguesa errava pela sala, comentando as peças de artesanato que algumas senhoras da comitiva tinham ido adquirir, à última da hora, ao comércio do aeroporto, como forma de se verem livres do resto da moeda local.

A certa altura, nota-se que a senhora avança em direcção a um arbusto que fazia paisagem no fundo da sala. A embaixatriz de Portugal, mais por tropismo protocolar do que por uma qualquer evidente necessidade de apoio, segue-a, um tanto intrigada com aquele súbito interesse. E quando a vê, bem decidida, agarrar um dos ramos do arbusto, puxando-o com força, ousa perguntar-lhe, um tanto assarapantada: "O que está a fazer?". A resposta elucidou-a: "Estou a tirar um raminho para plantar lá no jardim. Não acha gira esta planta?". A embaixatriz, de facto, achava, mas duvidava muito que o plástico viesse a frutificar no jardim da esposa do nosso político.

(Reedição de historietas da diplomacia por aqui já publicadas)

Invejoso, me declaro

Alimentava a ideia de que era, em absoluto, imune à inveja. Até há pouco, ao ler este texto de José Ferreira Fernandes. É insuportável pensar que há pessoas que escrevem assim e nós não. 

Ó Zé, assim não vale!

Sampaio da Nóvoa


Para além de afloramentos críticos na mesma área política, que não vêm aqui para o caso e têm uma génese diferente, foi muito curioso verificar as reações de certa direita trauliteira - na imprensa, nos blogues e, em especial, no "site" jornalístico montado e financiado para o ano eleitoral - , ao comentar o surgimento da hipótese de candidatura presidencial de António Sampaio da Nóvoa. 

Essa mesma direita, que tão "simpática" se revelara, dias antes, quando veio a terreiro Henrique Neto - antegozando a hipótese dela dividir a esquerda -, deu agora ares de ter recebido um golpe certeiro, ao ser confrontada com o nome do antigo reitor da Universidade de Lisboa, como possível representante da esquerda na corrida presidencial. Leiam-se os "tweets" de graça acanalhada, os "posts" depreciativos no bem identificado aparelho blogueiro de 2011, que já (re)aquece os motores da intriga, bem como o coro dos comentadores televisivos oficiosos, para se identificar bem esse nervosismo que apossou a área conservadora - sentimento que, significativamente, pretendem que se transfira para dentro do PS. Nem sequer à "novidade" dos trocadilhos patetas com o apelido do putativo candidato o país foi poupado, como já era de esperar.

A apressada "desconstrução" já começou, com a microscópica análise do currículo político de Sampaio da Nóvoa (nele tentando descobrir quaisquer passos "vermelhuscos", que possam vir a inquietar o eleitorado do centro), logo seguida pela esperada exegese irónica do seu discurso, especialidade de que duas ou três figuras calistas fazem hoje modo garantido de vida. Daqui a dias, a ação prosseguirá com a desqualificação individualizada dos apoiantes que começarem a emergir, se bem se conhece a lógica sequencial deste tipo de operações. 

Desconheço qual será o destino da possível candidatura de Sampaio da Nóvoa. Uma coisa é certa: se ela preocupa assim a direita, já tem "meio caminho andado".

domingo, abril 05, 2015

Memorabilia diplomatica (XXI) - Circuitos


Num fim-de-semana, durante uma reunião que teve lugar em Genebra, nos anos 80, um grupo de delegados alugou um carro para um passeio fora da cidade.

Íamos no caminho entre Genebra e Nyon, à borda do lago, quando a conversa derivou para o trajecto sinuoso da estrada em que rodávamos, através de localidades. Alguém referiu que certas partes do percurso eram mesmo bastante perigosas.

Aí, um dos membros do grupo comentou: "E pensarmos nós que se faz aqui uma prova automobilística de tão grande importância...".

Nenhum dos comparsas de viagem fazia a menor ideia de que havia uma prova automobilística que passava por ali, pelo que pensámos que o nosso interlocutor se estaria a referir a algum rally. E, claro, pretendemos ser esclarecidos sobre o evento a que se referia.

O nosso homem - porque era um homem... - assumiu então um tom de connaisseur e, com ar de quem nos ia esmagar com a humilhante exposição do nosso tão óbvio desconhecimento, avançou: "Então vocês não sabem que passam por aqui as '24 horas de Le Mans'"?

Um ou dois segundos, para "digestão" mental da revelação, mediaram entre a frase e o coro de gargalhadas dos restantes viajantes. O lago à volta do qual passeávamos era o lago Léman, e o nosso interlocutor estava plenamente convencido que era nas estradas à volta desse lago que se disputavam as "24 horas de Le Mans". Ora Le Mans é uma localidade francesa a sudoeste de Paris...

Até ao final da viagem o nosso homem embatucou...

(Reedição de historietas da diplomacia por aqui já publicadas)

sábado, abril 04, 2015

A esquerda e as eleições presidenciais

  • Quando todos pensavam que as eleições presidenciais iam ser um problema para a direita, é a esquerda que parece um pouco atrapalhada nas suas soluções.
  • As figuras de esquerda que, teoricamente, poderiam ganhar mais facilmente as eleições presidenciais parece não quererem arriscar a hipótese de terem de acrescentar aos seus belos currículos uma linha sobre uma candidatura falhada.
  • Para ganhar as eleições presidenciais, a esquerda não precisa de um candidato com forte imagem de esquerda: precisa de um candidato que, defendendo os seus valores essenciais, abra espaços nos eleitores do centro. 
  • Qualquer candidato oriundo da esquerda que chegue à segunda volta contará sempre com os votos de (quase) toda a esquerda, por muito pouco "progressista" que a sua imagem possa ser.
  • Pela primeira vez, a questão da aceitação de soluções governativas com inclusão de forças à esquerda do PS pode vir a ser um tema no caminho para as eleições presidenciais. O que o PS vier entretanto a dizer sobre isso vai condicionar o debate presidencial.
  • A esquerda ir-se-á sempre "balcanizar" em candidaturas, na primeira volta. Está na sua irreprimível natureza.
  • Se o PS tiver uma derrota (ou uma não vitória clara) nas eleições legislativas, a direita aproveitará o "boost" para promover o seu candidato. A contrario, se o PS conseguir um bom resultado nessas eleições, as hipóteses do candidato que lhe estiver mais próximo ganhar serão muito maiores. O eleitorado há muito que deixou o tempo "do cesto e dos ovos".

sexta-feira, abril 03, 2015

José Silva Lopes


José Silva Lopes, o economista que agora desapareceu, não era um homem tranquilo. Profundo conhecedor da realidade económica portuguesa, pouco dado a edulcorar os factos, notava-se que vivia inquieto com as fragilidades estruturais endémicas do país e que isso o angustiava. Se havia alguém no mundo económico cuja palavra eu gostasse de ouvir, mesmo que dele pontualmente discordasse, essa pessoa era Silva Lopes. E, em Portugal, se a independência tinha uma cara, essa cara era a sua. 

Sendo uma figura pública marcante nos anos da Revolução, só vim a conhecer melhor José Silva Lopes ao tempo em que ambos coincidimos em Londres, nos anos 90, quando ele era representante português junto do BERD. Ouvi-o então com grande proveito, por várias vezes, na serena e fundamentada análise que sempre fazia das questões económicas.

Já em Portugal, tivemos mais contacto ao tempo em que ele chefiava o Conselho Económico e Social. Nesse domínio, desenvolveu um trabalho muito profundo sobre a integração europeia de Portugal, tendo eu tido o ensejo de nele colaborar, a seu convite, como membro do governo do setor. Era um privilégio escutar a sua perceção informada sobre o processo de adesão, tanto mais que Silva Lopes fizera parte dos precursores desse movimento. 

Começa a ser um lugar-comum dizer das pessoas desaparecidas que fazem falta. Mas, sendo bem verdade, como o é para José Silva Lopes, trata-se apenas de uma constatação óbvia. 

Nós por lá


Vai para meio século, o jornalista Silva Costa escreveu um livro que me alertou para uma realidade que, de tão próxima, eu não tinha visto em perspetiva. O título era "Portugal ­ país macrocéfalo". 

Nesse tempo, ainda sob Salazar, não havia muitas obras que refletissem criticamente sobre os desequilíbrios económico­-sociais do país. A interessante recolha de Silva Costa, apoiada em dados incontestáveis, revelou-­me então o abafante centralismo lisboeta, em todo o seu esplendor. 

Veio entretanto o 25 de Abril, o país mudou, o municipalismo reforçou­-se, a Europa alterou-­nos a paisagem e deu um abanão nas mentalidades. Porém, o essencial da mensagem de Silva Costa permanece hoje válido. E isso continua a ser dramático para Portugal. 

Há dois países neste país. Por muito que se disfarce, há duas realidade que não se complementam, mesmo que o discurso político se obstine em criar essa ilusão. Façam uma viagem pelo interior, olhem para as zonas deprimidas, despovoadas, para o Portugal envelhecido que por ali se agrava, dia após dia. Não se deixem iludir pelas rotundas, pelos pavilhões multiusos ou pela rede viária, pelas muitas piscinas sem água, que o "ouro" ocasional de Bruxelas nos trouxe. Atente­-se nas estatísticas demográficas, da educação ou da saúde. 

Não vou ao ponto de considerar que há uma "conspiração" do litoral contra o interior, mas não tenho a menor dúvida de que, na racionalidade desenvolvimentista dominante, prevalece a perspetiva de que o país deve tender a estruturar uma grande "metrópole" litoral. Assumida ou não, essa ideia acarreta uma filosofia de verdadeira exclusão territorial, que dá por adquirido um destino apenas sofrível para as regiões do interior. E isso nem de longe será invertido pelas escassas majorações voluntaristas, em matéria de incentivos, que o futuro quadro comunitário prevê. 

Na ausência de um poder político de expressão regional ­ - por via da regionalização ou de uma descentralização com capacidade operativa -­, parece-me evidente que o mais importante foco mobilizador em que o interior se poderá apoiar são hoje as suas instituições de Ensino Superior. Discriminar positivamente essa rede é um passo essencial para o reforço da coesão territorial do país. Haverá real consciência política disto? 

Há dias, numa reunião no Nordeste transmontano, alguém agradecia o esforço de quantos se haviam deslocado de Lisboa. Para logo acrescentar: "em Lisboa, acham sempre que é mais curto irmos nós lá". A macrocefalia é também um estado de espírito. 

(Artigo que hoje publico no "Jornal de Notícias")

quinta-feira, abril 02, 2015

Manuel de Oliveira


Um grande cineasta põe fim ao seu mais longo "travelling": a vida

A saída de António Costa

Este post não é sobre quem estão a pensar! 

Quero deixar aqui uma palavra de forte simpatia ao diretor cessante do "Diário Económico", António Costa, que hoje abandona as funções que ocupava no jornal económico "cor-de-rosa". 

Escrevo no DE, a seu convite pessoal, desde novembro de 2013. Devo-lhe essa atenção, mas devo-lhe, essencialmente, a plena liberdade que me deu de nele opinar, muitas vezes a contraciclo da sua própria opinião, como ele sabia no momento em que me convidou.

A vida tem ciclos, o tempo profissional de António Costa vai agora ser outro. Desejo-lhe o maior sucesso pessoal. Vamo-nos encontrando por aí. Lisboa é apenas uma grande aldeia! 

Memorabilia diplomatica (XX) - Nomes

Era um encontro a quatro. O embaixador tinha-me encarregado de passar pelo hotel e trazer, para jantarem na sua residência, dois funcionários de umdepartamento do Estado português que tinham ido àquele país negociar um instrumento jurídico bilateral e que, dois dias decorridos e com a missão cumprida, se aprestavam para regressar a Portugal, no dia seguinte. À chegada, como era de bom tom, tinham passado pela embaixada a cumprimentar o embaixador e este retribuía agora a gentileza no termo da missão, convidando-os para uma refeição, que era também uma oportunidade para os "debriefrar" sobre o seu trabalho.

O chefe dessa pequena delegação era um funcionário já de uma certa idade (na minha memória, mas provavelmente era mais novo do que sou hoje), com forte experiência na matéria que tinha ido tratar, o que se revelava no modo competente e profundo como a abordava. O jantar correu animado, com o embaixador e o seu principal convidado a tomarem conta da conversa.

A certo passo, um de nós inquiriu sobre quanto tempo demoraria a entrar em vigor aquilo que ficara acordado. Notei que o homem foi apossado de um súbita irritação, que não nos era dirigida, mas que relevava, como logo viemos a constatar, da morosidade dos trâmites que, tradicionalmente, aquele tipo de assuntos sofria, nos corredores oficiais de Lisboa. Ouvimos então dele uma litania sobre a "via sacra" de pareceres e vistos, a expressão triste do país de burocratas que Portugal era.

"O senhor embaixador não imagina as más vontades que, por vezes, temos de defrontar", disse o técnico. E, para ser mais enfático e preciso, citou um determinado ministério, arriscando mesmo uma confidência: "Por exemplo, só ali, há um cretino, que tem lá um lugar importante, que há anos que me boicota tudo". E disse o nome do burocrata sabotador.

Olhei para o embaixador. Estava sereno. E, no entanto, o nome referido pelo homem vindo de Lisboa era precisamente o seu, nome aliás muito pouco comum, o que reduzia quase a zero a possibilidade de não haver uma relação de patentesco com a pessoa indicada. Mas o embaixador mantinha-se impassível, continuando a participar na conversa como se nada de estranho se tivesse passado.

O jantar terminou, sempre em excelente ambiente. Conduzi os dois visitantes ao hotel e, no caminho, perguntei ao líder da missão se acaso sabia o nome do embaixador.

"Ainda bem que me pergunta isso! É que não sei mesmo! Ia até pedir-lhe o nome dele para, logo que cheguemos a Lisboa, eu lhe enviar uma carta a agradecer toda a gentileza que teve para conisco. É uma simpatia, este seu embaixador!"

No segundo seguinte, quando lhe referi o apelido do embaixador, que coincidia com o do tal burocrata que ele tratara por "cretino", julguei que ia dar "uma coisa" ao nosso homem! Percebeu, logo aí, a imensidão da "gaffe" que cometera e que, na prática, seria difícil de retificar.

A situação - confesso, sem pudor - estava a dar-me algum gozo, mas não queria fazer transparecer esse meu divertimento, porque isso seria quase ofensivo, face à atrapalhação do homem, cuja noite presumi que já não iria ser muito sossegada. Que iria ele fazer? Pedir desculpa por carta? Telefonar ao embaixador? A dizer o quê? Até chegarmos ao hotel, entrou num embaraçado mutismo.

No dia seguinte, na embaixada, a vida correu normalmente. A certa altura, o embaixador entrou no meu gabinete, o que costumava fazer a meio de todas as manhãs. Comentou o jantar do dia anterior, sem denotar ter sido tocado pelo incidente. Pelo contrário, elogiou o chefe da delegação: "É um homem muito inteligente e competente".

Eu estava "em pulgas" para ver a sua reação à "gaffe", pelo que adiantei, um pouco a medo: "Foi um pouco desagradável aquela referência que o homem fez... Seria por acaso alguém da família do  senhor embaixador?"

Notei um ligeiro sorriso na cara do meu chefe. "Ele referia-se ao meu irmão, mas nem devia saber o meu nome, caso contrário, estou certo que não teria feito o comentário". Confirmei-lhe isso mesmo, referi-lhe a atrapalhação do homem no carro, quando percebera a dimensão da "argolada". Sem perder o sorriso, o embaixador retorquiu: "O meu irmão é um grande chato. O homem até deve ter razão na crítica que lhe faz". E, sem perder o sorriso, regressou ao seu gabinete.

quarta-feira, abril 01, 2015

Evasões


A convite do "Diário de Notícias", vou escrever - uma vez por mês - para a sua nova revista "Evasões", que tem uma edição semanal distribuída com o DN e o JN, uma crónica em torno de um restaurante, mas não só. Logo verão! 

Memorabilia diplomatica (XIX) - Das mentiras

O rapaz espreitou pela porta e o chefe de repartição lançou-lhe, do fundo da sala, num tom um tanto impaciente: "Entre! Entre! Ó Torquato!".

Voltando-se para o embaixador português na Mauritânia, sentado no sofá a seu lado, esclareceu: "O Torquato está cá há uns meses, é do último concurso de adidos". E olhou o adido: "O Torquato conhece o senhor embaixador Gameiro, que está em Nouakchott, não conhece?", com o Torquato a rumorar que sim.

O Torquato, embora simpático, era do género displicente e algo descuidado, gravata permanentemente descaída, um ar de quem anda ali por favor, a quem tanto se dá estar na carreira diplomática como viver à custa dos vastos rendimentos da família, cujo "social" lhe espreitava no nome e lhe permitia alguma subliminar cobertura de membros da hierarquia da casa. Entrara para a carreira quase por acaso, num bambúrrio do concurso. Era useiro e vezeiro em chegar tarde e a más horas ao serviço, passava o dia agarrado ao cigarro, a ler o jornal esticado num sofá, sendo de uma lentidão exasperante na execução das escassas tarefas de que era encarregado.

"Ó Torquato, você chegou a falar com o ministério dos Assuntos Sociais, sobre a questão do acordo sobre segurança social com a Mauritânia? Aqui o senhor embaixador Gameiro precisa de saber em que ponto o assunto está."

O adido, com um ar um tanto ausente, explicou que tinha telefonado duas vezes, que não tinha obtido qualquer informação sobre o estado do projeto de acordo, mas que ia ligar de novo.

"E com quem falou você lá?", inquiriu o chefe, já em tom levemente inquisitivo.

O Torquato embrulhou-se numas explicações menos convincentes, tão pouco plausíveis que delas quase se deduzia que, na realidade, não tinha mesmo tratado do assunto.

"Está bem, está bem! Vá lá ver isso já e diga-me alguma coisa à tarde. Sem falta!", com o rapaz a desaparecer, aliviado, pela porta.

O chefe explodiu: "Desculpa lá, pá! Este tipo é um mentiroso! Já não é a primeira vez que o apanho nestas patranhas", comentou, desalentado, o chefe. "Mandaram-mo aqui para a Repartição e agora não me consigo livrar dele."

O embaixador visitante tentou moderar a irritação do amigo: "Ó homem! Deixa lá! Também não tens a certeza se o rapaz mentiu. Até pode ter tentado telefonar..."

"Estás muito enganado! Este tipo é tão mentiroso que nem sequer se pode acreditar no contrário daquilo que ele diz..."

(Reedição de historietas da diplomacia por aqui já publicadas)

terça-feira, março 31, 2015

UK


Começou a campanha eleitoral no Reino Unido. Daqui a pouco mais de um mês, no dia 7 de maio, quinta-feira, dia normal de semana, os britânicos irão a votos. No dia seguinte, dia 8 de maio, sexta-feira, antes da sessão parlamentar, que começará impreterivelmente às 14 horas, o primeiro-ministro, nomeado pela raínha nessa manhã, estará na Câmara dos Comuns a apresentar, com todo o seu governo, o programa do novo executivo.

Em Portugal as coisas não são assim. Somos um país "rico" que se dá ao luxo de perder meses em campanhas eleitorais caríssimas, com tempos de antena que nos trarão, entre outros, o POUS e outros alienígenas de cujo nome logo nos esqueceremos, até ao próximo sufrágio.

Durante todos estes anos, à boca pequena, ouvimos muitos queixarem-se dos prazos eleitorais. O que suscita uma pergunta: o que é que, no decurso de uma década, fez o senhor presidente da República, tão vocal a pedir consensos, para convencer os partidos a aligeirar os calendários eleitorais? E que iniciativas tiveram levaram a cabo PSD e PS - os outros partidos são meros usufrutuários da visibilidade televisiva - para racionalizarem estes nossos atos eleitorais de extensão terceiro-mundista? Isto tem pouca importância? A indecisão que suspende o país por alguns meses tem mais efeitos deletérios na economia do país do que os feriados que tanto excitaram o governo e os seus mandantes da troika. 

É tão fácil!


De há uns meses para cá, tenho dado por mim a pensar que, em toda esta azáfama que por aí anda, a propósito das eleições presidenciais, há uma estranha confusão: nunca foi tão fácil escolher um presidente!

Os últimos dez anos terão instruído os portugueses quanto ao perfil para o futuro inquilino de Belém. Depois desta última década, a maioria dos votantes poderá ter já definido o “retrato robot” de um futuro chefe de Estado. Os leitores, maliciosos, perguntarão: pela negativa? Talvez, mas aprende-se às vezes mais com os erros do que com alguns exemplos.

Pertenço a um tempo que, em democracia, elegeu Ramalho Eanes com o encargo de vestir “à paisana” a chefia do Estado, depois de 50 anos de variadas fardas. E o país deve-lhe isso. Só votei no general “by default”, nunca lhe perdoei o PRD, mas reconheço o perfil ético que projeta.

Mário Soares, de quem comecei por não ser entusiasta, acabou por ser a minha alegria na política. Presidente com governos adversos, soube gerir magistralmente as tensões e proteger o regime, prestigiou o nome de Portugal, identificando-se pelo mundo como o verdadeiro presidente de abril. Olhando para os que hoje o detestam, fico ainda mais satisfeito em tê-lo ajudado a eleger.

Sou bastante suspeito em relação a Jorge Sampaio. Não sendo da sua geração etária, sinto-me da sua geração política, revejo-me nele como raramente me aconteceu com uma qualquer outra figura da nossa vida cívica, felicito-me por pertencer a um país que teve a sabedoria de lhe entregar os destinos da presidência por uma década.

Depois de Sampaio, transcorreram já dez anos. Anos que acabam por ser úteis, porque, em democracia, desde que saibamos aprender, todas as lições têm a sua importância, não obstante o seu preço.

O que queremos num futuro presidente, homem ou mulher?

Desde logo, queremos ver nele atitude e sentido democráticos, independência, respeito pelos partidos, uma observância inteligente da Constituição da República, não como um manual de instruções de um eletrodoméstico, mas como um permanente referencial cívico, uma agenda de valores, a moldura maior de um projeto de esperança. O presidente, respaldado na legitimidade unipessoal única do voto direto, tem de ser visto como uma espécie de “provedor” do povo. Como se dizia noutro tempo e noutro contexto, os portugueses merecem ter em Belém “um amigo”.

Um futuro presidente tem de ser alguém que nos orgulhemos de ter como imagem do país, pela sua cultura, pela estatura que nos eleva “lá fora”, pelo respeito que atrai para o nome de Portugal.

Quer-se também um presidente que, em todas as situações, seja a imagem da transparência, da lisura de processos, a ética feita pessoa – e assim reconhecida pelos outros. Alguém que não somatize ódios e frustrações, que não “jogue” para as escassas linhas que deixará na História, que não viva para “ter razão” mas que consiga efetivamente ser útil ao país e aos portugueses.

Um nome para reunir essas qualidades? Isso é um detalhe. O importante é consensualizar o perfil. Portugal não se pode dar ao luxo institucional de voltar a ter uma década como aquela que passou.       

(texto de um artigo que hoje publico no "Diário Económico")           

segunda-feira, março 30, 2015

Construtores da História


Um dia, tive o privilégio de visitar o forte Príncipe da Beira, uma construção portuguesa do século XVIII, nos confins do estado brasileiro da Rondónia, junto à fronteira com a Bolívia. É uma construção magnífica da arquitetura militar portuguesa.

À comoção de estar naquele lugar tão simbólico da presença portuguesa no Brasil somou-se, logo à entrada no forte, o deparar com uma placa onde se lê um extrato de uma carta de junho de 1776, enviada por D. Luis de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres, governador e 4º capitão-general da capitania de Mato Grosso. O que se escreve nesse texto passou para mim a consubstanciar o verdadeiro conceito de Serviço Público:

"A soberania e o respeito de Portugal impõem que, neste lugar, se erga um Forte, e isso é obra e serviço dos homens de El-Rei nosso Senhor e, como tal, por mais duro, por mais difícil e por mais trabalhos que isso dê, é serviço de Portugal. E tem que se cumprir".

Ontem à noite, hospedei-me num belo hotel beirão, adaptado a partir de um palacete. Olhei para a memória histórica da casa e verifiquei que a sua construção se ficou a dever a D. Luis de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres.

O grande mundo português é muito pequeno.

Armando Sevinate Pinto (1946-2015)


Creio que em 1998, fiz uma visita oficial à Roménia, como secretário de Estado dos Assuntos europeus. Aquele país estava então a trabalhar no seu processo de adesão às instituições europeias e o setor da agricultura era um dos dossiês mais difíceis que tinha de enfrentar.

A pedido das autoridades romenas, decidimos organizar, em paralelo à visita, um "workshop" sobre o tema. Convidei para orientar o "workshop" Armando Sevinate Pinto, um dos mais reputados especialistas na área, que havia trabalhado no processo de adesão de Portugal e, em Bruxelas, viria a ocupar funções da maior importância na área agrícola da Comissão. Sendo um homem de pendor conservador, a sua escolha para esta tarefa ia fazendo "cair o Carmo e a Trindade"... mais o Rato! Borrifei-me para estas reações e, como era expectável, o seminário foi um sucesso para a imagem de Portugal.

No final do dia de trabalhos, encerrei o "workshop" com um curto discurso. Expliquei aos romenos presentes que "aquele senhor" ali ao meu lado, se acaso a oposição em Portugal viesse a ganhar futuramente as eleições, seria, muito provavelmente, o próximo ministro da Agricultura. E acrescentei que, nesse cenário, também era provável que eu viesse a ser o futuro embaixador ... talvez em Bucareste. Enganei-me em termos relativos: Armando Sevinate Pinto iria, de facto, ser o futuro ministro. Eu, porém, acabei por não ir parar a Bucareste. Como eu esperava, o governo em que Sevinate Pinto era ministro retirou-me quase imediatamente da ONU, em Nova Iorque, mas decidiu mandar-me para... Viena.

Meses mais tarde, publiquei, em Lisboa, um livro. Não obstante eu ser, à época, "persona non grata" do governo em funções, Armando Sevinate Pinto fez questão de estar presente no lançamento, o que, segundo soube, não foi visto com muitos bons olhos em S. Bento.

Fui amigo de Armando Sevinate Pinto por cerca de quatro décadas. Hoje, o António Luis Neto, outro comparsa desses tempos, ao avisar-me da morte do Armando, lembrou-me que, de uma "célebre" equipa que fez parte do serviço militar em determinadas "guerras", só restamos nós os dois, de quantos se sentavam então na mesma sala. O mundo está perigoso!

Armando Sevinate Pinto era, para além do especialista indiscutível na agricultura do nosso país (e espero que alguém publique o importante conjunto de artigos que nos últimos tempos editou no "Público"), um excelente amigo, uma pessoa de sorriso são, quase adolescente, que se sentia que estava de bem com a vida e que tinha do país uma leitura positiva e de esperança. Não coincidíamos politicamente, divergíamos mesmo em coisas importantes e sobre pessoas sobre cuja importância discordávamos em absoluto, mas, em nenhum momento, essas dissonâncias criaram a menor núvem na nossa relação. Sempre que nos encontrávamos, regressávamos aos dias em que nos conhecêramos, como se o tempo se tivesse suspendido.

O Armando estava muito doente, como eu já sabia. Morreu agora. Vai hoje a enterrar, na terra que ele estudou como poucos, nessa "arte" da agricultura que foi o seu grande e glorioso destino de vida.

Um último abraço para ti, Armando!

domingo, março 29, 2015

Por hora


A hora muda duas vezes por ano. 

Num desses dias, lá para o Outono, chegados às duas da manhã, voltamos à uma. Ganhamos um hora! Posso ficar mais uma hora na cama ou no computador, sem ser sujeito a quaisquer remoques de ser um compulsivo "late riser", uma soez acusação que me persegue praticamente desde a infância.

Neste dia, a lei está comigo e tenho 60 minutos mais - 3.600 segundos! - para atrasar o meu regresso à vida ativa. Às vezes, confesso, só de tentar convencer quem está à minha volta da racionalidade indiscutível desta minha leitura, acabo por despertar e perder o sono. Já dei comigo a pensar que tenho de preparar melhor estas coisas, no futuro. 

O mundo está, infelizmente, construído num desagradável equilíbrio compensatório. E, assim, no final de março, acontece sempre uma noite aziaga em que nos roubam uma hora. É hoje! Não apenas somos impedidos de dormir a nossa quota habitual de sono como nos vão tirar mesmo uma hora, isto é, dão um alibi a quem nos desperta na manhã deste dia sinistro e nos avisa de que "já são dez horas!", uma sádica advertência face à insofismável realidade de serem apenas nove horas. 

Há sessenta e demasiados anos que convivo com esta tragédia. Tenho procurado companheiros de infortúnio, mas apenas encontro almas acomodadas com esta realidade ou - pior ainda! - madrugadores profissionais, figuras relutantes à minha pouco popular teoria de que as caçadas deveriam começar depois de almoço, que se deveria ir à pesca, qual Lorca, "a las cinco de la tarde".

Hoje mesmo, por esta hora, hospedado num Parador da planicíe castelhana, acabo de receber a advertência, imperativa, de que "el desayuno" é "hasta las 11 horas". E é, manifestamente, falso: se eu chegar, amanhã, um pouco antes das 11 horas, para a dose habitual de "embutidos", "queso" e "jugo de naranja", para acompanhar o meu tradicional "doble expresso", vou dar com o nariz na porta "del comedor": "La hora ha cambiado. Estamos cerrados, caballero!". 

O mundo é muito injusto! Bolas!

Memorabilia diplomatica (XVIII) - Sexo literário

Foi no Maputo, há já uns anos.

A lista dos condecorados era longa e o respectivo leitor, de nacionalidade portuguesa, era, manifestamente, uma pessoa pouco sensível às letras moçambicanas. Assim, sem hesitação, anunciou a certa altura da solenidade: "E agora, vai receber a ordem X a Senhora Dona Mia Couto".

Um frémito de embaraço e riso sacudiu a audiência. Mia Couto, o excelente escritor de Moçambique, afivelou um sorriso por detrás dos óculos e da barba, encaminhando-se para o palco onde o presidente português o aguardava, também este um pouco incomodado com a inesperada feminização do agraciado.

Um colega meu, de graça rápida, logo deixou cair, baixo: "Ainda bem que hoje não é condecorada a Senhora Dona Sara ... Mago!".


(Reedição de historietas da diplomacia por aqui já publicadas)

sábado, março 28, 2015

Memorabilia diplomatica (XVII) - A poesia e o PIB


Morreu o prémio Nobel da literatura Tomas Transtromer, poeta sueco.

Recordo-me bem do dia em que Transtromer ganhou o Nobel. Não porque conhecesse a sua obra, mas precisamente pelo contrário, por nunca ter ouvido falar dele até esse mesmo dia e, numa curiosa coincidência, por ter tido nessa data um almoço com o meu colega embaixador sueco em Paris.

Fiquei a pensar se não conhecer tal poeta seria, ou não, uma imperdoável lacuna cultural da minha parte. E, pelo sim pelo não, durante o almoço, depois de o felicitar, perguntei ao meu colega sueco se acaso os nomes de António Ramos Rosa ou de Herberto Hélder lhe diziam alguma coisa. Disse-me que não e sosseguei. Também ele não conhecia dois génios da poesia portuguesa.

O meu sossego durou pouco, ao ouvi-lo dizer, logo de seguida, que, como poetas portugueses, apenas conhecia Fernando Pessoa e Camões. Ora eu não sabia o nome de nenhum poeta sueco (lembrei-me, depois, mas só lá cheguei com ajuda do Google, de um nome da respetiva literatura, mas não da poesia, de Lagerkvist)! O meu colega sueco ouvira falar de nomes da poesia portuguesa e eu, de literatura sueca, nicles!

Lembro-me de ter ido remoer o assunto, a caminho de casa. E, de súbito, aquietei o espírito com a reconfortante ideia de que, se isso acontece, é seguramente porque a nossa poesia é bem melhor do que a sueca. Deve ser isso! Pena é que ela não conte para o PIB...

(Fui recuperar esta historieta, aqui já publicada, neste dia em que morreu o poeta sueco)

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...