sexta-feira, agosto 07, 2015

Chover no molhado


Foram anos terríveis. A vida correu-lhe mal. A empresa onde trabalhava fechou, o novo emprego é precário, a pensão dos velhotes foi cortada, a mulher caiu doente. O filho, sem ocupação, emigrou. Vendeu a casa, prescindiu de ter férias. A certo passo, sentiu-se como que impotente perante os desafios da vida. Mas aguentou. Com a passagem do tempo, adaptou-se (que remédio!), diminuiu ambições, baixou as expetativas, resignou-se. Agora só quer esquecer os anos em que quase desesperou.

Um destes dias, cruzou-se na rua com um amigo que já não via há muito. No meio daquela conversa do "como estás?", ao amigo deu para perguntar-lhe pelo passado recente, inquirir das maleitas, físicas e materiais, da família (que continuavam), se a nova ocupação já era mais estável (não era), se o filho afinal tinha uma atividade compatível com os seus estudos (não tinha).

Sentiu-se incomodado. Que diabo! Logo agora, quando ele só queria olhar em frente, o amigo falava-lhe do que o atormentava, trazia-lhe à ideia a fragilidade da vida que conseguira. As coisas não iam bem, era evidente. Mas ele olhava à volta e via outros em situação ainda pior. Na desgraça coletiva, comparava-se e sentia-se menos mal. E logo vinha aquele amigo “chover no molhado”…

Às vezes, ao ouvir algumas mensagens da campanha eleitoral socialista, dou comigo a pensar se os portugueses, num tempo em que querem ver-se livres de fantasmas, em que desesperadamente pretendem encontrar razões para sorrir, desejam ser confrontados com um discurso onde prevaleça a crítica do passado e a denúncia do que lhe fantasiam como melhorias no presente.

Muitos sabemos que o “oásis” que o governo nos vende é rotundamente falso, que os índices de desemprego são manipulados, que o regresso aos mercados vive da firmeza do BCE, que a retoma é débil, que as empresas estiolam por falta de crédito. Já percebemos os truques oficiais que, em época pré-eleitoral, alambicam algumas facilidades fiscais, colocando nos NIB mais alguns euros.

O português - você e eu – é um ser desencantado que, ao olhar hoje o futuro, tem de ter razões concretas para mudar o que está, no novo ciclo que aí vem. Não chega desconfiar deste pessoal que nos enganou no último quadriénio, porque a lógica do “the devil you know…” pode acabar por impor-se.

O cidadão eleitor tem de sentir que as novas propostas que são colocadas à sua frente são credíveis e que o seu futuro pode mudar para melhor se forem postas em prática, tituladas por gente capaz e de bem. Ser alternativa é isso: transmitir confiança e configurar a esperança. 

(Artigo que hoje publico no "Jornal de Notícias")

quinta-feira, agosto 06, 2015

Luis Roseira


Com 91 anos, morreu Luis Roseira. Um grande homem do Douro, uma notável figura de cidadão.

Uma opinião

"A economia portuguesa está a beneficiar de fatores externos positivos. Finalmente conseguiu travar o pânico do verão de 2012. Além disso, as políticas de quantitative easing do BCE têm feito baixar os custos dos empréstimos portugueses para mínimos históricos. A descida do preço do petróleo e um euro mais fraco também têm ajudado. Internamente, a extrema austeridade de 2011-12 foi aliviada: o aperto fiscal é muito menor neste ano. Como resultado a economia está a crescer outra vez, lentamente. Mas Portugal ainda está num buraco fundo. A economia está ainda 7,5% mais pequena do que no seu pico no início de 2008 - na verdade está mais pequena do que em 2002 - e ao nível atual de crescimento de 1,5% não vai voltar aos níveis de 2008 antes de 2020: mais de uma década perdida. As dívidas globais - das famílias e das empresas - são insuportavelmente grandes. Os bancos ainda estão numa confusão, com o escândalo do BES à cabeça. Os salários caíram. A pobreza aumentou. O desemprego continua altíssimo. Muitos portugueses emigraram. Ajustando para a população ativa que não tem trabalho e o subemprego, o FMI calcula uma redução do mercado de trabalho de 20%. O FMI também diz que as reformas portuguesas foram inadequadas e que ainda têm de produzir benefícios. Portugal é um país europeu relativamente pobre. Devia estar a aproximar-se dos mais ricos através de mais investimento e aumentando a produtividade. Em vez disso, está a posicionar-se para ser ultrapassado pela Polónia e outros. É trágico."

Phillippe Legrain, economista britânico, consultor da Comissão Europeia

Jon Stewart


Somos todos, um pouco, americanos. Cada um à nossa maneira. Por muito que alguns o não queiram assumir, todos temos "a nossa América" em que nos revemos, todos "votamos" nas eleições por lá. Às vezes, cansados do Chile ou do Iraque, fingimos que nada temos a ver com "aquilo", mas, logo que nos aparece um ET pateta a defender a Sarah Palin, temos logo um Obama para lhe mandar à cara. Quando os "neocons" da paróquia destilam Chicago, lançamos mão de um Stiglitz ou um Krugman para lhes retorquir. Por cada Reagan ou Wayne que saia do baralho mccarthista, emergirá sempre um Woody Allen ou um Sean Penn para nos reconciliar com o Novo Mundo. Para cada "Washington Times" há sempre um "The New York Times". 

Há uma América para todos os gostos. A minha tem lá dentro Jon Stewart e hoje, dia em que vai para o ar o seu último "Daily Show", não consigo conter a minha nostalgia.

Conversas no Pereira (3)

- Então o Duarte Lima tinha dois Brueghel? Aquilo deve valer uma fortuna...

- Sim, parece que ele tinha uma bela coleção de quadros. Todos com o mesmo tema.

- Ah! Sim? Que tema?

- Naturezas mortas.

quarta-feira, agosto 05, 2015

Conversas no Pereira (2)

- Neste início de época, o teu Benfica parece esquisito. Bom, sem Jesus, não há milagres...

- Está bem, está bem! No domingo, logo veremos!

- De qualquer forma, uma coisa é certa: no final do jogo, têm Vitória no papo...

- Também não estou assim tão seguro...

- Eu referia-me ao treinador. Ter um treinador chamado Rui Vitória sempre vos amacia as derrotas...

Entre portas


Ontem, o "Diário de Notícias", no seu "folhetim" de Verão, ficcionava um encontro secreto no largo do Rato, entre António Costa e Paulo Portas, a pedido deste último. Dizem-me que, por algum tempo, a Santana à Lapa tremeu, antes de perceber que, pelo menos por ora, se tratava de uma invenção. É que o PSD não confia, mesmo nada, em ... António Costa. Ao ler esse segundo episódio do anónimo escriba que vai fazer tremer o país político nas semanas que se seguem, recordei uma cena que, de certo modo, dá alguma verosimilhança ao episódio ficcionado.

Não sei a data do que vou relatar. Ou melhor, sei, mas não vou dizer, apenas posso revelar que o facto se passou entre 1995 e 2001.

O governo socialista, chefiado por António Guterres, governava então com maioria relativa. Necessitava, por isso, de compromissos permanentes com os partidos situados à sua esquerda e à sua direita, para fazer passar os seus orçamentos e legislação. Foi uma sina diária de negociações, "peça-a-peça", que obrigava a desgastantes negociações, mobilizava bastidores e obrigava a entendimentos que, para todos os atores políticos, eram sempre complicados de gerir. E, as mais das vezes, difíceis de explicar abertamente, perante as opiniões públicas e partidárias.

Num desses tempos, o processo político no seio do governo estava a revelar-se mais complicado. Como sempre sucede nestas coisas, seguia-se a regra clássica da "intelligence": o clássico "need to know" aplicava-se ao nosso dia-a-dia de membros do governo. Sabíamos apenas o que devíamos saber, nada mais. Presumíamos que, à nossa revelia, se passavam muitas "conversas", mas não éramos mantidos, e bem, no "segredo dos deuses". E raramente perguntávamos, não fora termos como resposta o também britânico "mind your business!".

Num sábado de manhã, fui chamado a S. Bento. Era necessário preparar uma qualquer mensagem a transmitir a Bruxelas, já não me recordo a propósito de que assunto. Eram tempos ansiosos, em que não tínhamos a certeza de que os nossos propósitos pudessem fazer vencimento. Não ter maioria fragilizava muito a nossa posição. A nossa capacidade de garantir determinados objetivos na Assembleia da República era limitada, e isso afetava a governabilidade.

A reunião da meia dúzia de membros do governo que Guterres convocara acabara entretanto. Por algumas horas, havíamos estado naquela sala que, ao tempo de Cavaco Silva, fora criada na cave de S. Bento, com o objetivo de ser uma espécie de "gabinete de crise". Numa decisão que ainda hoje reputo de infeliz, Guterres tinha decidido transferir para aí as reuniões do governo em S. Bento (outras tinham lugar no edifício da Presidência do Conselho de Ministros, na rua Gomes Teixeira, em Campo de Ourique). Foi assim que se acabou com uma bela sala, ornada por uma estupenda tapeçaria de Portalegre, que Marcelo Caetano decidira transformar em sala do Conselho de Ministros, no 1º andar da residência oficial. Seria depois um gabinete que, se bem me recordo, foi ocupado por António Vitorino, Guilherme Oliveira Martins e José Sócrates, entre outros que se por ali se seguiram.

A reunião caíra sobre a hora do almoço. Saí apressado pela pequena escada que leva ao hall rés-do-chão, em direção à porta exterior. À passagem, não pude deixar de olhar, por um instante, para a porta entreaberta da sala de espera. Esse é, muitas vezes, o espaço para encontros ou entrevistas, a zona mais ampla que os primeiros-ministros têm ao seu dispor, para receber, naquele edifício.

Por entre portas, vi-o então, de modo fugaz. Era um dos líderes da oposição. Nas semanas anteriores, no areópago a cem metros de distância, durante os debates parlamentares, ele zurzira, sem dó nem piedade, o primeiro-ministro, a quem acusara das maiores malfeitorias feitas à pátria, das abdicações mais ignominiosas perante Bruxelas. Por humilde tabela, como responsável direto por essa frente europeia, eu próprio fora atingido por essa catilinária oposicionista. Imagino que, na bancada do governo, com a bonomia que lhe era própria, olhando o meu nervosismo de neófito político, Guterres me possa ter dito: "Não se preocupe, meu caro, é a vida!".

Agora, ali estava ele. Vinha, com toda a certeza, para uma conversa (senão mesmo para um almoço!) com o primeiro-ministro, num daqueles encontros que se não podem contar, mas que o compromisso nacional justificava. Com uma curiosidade insanável, ou com uma impaciência legítima, espreitara quando ouviu passos e, desprevenido, acabou por revelar-se a quem passava. Que era eu. 

Não hesitei. Escancarei a porta. Ele sorriu-me, tentando não se mostrar embaraçado, fingindo à-vontade, procurando ser mestre da cena.

- Então por aqui?!, lancei-lhe, com um sorriso do tamanho da minha supresa.

Ele não se deu por achado. Fingindo, sem fingir, uma seriedade que o momento justificava, lançou-me esta frase que, ainda hoje, não esqueci:

- Você não me viu, Francisco! Eu não estive aqui...

Procurando estar à altura da tragicomédia, retorqui:

- Era o que mais faltava! Você nunca aqui viria!

Ontem, ao ler o relato da "ida" de Portas ao Rato, lembrei-me deste episódio. Às vezes, a realidade é mais imaginativa do que a ficção.

terça-feira, agosto 04, 2015

"Os Verdes"



Fotografia de pormenor de um recente comício do Partido Ecológico "Os Verdes".

Quem descobrir onde foi o comício, tem direito a um volume de 600 páginas onde se elencam as divergências entre Os Verdes e o PCP.

Os dias da Europa

Nos dias que correm, por esta Europa, abalada pela crise grega e pela tragédia migratória, todos temos mais interrogações do que respostas. Mas é na forma inteligente como as questões certas são colocadas, mesmo se de forma desencantada e com chocante realismo, que sempre reside a chave das soluções do futuro.

Hoje, respetivamente no "Público" e no "Diário de Notícias", Fernando Neves e Bernardo Pires de Lima escrevem "Racismo e muros, voltem, estão perdoados" e "Batemos no fundo". 

São dois textos que põem o dedo na ferida. Leiam-nos.

Dirceu


Se há alguém a quem Lula deva muito na sua ascensão ao poder essa pessoa chama-se José Dirceu. Líder estudantil durante a ditadura brasileira, foi preso, esteve exilado em Cuba, regressou clandestinamente ao Brasil e viria a ser um dos grandes organizadores do Partido dos Trabalhadores, a frente ideológica que teve Lula da Silva como figura de proa.

Com a chegada de Lula à Presidência, Dirceu foi, clara e naturalmente, o número dois da nova administração. Sem surpresas, Lula confiou-lhe a poderosa chefia da Casa Civil, um lugar que, numa certa medida, pode ser equiparado ao de primeiro-ministro. 

No Brasil, o governo, sendo dirigido formalmente pelo presidente, é uma entidade cuja dimensão (são bem mais de trinta ministérios) não permite reuniões coletivas regulares. Durante os cerca de quatro anos em que fui embaixador em Brasília, recordo-me de ter havido uma meia dúzia de reuniões completas do governo. Por esse modo peculiar de funcionamento, o papel do chefe da Casa Civil torna-se vital. É ele quem cria e coordena grupos sectoriais de trabalho que, de certo modo, e no seu somatório, substituem as reuniões plenárias dos ministros.

José Dirceu foi um chefe da Casa Civil com força e visibilidade. Hoje, parece provado que, em paralelo, esteve no centro do chamado "mensalão", um esquema de financiamento de deputados que permitia ao governo assegurar a aprovação das suas medidas. As verbas para esse mecanismo provinham, ao que ficou provado, da sobrefaturação de certos contratos. Dirceu acabou por ser um dos condenados nesse famoso processo, que abalou fortemente o prestígio de Lula. Teve de abandonar a Casa Civil, sendo substituído por Dilma Rousseff.

Conheci José Dirceu em 2005, poucos dias após a minha chegada a Brasília, num jantar que me foi oferecido em casa de um amigo comum, onde também estavam figuras como o antigo presidente José Sarney, o presidente do Supremo Tribunal, Nelson Jobim, ou o então como agora de novo presidente do Senado, Renan Calheiros. Dirceu era então um homem confiante, que emanava poder, bastante cordial e simpático para comigo e para Portugal, embora projetasse sempre uma aura de mistério, talvez fruto do facto de o olharmos conhecendo o seu complexo passado político.

Dirceu volta agora a ser detido, curiosamente quando cumpria uma pena em prisão domiciliária. Em escassos anos, de figura hiper-poderosa e temida, tornou-se numa das personalidades mais detestadas do Brasil. Ainda antes da sua condenação, sabia-se que tinha dificuldade em viajar de avião, porque era regularmente insultado nas salas de espera dos aeroportos. Com o seu alegado envolvimento na nova operação que investiga a corrupção na Petrobras, Dirceu entra agora num outro calvário. 

Na leitura de muitos brasileiros, esta nova detenção de José Dirceu faz aproximar cada vez mais o atual processo judicial de Lula da Silva. Embora quem conheça a situação no seio do PT, e as relações internas que a estruturam, não deva ter dúvidas que o entendimento entre Dirceu e Lula já há muitos anos que estava bem longe desse dia longínquo de início de 2003, em que ambos entraram no Palácio do Planalto, com uma agenda em que os brasileiros colocaram então uma forte esperança.

segunda-feira, agosto 03, 2015

Despedida de um amigo

O corpo pesado estende-se pela cadeira, por detrás da secretária. A custo, insiste em levantar-se. Para me abraçar, para agradecer a visita. O seu olhar perde-se naquela sala tão cheia de recordações, de histórias, de História. As palavras saem-lhe com alguma dificuldade, quase automáticas, sempre amáveis. Suscita os temas que o mobilizam, as emoções e as certezas últimas que lhe dão alento à vida, mas também as tristezas que o abatem. Escolho as palavras, mas não sei se são as certas. Relembro tempos comuns, mas não tenho a certeza de me estar a seguir. Procuro assuntos que o façam reagir, agarra alguns, deixa passar outros em silêncio. Os nomes fogem-lhe, vive já com essa realidade, organiza o discurso em torno desses espaços vazios. Pergunta-me pela vida, mais para se orientar do que por real interesse. Dou-lhe novidades que, há pouco tempo, seriam para ele banalidades. Instalam-se entre nós as pausas, cada vez mais longas. Fico muito triste, sem saber o que dizer. Despeço-me com a quase certeza de ser aquele o nosso adeus. 

domingo, agosto 02, 2015

Pérolas de Belém

Américo de Deus Rodrigues Tomaz foi "eleito", em 1958, Presidente da República, cargo em que permaneceu até ao dia 25 de abril.
Ao longo dos seus mandatos, algumas frases dos seus improvisos tornaram-se um "must" do anedotário nacional e chegaram a ser objeto de cortes dos serviços de censura. Vejamos algumas dessas pérolas (hoje recordadas por um excelente blogue, mas que não admite partilha):
  • Comemora-se em todo o país uma promulgação do despacho número Cem da Marinha Mercante Portuguesa, a que foi dado esse número não por acaso mas porque ele vem na sequência de outros noventa e nove anteriores promulgados..."
  • “A minha boa vontade não tem felizmente limites. Só uma coisa não poderei fazer: o impossível. E tenho verdadeiramente pena de ele não estar ao meu alcance.” 
  • “É uma terra [Manteigas] bem interessante, porque estando numa cova está a mais de 700 metros de altitude...”
  • "O Senhor Professor Oliveira Salazar, ao longo de mais de trinta anos, é uma vida inteiramente sacrificada em proveito do país, e desconhecendo completamente todos os prazeres da vida, é um homem excepcional que não aparece, infelizmente, ao menos, uma vez em cada século, mas aparece raramente ao longo de todos os séculos."
  • "Eu prolongo no tempo esse anseio de V.Ex.ª e permito-me dizer que o meu anseio é maior ainda. Ele consiste em que, mesmo para além da morte, nós possamos viver eternamente na terra portuguesa, porque se nós, para além da morte vivermos sempre sobre a terra portuguesa, isso significa que Portugal será eterno, como eterno é o sono da morte."
  • "Neste almoço ouvi vários discursos, que o Governador Civil intitulou de simples brindes. Peço desculpa, mas foram autênticos discursos."
  • "Pedi desculpa ao Senhor Engenheiro Machado Vaz por fazer essa rectificação. Mas não havia razão para o fazer porque, na realidade, o Senhor Engenheiro Machado Vaz referiu-se à altura do início do funcionamento dessa barragem e eu referi-me, afinal, à data da inauguração oficial. Ambas as datas estavam certas. E eu peço, agora, desculpa de ter pedido desculpa da outra vez ao Senhor Engenheiro Machado Vaz."
  • "É a primeira vez que cá estou depois da última vez que cá estive."
  • "Hoje visitei todos os pavilhões se não contar com os que não visitei".

Função pública

Em 1979, o governo chefiado por Maria de Lourdes Pintasilgo publicou uma legislação, idêntica à que era já aplicada por muitos outros países, que permitia que os funcionários públicos que fossem cônjuges de pessoal português destacado para missões oficiais internacionais pudessem acompanhá-los, mantendo o vínculo profissional, continuando a descontar para a Caixa Geral de Aposentações, tendo como valor de referência o último salário auferido. Assim se evitava terem de optar por uma simples licença sem vencimento, para poderem acompanhar o marido ou a mulher. Não obstante suspender qualquer progressão na carreira, com perda de promoções e cargos de chefia, o que tinha natural impacto no montante da pensão no momento da aposentação, o mecanismo legal permitia manter o vínculo básico, não prejudicando nem onerando minimamente a globalidade do sistema. Quando o destacamento era suspenso ou terminava, o cônjuge funcionário regressava ao seu serviço de origem ou, de acordo com o interesse do Estado, era reafetado a outras funções.

O dispositivo funcionou sem problemas por mais de 35 anos. Evitou a separação de casais, facilitou a educação dos filhos num ambiente normal, contribuiu para a estabilidade e harmonia familiar. Foi aplicado a centenas de pessoas, não só aos diplomatas como a muitas outras profissões. Não prejudicava ninguém, não concedia nenhum privilégio indevido, garantia um mínimo de direitos.

Dizem-me agora que, há dias, os funcionários no ativo que estão nesta situação foram informados que, por uma subreptícia mudança na legislação introduzida em 2014, o decreto-lei de 1979 fora revogado. Muitos haviam entretanto descontado debalde durante cerca de um ano. No caso do Ministério dos Negócios Estrangeiros, está por conhecer-se o que eventualmente terá feito para tentar evitar este arbítrio ou estará a fazer para o remediar.

A garagem da Varina


Cada vez mais, a facilidade de estacionamento é um fator de valorização de um restaurante, quando pensamos em escolher um local para comer. A densificação do tráfego tornou algumas zonas de Lisboa locais "iníveis", isto é, onde verdadeiramente se não pode ir de carro.

(Já estou a ver os críticos: "Este tipo é um burguês, quer parar o carro à porta dos restaurantes!" Ao que respondo: "Claro que quero! Se puder!". Faço parte de quantos, com todo o orgulho, cuidam em preservar, com todo o gosto, a sua "zona de conforto").

Os parques e o estacionamento de rua estão caríssimos e já tenho visto a "fatura" do parqueamento corresponder a bem mais de 10% do custo de uma refeição. Essa é uma das razões (a outra é o desagradável mas indispensável controlo etílico) pelas quais muita gente usa hoje taxi (ou Uber, que é bem mais agradável) para ir comer fora. Esse é também o preço do comodismo.

Os bairros históricos são, neste particular, um bom exemplo do que afirmo. Recordo-me dos tempos em que se conseguia um lugar para estacionar no Bairro Alto, ou até em Alfama ou no Castelo.

A historieta que passo a contar tem a ver com a Madragoa, um bairro onde hoje também é muito difícil estacionar. Por anos, ali pelo Quelhas ou pela velha Emissora, em baixo na Esperança ou pelas Trinas, conseguia-se sempre um lugar. Hoje, nem o meu Smart tem sorte!

Por ali fica um dos meus restaurantes de culto, a "Varina da Madragoa". Criado após o regresso de África do celebrado Francisco Queirós, figura inesquecível que viria a marcar uma época de Lisboa com o seu "Sua Excelência", a "Varina" passou depois, durante muitos anos, para as mãos do meu amigo António Oliveira.

As décadas de 70 e 80 foram o período dourado do restaurante. Meia Lisboa parava então por ali. Dada a proximidade do parlamento, os políticos eram imensos aos almoços. (A saudável concorrência era a antiga "Travessa", chamada "as belgas" pelos "habitués", o que tinha a ver com a nacionalidade da Vivianne, mas nada com a da Sofia). José Saramago e Isabel da Nóbrega eram clientes fiéis aos almoços de domingo (a "Varina" ainda hoje tem a inestimável qualidade de abrir todo o domingo). Até Cavaco por lá passou, levado por Eurico de Melo, como as paredes atestam. O êxito levou então o Oliveira - que hoje vive placidamente a sua reforma num simpático lugar da "outra banda" - a abrir, quase ao lado, a "Mercearia" e, mais tarde, a "Carvoaria". Na "Varina" me despedi dos amigos quando fui para Oslo, em 1979, e para Nova Iorque, em 2001. Aí comemorei o meu meio século e fiz muitas jantaradas de amigos e família, às vezes "fechando" mesmo a casa. Na vizinha "Mercearia" disse adeus aos próximos antes de partir para Londres, em 1990.

A "Carvoaria" desapareceu cedo. A "Mercearia" durou mais. Mudou entretanto de dono e de nome, chama-se hoje "Osteria", é um "conceito" (esta moda terminológica diverte-me) diferente, com uns petiscos italianos bem simpáticos e basta gente nova a dar alegria ao espaço e ao bairro.

A "Varina" lá continua, com a eterna simpatia do meu amigo Veiga no serviço às mesas, às vezes com clara dificuldade para, sozinho, aguentar as salas, noutras (vou ser sincero) para justificar algum evidente declínio de uma cozinha que, sem nunca ter sido soberba, chegou a ser bastante recomendável e agora, com frequência, tem falhas. A relação qualidade/preço continua, no entanto, aceitável.

Uma noite, já há muitos anos, andei bastante tempo até conseguir um local para estacionar perto da "Varina". Abri o guarda-vento do restaurante, que estava praticamente cheio. O Oliveira recebeu-me com um sorriso, lá do fundo. Fui avançando por entre as mesas e, à distância, lancei-lhe: "Foi um inferno para conseguir estacionar! Tem de pedir aos seus clientes para apertarem melhor os carros na vossa garagem". E, discretamente, pisquei-lhe o olho! O Oliveira não se "descoseu". E respondeu: "Aquilo é sempre difícil. Também são só oito lugares..." Recordo os olhares surpreendidos de vários dos presentes, entre os quais o meu saudoso amigo Eduardo Azevedo Soares. Afinal, a "Varina" tinha garagem e eles não sabiam! Prolongámos a graça por uns minutos mais, até tudo se desfazer em risos.

Até hoje, ainda tenho "saudades" da garagem da "Varina"! 

sábado, agosto 01, 2015

Propaganda


Edson Athayde, na senda de um grupo de brasileiros que fizeram muito bem ao mercado publicitário português nos anos 90, desenhou, com grande êxito, a campanha do PS de Guterres para as eleições legislativas. Mas isso foi há 20 anos.

Athayde é um criativo inteligente (deduzo eu, que nunca falei com ele) e culto. O seu livro "A publicidade segundo o meu tio Olavo" é muito divertido pelo que trouxe para férias (como faz parte de algumas dezenas de volumes, não sei se o chegarei a reler). 

O DN relata hoje que, para os lados do Rato, andam em polvorosa com a ineficácia da campanha de "outdoors" inventada por Athayde. Já tinha notado a mediocridade desses cartazes. Há um, em que uma jovem surge a tirar a cortina a um horizonte onde desponta um sol, que parece copiado do céu dos livros de Religião & Moral do meu tempo de liceu. Como mensagem, é mais que pífio.

Mas posso imaginar que a campanha de Athayde se confronte também com um problema doutrinário. Que mensagem quer o PS fazer passar? Conclamar a ira das "massas" contra as safadezas do governo, passando a ideia de que, chegado a S. Bento, "vai tudo raso"? Ou transmitir uma mensagem de alternativa tranquila, a qual, por seu turno, pode "ajudar à festa" de esquecimento das patifarias cometidas nos últimos quatro anos?

Não está fácil a vida para António Costa. Mas Athayde não está a ajudar.

sexta-feira, julho 31, 2015

Conversas no Pereira (1)

- Bons olhos te vejam! Então já vieste?

- Não, pá! Só venho amanhã...

Sampaio



Em tempo de democracia, a presença portuguesa nas instituções internacionais deve muito aos socialistas. Mário Soares foi, e ainda é, a cara respeitada do Portugal democrático. António Guterres deixou uma marca impressiva na Europa, seguida de uma prestação excecional como Alto Comissário para os Refugiados. António Vitorino permanece a memória da excelência portuguesa na Comissão Europeia. Vitor Constâncio assume-se como um prestigiado vice-presidente do BCE.

Jorge Sampaio recebeu, há dias, o prémio Nelson Mandela, destinado a galardoar, de cinco em cinco anos, figuras que se destacam na promoção dos valores da paz e da solidariedade à escala global.

Desde que deixou a presidência da República, em 2006, cargo que exerceu com uma elevação e uma dignidade excecionais, o antigo secretário-geral do PS foi chamado a importantes responsabilidades no quadro das Nações Unidas, inicialmente como representante do secretário-geral da ONU na luta contra a Tuberculose, mais tarde como Alto Representante para Diálogo das Civilizações. Ainda mais recentemente, Sampaio tem-se mobilizado em favor dos estudantes sírios, afetados pela tragédia que atravessa o seu país.

Pertenço a uma geração que se habituou a ter Jorge Sampaio como referente ético na ação cívica, muito para além da conflitualidade que a espuma dos dias introduz na política doméstica. Da luta académica à defesa dos presos políticos, da mobilização democrática durante a ditadura ao empenhamento institucional em democracia, passando pela experiência governativa e autárquica, em tudo Jorge Sampaio deixou sempre uma marca indelével. Nele me habituei a admirar a capacidade de diálogo e de compromisso, o sentido de equilíbrio, a palavra culta e informada, o respeito absoluto pelos outros, a permanente intransigência perante a mesquinhez e a intriga, uma seriedade à prova de bala - sinais que fazem hoje parte da imagem de marca deste grande homem e português de bem.

Há dias, olhando os presentes na sessão de homenagem que a Fundação Calouste Gulbenkian lhe dedicou, ficou muito clara a transversalidade da admiração e respeito que suscita no país.

É muito bom, para Portugal, poder contar com figuras da estatura de Jorge Sampaio, que honram a imagem do país à escala internacional. E não se estranhará que os socialistas tenham um especial orgulho de poder contar com ele entre os melhores da sua família política.

(Artigo que hoje publico no "Acção Socialista Digital")

Inês Rosa

Em circunstâncias trágicas, desapareceu agora a Inês Rosa. Conhecemo-nos em janeiro de 1986, na então Direção-Geral das Comunidades Europeias, nesse início da aventura europeia. Voltaríamos a trabalhar juntos uma década mais tarde. A sua vida profissional passou depois por diferentes desafios, onde a sua imagem se firmou e prestigiou. Era muito competente, e recordo que pensava bem a Europa e os nossos interesses dentro dela.

A Inês era uma mulher suave, elegante, com um andar inconfundível, uma voz doce. Vimo-nos a última vez em Paris, há mais de cinco anos.

Para a família da Inês, em especial para o seu irmão José, deixo um abraço sentido.

A Volta

 
Esperávamos, ansiosos, a chegada dos ciclistas, lá por Vila Real. Um pouco antes, nessa charneira dos anos 50 e 60, em que quase não havia transístores, alguém teria espalhado: "Já passaram no Alto de Espinho!". Esse era o separador mágico dos que estavam "p"ra cá do Marão", bem no topo das dezenas de curvas que começavam a nascer lá de baixo, em Amarante, contadas a partir do Largo do Arquinho. Imaginávamos então a descida infrene pela Boavista, Campeã e Arrabães, a derradeira subida desde a Ponte do Cabril, sob aquele calor transmontano dos "três meses de inferno".
 
Foi um tempo em que o ciclismo "eram" os clubes de futebol. Fora destes, havia, claro, outras vedetas, de Alves Barbosa a Ribeiro da Silva. Contudo, a nossa clubite congénita prevalecia sobre essas figuras, pelo que as camisolas de cor verde, encarnada (não se dizia vermelho, porque a censura cortava) ou azul eram por nós saudadas, à chegada, com um fervor que nos ligava diretamente a Alvalade, à Luz ou às Antas.
 
Nessa cidade que aqui recordo, onde nada ou quase nada se passava, a Volta era um acontecimento. As equipas distribuíam-se pelas pensões locais, as mais ricas iam para o Hotel Tocaio.
 
Desmontada a meta onde, horas antes, nos apinháramos para ver a chegada da caravana suada, o espetáculo passava então para a Avenida Carvalho Araújo, convertida num parque caótico de "carros de apoio", cheios de rodas com um reluzir metálico, de veículos da organização com papelada colada, os passeios subvertidos por hordas de estranhos, de identificação pendurada ao peito, o que lhes conferia uma dignidade mítica.
 
De chanatos arejados, numa mais do que duvidosa elegância, cheirando aos óleos da massagem pós-competição, os nossos "heróis" passeavam-se, impantes, ou jaziam refastelados em cadeiras de esplanadas, da Gomes ao Camposana, passando pela Brasileira.
 
Às vezes, viamo-los confraternizar com os jornalistas "da Volta". É que ali estavam, à nossa vista, o Aurélio Márcio, o Carlos Miranda, o Artur Agostinho, o Amadeu José de Freitas, o Manuel Dias, o Nuno Braz - nossos "íntimos" de "A Bola", do "Record", de "O Mundo Desportivo", do "Norte Desportivo" ou da "Emissora".
 
Ah! A cidade tinha um ciclista! Chamava-se Firmino Claudino. Emérito bilharista no "Excelsior", durante o ano arranjava e alugava bicicletas junto à estação. O Firmino às vezes corria a Volta, outras vezes não. Raramente chegava ao fim. Em qualquer caso, as etapas em Vila Real eram para ele momentos de glória, ao ser visto de braço dado com os companheiros famosos, como que a mostrar à terra: "Veem? Eu sou um deles!". Nesse dia, era.
 
(Artigo que hoje publico no JN)

quinta-feira, julho 30, 2015

Apanhado!

Recebi há minutos um mail: "Apanhei-te! Hoje, pela primeira vez, em seis anos e tal, não publicaste nenhum post".
 
Imagino o gozo desse meu amigo, um exegeta deste blogue, quase desde a sua fundação, a "apanhar-me" nesta gravíssima falta.
 
Pois ele está enganado. Saiu um post na quinta-feira! Já o estou a imaginar, roído de certeza, a espiolhar o blogue. Vai encontrar um post na quinta-feira. Qual? Este... Quando é que foi publicado? Sei lá!

quarta-feira, julho 29, 2015

Varoufakis


Depois da sua saída de ministro das Finanças da Grécia, Varoufakis tem estado muito ativo no seu blogue, como se pode ver aqui.
 
Aí defende a sua ação e insere interessantes textos, dos quais é legítimo inferir a diversidade de opiniões que hoje atravessa o Syriza - o que também não é indiferente para a negociação com as entidades europeias e para o próprio curso político interno na Grécia.
 
Varoufakis permanece assim como uma figura curiosa no cenário político grego, muito para além da proeminência institucional que, nos últimos meses, acabou por ter.
 
Há dias, numa conversa na Gulbenkian, quando alguém falava dos públicos que assistiam regularmente às iniciativas culturais da Fundação, Eduardo Lourenço saiu-se com esta:
 
- Querem encher o grande auditório? Tragam o Varoufakis! A sala fica logo a transbordar de mulheres...

terça-feira, julho 28, 2015

O retrato de Cavaco

 
A questão surgiu, há dias, num ambiente onde pontuavam algumas figuras das artes: quem será o eleito para pintar o retrato de Cavaco Silva, que integrará a galeria onde, em Belém, se acolhem os óleos que consagram a imagem dos antigos presidente?

Não podendo dizer-se que os presidentes se medem pelos retratos, a escolha do pintor tem frequentemente algum significado. Por isso, a pergunta, no tocante a Cavaco Silva, é pertinente: que artista emprestará o seu pincel à figura do ocupante que sairá de Belém em 2016?

Columbano Bordalo Pinheiro imortalizou Manuel de Arriaga, Teófilo Braga e Manuel Teixeira Gomes, figuras da cultura de quem era amigo. O retratismo da ditadura deu tempo a que Henrique Medina pintasse Carmona e Américo Tomaz, mas também que regredisse até à Primeira República e fizesse o retrato de Canto e Castro e Sidónio Pais - curiosamente, um chefe de Estado com tendências autoritárias e um presidente da República... monárquico. Mas também pintou António José de Almeida. Ainda na mesma escola, Malta foi responsável por Craveiro Lopes. Um nome menos sonante pintou Bernardino Machado (Martinho da Fonseca).

Com a Revolução de abril, Spínola escolheu Jacinto Luis, um amigo da casa. Costa Gomes escolheu Joaquim Rebocho e não foi feliz. Eanes optou por Luís Pinto Coelho, num estilo artístico social abastado, que ia bem com o ar do tempo e angulou ainda mais a rigidez do general. Soares rompeu o rigor figurativo e escolheu a heterodoxia alegre de Pomar. Sampaio colocou-se nas mãos prestigiadas e imaginativas de Paula Rego e deu no que deu.

E Cavaco? Quem o imortalizará?

ps - a obra que ilustra este texto é de Magaly Gouveia. Não é a pintura oficial.

segunda-feira, julho 27, 2015

Errata

Há semanas, escrevi por aqui um post intitulado "Notas para dois amigos". Nele comentava a saída de Augusto Santos Silva da TVI, numa decisão que me parecia ser da responsabilidade de Sérgio Figueiredo, que tem a seu cargo a informação daquela estação televisiva. Na "nota" que endereçava ao Sérgio eu adiantava: "Sei que as coisas às vezes são mais complexas do que parecem. Por isso, por não conhecer os detalhes da decisão, imagino que eles possam eventualmente ser mais esclarecedores do que aquilo que já veio a público. Mas, para já, e antes que esses possíveis factos sejam conhecidos, apenas me posso pronunciar sobre os resultados." E concluía que esses resultados afetavam o pluralismo da comunicação social televisiva. Não o dizia, mas queria com isso significar que a saída de Santos Silva do seu comentário da TVI vinha agravar o flagrante desequilíbrio do panorama do comentário político "residente" nas televisões portuguesas, o qual, no caso dos canais de sinal aberto, não é sequer desequilíbrio, é o total predomínio de uma só linha partidária - a que está no poder.

Sérgio Figueiredo veio hoje a terreiro - e só posso lamentar que o não tenha feito mais cedo - esclarecer, num longo mas elucidativo artigo publicado no "Diário de Notícias", não ter havido qualquer discriminação política na decisão. O que escreve no artigo convence-me, pelo que o assunto fica para mim muito claro: Sérgio Figueiredo não foi responsável por qualquer "saneamento" de Santos Silva e este terá feito uma leitura dos factos que não colam com a realidade objetiva dos mesmos. Muito embora eu tivesse feito o "disclaimer" que acima deixei reproduzido, acho que devo um pedido de desculpas ao Sérgio pela precipitação da minha conclusão sobre o assunto.

Regras

Num artigo que o "Diário de Notícias" hoje publica", o editor do "Financial Times", Wolfgang Münchau, explica, com uma simplicidade que só está ao alcance de quem pensa muito bem, a incongruência de algumas regras europeias. Neste caso, o articulista dedica-se à questão das contradições entre jurisprudências, muito em especial à utilização que delas é feita pelos mais poderosos atores do teatro comunitário. Sem utilizar a expressão, Münchau - uma figura que esteve Portugal em 2013, a convite da Fundação Francisco Manuel dos Santos - acaba por concluir que as regras europeias, no seu aparente rigor, podem ser, em alguns casos, "à vontade do freguês".

O normativo comunitário existe para dar segurança jurídica à complexa máquina da União, para garantir que há um referencial de regras a respeitar. Mas todos nos demos conta de que essas regras existem para servir uma realidade, no quadro da qual foram estabelecidas. E que a realidade pode mudae. Não são "direito natural", são acordos, contratos, entendimentos entre vários países para, à luz das circunstâncias existentes, otimizar o funcionamento da máquina. Por exemplo, se as regras do euro fossem assim tão "automáticas" que sentido tinha o senhor Draghi poder dizer, com o efeito de "bomba atómica" que teve, a frase de que faria "whatever it takes" para salvar a moeda única? E não ficámos nós, por toda esta Europa germanizada na moeda, a aguardar com ansiedade da decisão do tribunal de Karlsruhe, a corte constitucional alemã, sobre algumas medidas do BCE?

Se deduziram que este post é sobre o Tratado Orçamental, acertaram.

domingo, julho 26, 2015

E então, o Chico Cereja...


Nos últimos fins de semana, vilarrealizei os meus dias. 

No primeiro, em Vila Real propriamente dita, numa imersão nas corridas, com o cheiro a gasolina e a pneus que faz a alegria regular dos "garotos da Bila", pontuada por covilhetes e cristas-de-galo. 

Nos dois fins de semana seguintes, já pelo Sul, o cenário foram fartas comidas e longas e divertidas conversas, com grupos diferentes de amigos, que têm em comum saberem de cor o trajeto entre a Albenina e o Cabo da Bila, terem conhecido o Bertelo e o Pincha, o Digníssimo e a Bichoqueira, e saberem de cor a sequência das casas da rua Direita, da Capela Nova ao Óscar.

A Vila Real de hoje está magnífica, diferente, para melhor. Lembrar o passado sem nostalgias é a melhor forma de celebrá-la.

sábado, julho 25, 2015

Mesa Dois

 
Elegia para a Mesa Dois do Procópio*

"Não mais, amigos, já não existe
À roda da Dois a alegre companhia..."
Assim clamava, emocionado, o ancião.
Era quarta à noite. Do velho triste
Uma lágrima a alva barba humedecia,
Fazia tremer-lhe a voz a emoção.
 
"Lá nasceram poemas e amores,
Se reformou a Pátria, surgiram filosofias;
Esgrimiram-se epigramas, brilharam teses,
E litros de whiskey, de gin e de licores
Fluíam entre névoas de fumo. Alegrias
Quase sempre; tristeza às vezes, 
 
Mas sempre o cintilar da amizade."
Calou-se melancólico e um suspiro
Agitou-lhe o peito venerando. Amargurado,
O senhor Luís rasgou, com gravidade,
O velho letreiro, qual histórico papiro,
Onde se lia a palavra "Reservado".
 
Ao balcão, a Alice esconde a comoção.
É a crise, claro, o euro, o mercado
Tem muita força o que tem que ser.
Um bando adolescente e trapalhão 
Já desgasta o veludo avermelhado.
A mesa Dois acaba de se render.
 
Jamais o Procópio escapará à dor,
Terá a sua natureza amputada.
Mas é assim: o tempo tudo arrasa.
Afasta-se, solene, o provecto orador.
O cajado nodoso ajuda-o na jornada
Em direcção ao Restelo, onde é a sua casa.

23/Julho/2015
 
* Texto da autoria de António Dias, reagindo a uma "circular" do autor deste blogue, há dias enviada aos utentes da "Mesa Dois" do Bar Procópio, apelando ao reforço da sua presença mais regular no "escritório".

sexta-feira, julho 24, 2015

"Governo de Portugal"


A legislatura que agora termina foi dominada por uma coligação pouco comum: entre uma maioria escolhida por um país em estado de necessidade e um grupo de instituições internacionais mandatadas pelos respetivos credores para impor um imperativo "take it or leave it". A maioria colocou com visível gosto a sua assinatura no programa de ajustamento, determinado a um Governo que negociara em situação de fragilidade extrema, um pacote drástico de medidas em que declarou que se revia e que, não raramente, considerou mesmo recuado face àquilo que eram ao seus reais propósitos. Em algumas áreas, o zelo da nova governação, exercido perante um país aturdido, atingiu proporções que chegou a surpreender os delegados dos credores, como está hoje documentado.
 
Para essa troika, deve ter sido um cenário de sonho vir a encontrar por cá, recém-eleito com confortável margem, um Governo que só por facilidade logística se sentava no outro lado da mesa. Ela que vinha de uma experiência com uma Irlanda que lhe havia batido com sucesso o pé em questões como a baixa do IRC, ou de uma Grécia que, não obstante ter conseguido obter cada vez melhores condições, dizia num dia uma coisa e fazia outra depois. Que sossego não terá sido, para os "homens de cinzento" aportar a um país tutelado por um Executivo complacente, "mais papista do que o papa"!
 
Não é comum, na história dos povos, assistir-se à ascensão, à tutela de um Estado, de um Governo que, movido por uma agenda ideológica contra esse mesmo Estado, cuida criteriosamente em desarticulá-lo, para melhor poder demonstrar a ineficiência do que pretende enfraquecer. Já menos incomum é a aplicação num país de receitas desenhadas no exterior, executadas por atores internos colaborantes; em algum passado, casos houve que ficaram marcados por algum desapreço na memória coletiva do Mundo.
 
O Governo desta atípica coligação chega agora ao fim. Os resultados são o que são: na dívida que aumentou, no desemprego que provocou, nas falências que originou, na emigração que promoveu, nas clivagens internas que potenciou - público versus privado, ativos versus reformados, novos contra velhos. O Governo vive sob a glória dos juros conjunturais de S. Draghi, o país permanece classificado de "lixo" pelas agências de notação, mas ostenta um sincrónico défice virtuoso, construído por vagas de impostos e pela degradação acentuada dos serviços públicos. Um coisa é indiscutível: cumpriu, com lealdade, as funções que lhe foram confiadas. Na lapela, mantiveram o pin do seu "Governo de Portugal". Não fosse dar-se o caso de se terem esquecido.
 
(Artigo que hoje publico no "Jornal de Notícias")

quarta-feira, julho 22, 2015

O núcleo

Há na Europa um erro muito comum de leitura: pensar que o projeto comunitário tem uma determinada matriz e que a sua evolução mais não é do que uma simples derivada no tempo dessa estrutura original. Quem assim perspetiva a Europa não entende que todos os alargamentos mudaram qualitativa e diferenciadamente a União, que o fim dos desafios da Guerra Fria alterou os termos de referência do projeto, que a própria densidade progressiva das políticas comunitárias introduziu uma dinâmica que hoje só recorre ao Tratado de Roma por mera afetividade histórica.
 
Não é a primeira vez, nem será a última, que surge no seio da União um tropismo nostálgico de regresso aos “fundadores”. Recordo dessa “ameaça” ter sido colocada nos anos 90, no auge de negociações institucionais. É uma confissão de desespero perante o curso de um projeto que escapa ao controlo de quem se habituou a não ver contestado o seu poder, de quem vive convencido de que a legitimidade do nome “Europa” pertence a uns predestinados da História, que benevolamente se dispuseram a abrir o seu modelo a outros, numa generosidade a que todos devemos estar gratos.
 
O “núcleo duro” da Europa, por muito que alguns não gostem, pertence hoje a todos quantos, com voluntarismo e sacrifício, jogaram o seu destino e vontade no projeto comum. Não devemos rigorosamente a ninguém a nossa posição europeia, “pagamos” os fundos comunitários com a abertura económica das nossas fronteiras e com a presença de empresas de outros Estados que deles livremente beneficiam e os repatriam, com a estabilidade política e social que induzimos no continente e que ajudamos a projetar num mundo que conhecemos como outros não conhecem, contribuimos hoje com a mão-de-obra qualificada que “cedemos” à Europa desenvolvida, sem que ela tivesse de custear a sua formação.
 
Estamos hoje na União Europeia e no euro por mérito próprio e importa recordar que nunca estivemos, nem estamos, sós no incumprimento dos objetivos macroeconómicos dos tratados que assinamos, mesmo antes da crise. A autoridade dos “fundadores” seria mais evidente se todos eles cumprissem rigorosamente esses mesmos tratados – e nenhum o faz, sabiam? As verdadeiras lideranças afirmam-se pelo exemplo, pela prática da solidariedade, pela generosidade perante as grandes dificuldades, não pela arrogância e jactância de deslocados discursos de “grandeur”.

(Texto que hoje publiquei a convite da Acção Socialista on-line)

Albino dos Reis


Há dias, Jaime Gama, numa das suas charlas na net com Jaime Nogueira Pinto, disse que está a ser preparada uma edição das cartas de Albino dos Reis a Salazar. É uma excelente notícia! Há muitos anos, o José Stichini Vilela havia-me falado dessas cartas e do interesse da família em as editar. Perguntou-me mesmo se eu seria "candidato" à tarefa. Disse-lhe logo que não, porque tenho por muito claro o meu "princípio de Peter" em matéria histórica. Agora, as cartas parecem estar em muito boas mãos, como confirmou Gama.

Como já tenho escrito por aqui, entendo da maior importância a recolha de tudo quanto possa clarificar as redes pessoais durante o Estado Novo, para se entenderem melhor as motivações de certas decisões e o ambiente que marcou determinados períodos. Nas democracias, a abertura dos agentes políticos  e o acompanhamento mediático que a liberdade permite tornam o escrutínio mais fácil e objetivo. Já nas ditaduras, o hermetismo do processo político e a construção propagandística e artificial da mensagem publicitada levam, com grande frequência, a que se cristalizem visões distorcidas. Por essa razão, nesse contexto, as memórias e a epistolografia são um auxiliar precioso para romper com a opacidade do processo histórico.

Albino dos Reis foi uma figura curiosa na constelação de personalidades do Estado Novo. Líder local durante a Primeira República, onde foi deputado em setores conservadores ligados a Cunha Leal, foi Bissaya Barrteto quem o aproximou de Salazar. Este passou a tê-lo como um confidente que era ouvido sobre o pessoal político a escolher, numa linha de utilidade comparável a Supico Pinto, Mário de Figueiredo ou Soares da Fonseca. Integrava assim um núcleo de personalidades de ambição limitada e fidelidade ilimitada, categoria política muito do agrado do ditador.

A lista nacional de deputados posta a votos após a promulgação da Constituição de 1933 tem Albino dos Reis à cabeça. Alguma aura liberal que sempre o acompanhou, a que se somava um forte rumor da ligação à Maçonaria, não o impediu de ser ministro do Interior num período de feroz repressão, precisamente por altura da criação da Polícia de Defesa Política e Social, antecessora de todas as polícias políticas repressivas que entre nós se sucederam. Desempenharia ainda o cargo de presidente do Supremo Tribunal Administrativo e, mais tarde, da Assembleia Nacional, sendo substituído em 1961 por Mário de Figueiredo, numa disputa que significou uma vitória da ala mais conservadora do regime.

Das figuras mais próximas de Salazar, Albino dos Reis é talvez aquela que fez uma transição mais suave para Marcelo Caetano. Caetano emerge como novo chefe do governo, designado pelo presidente da República, na sequência de um Conselho de Estado em que Albino dos Reis defendeu a substituição imediata do ditador doente, sendo conhecida a sua preferência pela solução adoptada. Segundo José Silva Pinto, num artigo que li algures, deve-se a Albino dos Reis a indicação de Melo e Castro para presidente da Comissão Política da União Nacional, gesto que não é de somenos, atento o "abanão" que esta figura provocou nas escolhas mais polémicas de Caetano, até ser afastado.

Conto agora uma pequena história pessoal. 

Numa tarde de 1970, na sala de estar do Hotel Suíço-Atlântico, junto ao Palácio Foz, fui levado por um tio, que era deputado da União Nacional (aliás, não havia deputados de outros "partidos"...) na recém-eleita primeira Assembleia Nacional da era Marcelo Caetano, para junto de um grupo de deputados, instalados naquele hotel. Entre todos preponderava, com evidência, Albino dos Reis, do alto dos seus então 82 anos. Recordo duas outras figuras no grupo: Camilo de Mendonça, um "marcelista" notório que havia sido o primeiro presidente da RTP, que me parecia apenas de visita ao hotel, e um loquaz deputado de Aveiro, Homem Ferreira, que me pareceu ser um discípulo de Albino dos Reis.

A minha cooptação pontual para a conversa (não me recordo de ter dito rigorosamente nada) era um tanto estranha. Eu tinha 22 anos e devia ter ido visitar o meu tio. No outono do ano anterior, havia colaborado ativa e publicamente na campanha da oposição democrática em Vila Real, onde o meu tio fora cabeça de lista da União Nacional (a Ação Nacional Popular só nasceria mais tarde). Por essa altura, fizera já parte de uma lista associativa universitária cuja "homologação" fora recusada pelo governo. Porém, esse meu familiar e grande amigo, embora opositor político, tinha a plena certeza de que podia confiar na minha discrição e, pelo que também vim a constatar, na minha (falta de) memória. É que se me recordo muito nitidamente que Albino dos Reis, durante aquela hora, contou algumas histórias passadas com Salazar, que mobilizaram a atenção de todos, a verdade é que não fixei um único desses episódios: ou porque fossem anódinos ou porque a minha curiosidade estava centrada mais na coreografia do momento do que no "script" da conversa.

Chamo finalmente a atenção para a foto que aqui deixo. Ela tem um pormenor interessante. Foi tirada em 3 de outubro de 1969, 23 dias antes das "eleições legislativas" para a Assembleia Nacional, num contexto que desconheço. À direita está Albino dos Reis e, ao seu lado, surge António Ferreira Gomes, o bispo do Porto a quem Salazar (que, à época, ainda estava vivo) proibira, a partir de 1958, a entrada no país e a quem Caetano autorizara o regresso em julho desse ano. Ambos brindam a alguma coisa. A que seria?

terça-feira, julho 21, 2015

Diplomacia ardente

O dia de ontem foi cheio de especulações sobre contactos de negócios luso-brasileiros, tendo o presidente Lula da Silva no centro da polémica. Como dizia, há pouco, na televisão, um colega e grande amigo, o embaixador brasileiro em Lisboa, Mário Vilalva, um destes dias vamos ter de nos entender, de uma vez por todas, sobre o que é tráfico de influências e sobre o que é diplomacia económica. É que a confusão está um pouco instalada e já me interrogo sobre se diligências que, ao longo de décadas, fiz - e sugeri a políticos, de todas as cores, que fizessem, em nome do país - em favor de dezenas de empresas portuguesas, podem agora vir a ser tipificadas negativamente. Tratou-se de apresentar empresários, de relevar a qualidade do trabalho das nossas empresas, que queriam exportar ou concorriam a concursos. Não há diplomata que o não tenha feito, por iniciativa própria ou obedecendo a instruções. E, que eu saiba, nunca nenhum de nós recebeu um tostão por isso. Nem tinha de o receber, porque essa era (e é) a nossa função.

A propósito de Lula e das suas relações com José Sócrates, recordei-me de uma historieta num dia de 2006, em que convidei o presidente brasileiro, com vários ministros, para jantar na embaixada portuguesa em Brasília, com o primeiro-ministro José Sócrates e alguns membros do governo português que o acompanhavam na sua primeira deslocação oficial ao Brasil.
 
Lula da Silva chegou um pouco tenso o jantar. Por esses dias, as relações entre o Brasil e a Bolívia estavam a atravessar um mau momento e o Itamaraty fazia os possíveis e os impossíveis para acalmar as iras públicas do presidente Evo Morales. Pelos curtos comentários que me fez sobre as relações com La Paz, enquanto nos encaminhávamos ao encontro de Sócrates, as coisas estavam ainda muito complicadas.

O jantar, contudo, correu muito bem, com excelente ambiente. Lula quase parecia ter esquecido o dia complicado que tivera. A deslocação de José Sócrates ao Brasil tinha permitido resolver vários dossiês no âmbito bilateral, em especial na área do comércio. Muitas vezes, a simples realização de uma visita oficial, para além do cerimonial dos acordos, cria um "momentum" em que coisas que se arrastavam por meses ou anos acabam por se decidir em poucas horas. Resolvi desta forma, ao longo da minha vida profissional, grandes e pequenos berbicachos.

Lula estava muito bem disposto, no final da refeição. Contrariamente à caricatura que dele se faz, nessa noite bebeu muito pouco, embora se tivesse pronunciado de forma elogiosa sobre os vinhos branco e tinto, ambos do Douro, que lhe fiz servir. Quando chegou a altura dos brindes e lhe propus, como ao resto dos convidados, um cálice de Porto, olhou para a mulher, que estava do outro lado da mesa, entre o primeiro-ministro português e eu próprio, e inquiriu, em tom de graça:

- Dona Marisa autoriza que eu beba uma Adega Velha, da garrafeira aqui do nosso embaixador?

Ainda antes que a senhora anuísse, interroguei com os olhos um dos fantásticos empregados da embaixada que serviam à mesa. O Romário, um mineiro da Pedra Azul que conhecia a minha reserva de álcoois como ninguém, fez-me um sinal negativo com a cabeça. Foi nesse instante que vi desaparecer, quase em passo de corrida por uma das escadarias por onde se acede à sala de jantar, o outro empregado da residência, o José. Hesitei em dizer ao presidente que, tanto quanto me lembrava, não tinha Adega Velha, mas que me responsabilizava pela qualidade de uma outra aguardente de grande qualidade, creio que umas reservas da Ferreirinha e da CR&F, que guardava para os convidados especiais. (Depois de uma vida a "dar o fígado pela pátria", há muito que não ouso tocar nesse tipo de bebidas).

Fiz bem. Não passaram cinco minutos e vi o José descer, com um tabuleiro de prata, acompanhada de um cálice de cristal, a longilínea garrafa da Adega Velha. Afinal, existia! Lula serviu-se, fez algumas loas ao álcool e, pouco depois, o jantar terminou. 

Despedidos os convidados, instalado José Sócrates e comitiva no hotel, regressei à residência. Impecáveis nos seus casacos brancos com botões dourados com o escudo português, já perto da meia-noite, o José e o Romário aguardavam-me. Agradeci-lhes o magnífico trabalho e comentei com ambos:

- Então sempre havia Adega Velha! Não me lembrava de que tínhamos cá daquela aguardente. O Romário tinha-me feito sinal de que não havia.

No brilho jovial daquela cara boa de negro do Piauí, o branco dos dentes sorridentes do José rimava já com alguns cabelos brancos daquele que foi, ao longo de toda a minha carreira, o mais dedicado exemplo de servidor estrangeiro do Estado português que alguma vez encontrei. E ouvi-o dizer:

- Senhor embaixador. Na residência não havia, mas eu dei um pulo a minha casa e tinha ainda lá uma garrafa de Adega Velha que me tinha sido dada pelo embaixador António Franco.

A casa onde vivia o José era colada ao muro da nossa residência. Apercebendo-se do desejo do presidente e do meu problema, colocou à disposição uma garrafa da aguardente oferecida pelo meu antecessor.

Que saudades que eu tenho desse "dream team" de funcionários de que Portugal tinha o privilégio de dispor em Brasília!

O Portugal de Leste


Há dias, numa conversa com alguém com responsabilidades políticas, fui surpreendido pelo raciocínio de que "o interior é hoje um mito", de que "com as acessibilidades agora existentes, em menos de duas horas qualquer pessoa se desloca das zonas de fronteira até ao litoral e vice-versa", pelo que é "um imenso erro estar a despejar dinheiro em áreas onde ninguém quer viver".

A regionalização é um tema divisivo na sociedade portuguesa e eu próprio nunca me senti muito seguro sobre a bondade da criação de um modelo organizativo que implica novas e dispendiosas estruturas, cuja relação custo-eficácia está ainda por estabelecer. Mas tenho de reconhecer que o preço da "não regionalização"é hoje também muito elevado, no que isso significa em termos de expressão da vontade e interesses de certas regiões do país.

Foi A.H. de Oliveira Marques quem fez notar que, já desde antes da criação da nacionalidade, se estabeleceram no território do que é hoje Portugal redes viárias que vieram a favorecer a divisão vertical do país. Com os séculos, foi-se criando cada vez mais no país um "muro", em termos de desenvolvimento, que hoje separa o "Portugal de Leste" do litoral desenvolvido. Um tanto surpreendentemente, a democracia e a integração europeia não contribuíram para contrariar esta realidade, que também não foi alterada, como se esperava, pela cooperação transfronteiriça.

Quando passei pelo governo assisti, com algum espanto, à explanação de propostas estratégicas que tinham no seu centro modelos de desenvolvimento exclusivamente assentes no litoral, na criação de uma espécie de "metrópole" ao longo da costa, concentradora das atenções, dos recursos e, naturalmente, de pessoas. O interior, se não era "só paisagem", não ficava muito longe disso.

O modelo das Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional hoje existentes é uma aberração que favorece o prolongamento desta discriminação, que traz consequências trágicas em termos de ordenamento do território.

Que tem a zona industrial do Porto a ver com a desertificação do nordeste transmontano, qual é a similitude de abordagem das questões que afetam Aveiro e Coimbra com as zonas fronteiriças das Beiras? Não estará a região transmontana muito mais próxima, em matéria de interesses, da Beira interior (ou mesmo, no limite, do Alentejo oriental)? Precisamente porque hoje existe uma multiplicidade de evidentes interesses comuns, não seria de estabelecer uma Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Interior Norte e Centro, amputando para tal as duas CCDR dessas áreas?

Mais difícil do que lutar contra interesses instalados é combater mentalidades enquistadas em modelos mentais que alguns se obstinam em não abandonar. É preciso lutar para derrubar o “muro” que separa internamente o nosso território, é necessário lutar pelo "Portugal de Leste" e, de uma vez por todas, caminhar para a unificação do país.

(Artigo que hoje publico no "Diário Económico")

segunda-feira, julho 20, 2015

Os gostos da Sara


Sara Carbonero diz que gosta do Porto. Uhf! Ainda bem! Como espanhola, já troca o "vê" pelo "bê" desde nascença, o que é meio caminho andado. Ficamos agora à espera que anuncie a "O Jogo" que gosta de tripas. Esse será um teste importante. É que Pinto da Costa faz das tripas obrigação. Depois, com o tempo, talvez se vá cansando do "Pedro Lemos" e da "Casa de Chá" e, um dia, ouse um copo-de-três de verde tinto na "Adega do Olho" ou uma sandocha pingona de unto na "Badalhoca", lá para Ramalde. Restam as "francesinhas"! Aquelas bombas de colesterol, na "Cufra" ou no "Galiza", são o ponto de apuramento final para quem quer ser visto como "portista" de conta bancária. Ah! e o "carago", claro! Aí sim, estará "em casa" e já pode ir para o Porto Canal ou até para o Monte da Virgem, se não houver uma qualquer incompatibilidade à vista. E, então, até o Casillas poderá dar-se ao luxo de alguns dos seus conhecidos frangos, tal como o Baía andou anos a virá-los pelas Antas, até que o Felipão o mandou descansar para a Cantareira, onde o Chico Fininho também acabava os dias.

Pousada


Há uns meses, fui convidado por um amigo estrangeiro a jantar na sua casa na rua António Maria Cardoso, em Lisboa. Sabia que era um apartamento novo e, durante alguns dias, andei um pouco angustiado, não fosse dar-se o caso de ser no edifício onde estivera instalada a PIDE. Não era, era em frente.

Não faço parte dos muitos cidadãos que foram perseguidos pela polícia política da ditadura, pelo que a minha relação com aquele sinistro edifício é apenas emocional. Só por uma vez lá entrei, como já aqui contei. Nem por isso, porém, um jantar por ali deixaria de ser incómodo para mim.

Hoje, estive na nova Pousada que o grupo Pestana instalou no edifício que, até há anos, foi o Ministério da Administração Interna, na rua do Arsenal, esquina com a rua do Ouro. Mesmo em frente, em 1908, o rei dom Carlos e o príncipe Luís Filipe morreram sob as balas de Alfredo Costa e Manuel Buíça, que também dali saíriam cadáveres. 

O edifício, antes de ser do MAI, foi do Ministério do Interior da ditadura, por onde passou, durante décadas, a tutela da repressão e do arbítrio. Ao passear no seu interior, não tive a mesma sensação que as salas do que foi da PIDE me provocariam. Mas nem por isso deixei de pensar que por ali circularam, em busca de instruções para as suas patifarias, Silva Pais ou Barbieri Cardoso, recebidos por Santos Júnior ou Gonçalves Rapazote. 

Ter muita memória, o que é diferente de ter boa memória, não deixa de ser um peso.

Um bocadinho ao lado

Portugal ganhou ontem um campeonato qualquer de "futebol de praia". De há uns anos para cá, especializámo-nos em coisas "um bocadinho ao lado" daquilo que realmente importa. Somos um êxito em matéria de sucedâneos. Lembro-me que o país rejubilou, em tempos, com uma dupla, cujo nome esqueci, que ganhava numa coisa chamada "voleibol de praia". Até então, nunca ninguém tinha ouvido falar dessa modalidade arenosa, mas, com a ajuda da dupla, a pátria pareceu nunca se ter importado com outra coisa que não fosse o "voleibol de praia". Depois, num instante, a tal dupla desapareceu do mapa, e logo o voleibol de praia se esfumou no nevoeiro da nossa atualidade. Voltaram a ouvir falar do "voleibol de praia"? Há dois ou três anos, lembro-me de uns maganos quaisquer que andavam numa espécie de barco e ganharam umas medalhitas. O país embandeirou em arco, a gesta marítima do burgo parecia ter renascido. Depois, uma tarde, os dois rapazolas parece que se zangaram. Nunca mais se falou da modalidade, que naufragou em definitivo na nossa memória afetiva. Entretanto, surgiu o "futsal". No meu tempo, chamava-se "futebol de salão" (joguei nos "campeonatos corporativos", defendendo mediocremente as cores e a baliza da Caixa Geral de Depósitos). Distraí-me uns anitos e logo passei a ouvir falar do modernaço "futsal". E o "futsal", que quando era "futebol de salão" não interessava a uma mosca, passou então a desporto de primeira. Só me recordo que havia por lá um Madjer, que eu pensava ter sido uma reconversão, para versão de jogo de bolso, do argelino do calcanhar (que deu a taça Toyota ao Porto, que, a partir daí se acha campeão planetário), mas afinal não era o mesmo. Há semanas, numas imagens num pavilhão qualquer, vi um cavalheiro que dizem que é presidente do meu clube, protestar, com voz grossa, para ser levado a sério, contra uma arbitragem num jogo de "futsal", contra uma equipa de bairro ou de província - já me esqueci! Então agora perdemos tempo a lamentar ou a comemorar vitórias em "futsal"? Mas onde é que chegámos?! Um destes dias, estamos a mobilizar foguetes e matracas para um Sporting-Benfica em berlinde ou matraquilhos! 

Esta vitória em "futebol de praia" preocupa-me! Se a Merkel ouve dizer que ganhámos alguma coisa na praia, deve desconfiar que não fazemos outra coisa nas horas de trabalho senão trabalhar para o bronze (já que, para o ouro, a coisa fia mais fino). E daí, talvez não se preocupe muito: é que nos jogos a sério, no futebol que realmente importa, confirma-se a frase célebre de Gary Lineker, segundo a qual "o futebol são onze contra onze e, no final, ganha a Alemanha". E nós, na praia...

domingo, julho 19, 2015

Piresinos

Alguma Europa só agora acorda para as práticas xenófobas do governo húngaro, dirigido por Viktor Orban, que se somam a iniciativas legislativas que colocam em causa a separação de poderes no país e dão aso à perspetiva de eternização no poder do partido aí dominante. Orban está agora envolvido na polémica construção de um muro entre o seu país e a Sérvia, para travar os fluxos de imigrantes. A evolução da Hungria para uma espécie de "democratura", uma coisa a meio caminho entre a democracia e a ditadura - como hoje existe na Rússia e alguns temem que a Turquia se possa tornar -, é uma realidade muito evidente. A Europa, que tão zelosa se mostra a julgar a democraticidade do resto do mundo, no seu processo de relações externas, faria bem se olhasse com maior atenção para estas derivas que ocorrem no seu seio e cuidasse em lhes pôr cobro. Mas, neste caso, como no fechar de olhos às graves situações que envolvem as minorias russas nos países bálticos, Bruxelas prova que tem dois pesos e duas medidas e, em particular, um grande incómodo quando se trata de aferir se os seus Estados membros cumprem aquilo a que se comprometem pelos tratados.

Há uns tempos, numa sondagem feita na Hungria, país onde o populismo xenófobo está em crescendo, estimulado pelo próprio governo, foi colocada uma questão sobre o modo como os interrogados apreciavam a possibilidade de facilitar a imigração de pessoas vindas de Pirese. Dois terços dos inquiridos reconheceram os piresinos como uma etnia criadora de dificuldades e cuja imigração no país seria indesejável. O curioso é que "Pirese" foi um nome inventado e os "piresinos" não existem... Mas estes detalhes são irrelevantes para mentalidades já marcadas pela discriminação étnica.

sábado, julho 18, 2015

Fukuyama

Com grande segurança, o economista Francis Kukuyama defende hoje no "Expresso" que "a Europa consegue sobreviver a uma saída grega".

Fukuyama é conhecido pela célebre teoria do "fim da História" que, nos anos 90, prenunciava um mundo tendencialmente democrático e sem tensões extremas.

Eu também gostava de acreditar em gambozinos

... e logo se vai ver!

Ver aqui .