Não se sabe se Donald Trump vai ou não conseguir manter-se no poder, depois das eleições de novembro. Mas todos sabemos que, no caso de ele vir a abandonar a Casa Branca, isso se terá ficado a dever à gestão caótica que fez da pandemia, que é, visivelmente, a principal causa da forte erosão registada na sua popularidade. A não ter ocorrido esta crise, a probabilidade de Trump ser reeleito era muito elevada - hipótese que, aliás, não pode ainda ser descartada.
Todos também já perceberam, a começar pelos americanos, que, se Joe Biden vier a suceder-lhe, sê-lo-á menos por um entusiasmo popular ao seu projeto alternativo e, muito mais, pelos erros cometidos por alguém que, já é quase uma certeza, a História virá a consagrar como o pior presidente que a América alguma vez teve.
As hipóteses de sucesso de Biden, um político decente sem um brilho particular, assentam na continuidade do processo de desgaste político do seu adversário e na esperança de que, nos próximos meses, a imagem do candidato democrático não vir a degradar-se. Isso passa também por uma boa seleção da sua parceira (será uma mulher) no “ticket” presidencial, a qual também estará, até ao último momento, sob um forte escrutínio.
O lugar de presidente do EUA, como os anos de Trump mostraram à saciedade, é uma fonte extraordinária de poder. Pode dizer-se que, em regimes democráticos, em termos de personalização, o caso americano é quase único. A legitimidade oriunda das urnas (e é uma mera “technicality”, que não olha à singularidade do sistema federal, a questão de um presidente poder ser eleito sem ter sido o candidato mais votado) concede ao chefe do Estado americano uma discricionaridade dificilmente admissível noutros regimes. O modo como Trump tem vindo a exercer essa liberalidade dá ainda mais evidência ao facto. No passado, com presidentes “normais”, com os mecanismos equilibradores do Estado a funcionarem, podiam notar-se alguns exageros. Mas Trump levou tudo isso ao absurdo.
Um presidente americano, contudo, não é apenas presidente do seu país. A expressão global dos EUA converte qualquer gesto do líder americano, com implicações externas, num vetor de influência sobre toda a sociedade internacional. E se, em condições regulares, o mundo sabe que tem de contar com a atitude americana como um fator condicionante, e muitas vezes constrangente, Trump representa uma realidade verdadeiramente nova. Ao colocar em causa a ordem internacional que estava pactuada, Trump provocou uma subversão traumática nos instrumentos de regulação global, abalando equilíbrios que os próprios EUA tinham ajudado a dar por adquiridos.
O caráter “revisionista” (como a teoria política gosta de designar) de algumas das suas posturas abriu sérias feridas e trouxe ao mundo, pela primeira vez em mais de sete décadas, uma América imprevisível, egoísta, abertamente não solidária, que colocou em causa a sua autoridade moral, como maior potência ocidental. Ao rejeitar abertamente o diálogo e o compromisso, como fórmulas reguladoras da estabilidade do mundo internacional, substituindo esse entendimento por uma lógica de pura afirmação do seu poder nacional, esta nova América transmitiu um sinal negativo a outros Estados cujos regimes ansiavam há muito por uma libertação do espartilho multilateral. Nenhuma ordem internacional pode sobreviver se os seus principais atores se considerarem isentos dos mecanismos que a regulam. Esse terá sido um dos aspetos mais nefastos do período Trump.
E se Biden ganhar? Há uma perigosa ilusão de que, se Trump vier a ser derrotado, haverá como que um “reset”, uma espécie de idílico regresso à ordem do tempo de Obama.
Ora política não funciona assim. É claro que é expectável, nesse cenário, uma retoma da atenção face à Europa, uma atitude mais simpática face ao mundo multilateral. Mas não se espere um regresso à “square one”, no jogo internacional. Muitos dos interesses americanos, protegidos por Trump, procurarão acolhimento numa eventual administração Biden. E tê-lo-ão.