Num livro que escreveu sobre Natália Correia, que eu havia guardado para as férias e que ontem acabei de ler, Fernando Dacosta conta um episódio passado no bar do bairro da Graça que era propriedade da escritora, o conhecido “Botequim”.
Uma noite, alguém “leu” a mão de Natália, tendo depois confidenciado para algumas pessoas: “Esta mulher vai morrer em breve!”. E Natália Correia morreria, de facto, pouco tempo depois, em 1993.
A pessoa que fez a premonição chamava-se Carlos Eurico da Costa. Nos dias de hoje, não haverá muitos que, por estas redes sociais, saibam de quem se trata, pelo que vou apresentá-lo.
Carlos Eurico da Costa foi um jornalista e escritor, além de gestor de empresas. Iniciou a sua atividade no “Diário de Lisboa”, inicialmente como crítico de cinema e depois como jornalista, tendo, depois, feito parte da histórica equipa que criou o efémero “Diário Ilustrado”, de onde seria afastado num processo político que ficou célebre. Com Mário Cesariny, António Maria Lisboa e Cruzeiro Seixas, entre outros, foi membro do Grupo Surrealista de Lisboa, tendo diversa obra de ficção publicada, sendo também autor de “A Caça em Portugal”. Tem igualmente obra gráfica. Fez parte da interessante geração intelectual que se situou na charneira entre a atividade publicitária e a escrita, setor onde se ilustraram nomes importantes da literatura portuguesa. Foi ainda membro da direcção da Sociedade Portuguesa de Escritores e Secretário-Geral da Associação da Imprensa Diária.
Esteve preso por atividade anti-fascista durante o serviço militar e, politicamente, sempre se manteve próximo do PCP, partido de que nunca seria militante, mas onde tinha muitos amigos. Os seus relatos do treino noturno de pistola, com Zeca Afonso e José Borrego, na foz do Lizandro, “para o que desse e viesse, na Revolução que, mais cedo ou mais tarde, aí viria”, eram deliciosos. O Carlos era, aliás, um extraordinário contador de histórias, que adjetivava com grande criatividade.
Tendo vivido, numa fase da sua vida, com a professora e escritora brasileira Maria Lúcia Lepecki, a casa de ambos, na década de 70, constituiu-se um curioso lugar de encontro de uma certa intelectualidade de Lisboa: de Cardoso Pires a Orlando da Costa, de Maria Velho da Costa a Jacinto Baptista, de Alberto Ferreira a Luís Francisco Rebello, de Urbano Tavares Rodrigues a Jacinto do Prado Coelho, de Júlio Moreira a Alexandre Babo, entre muitos outros que por ali cruzei. Por aquela casa passariam, num dia de 1973, as provas de impressão do “Portugal e o Futuro”, de António de Spínola, trazidas (em segredo) pelo editor, Luis Arouca. Em 1975, com o comandante Costa Correia, recordo-me de por lá ter estado muito tempo a ouvir Carlos Paredes a apresentar as suas propostas para a música que acompanharia os spots televisivos sobre as primeiras eleições livres.
O Carlos, 20 anos mais velho do que eu, morreu em 1998, com 70 anos. Era meu primo direito, filho de um irmão do meu pai, jornalista e bancário em Viana do Castelo. Acolheu-me no seu círculo íntimo, como se eu fosse um seu irmão mais novo, quando, em 1968, fui viver para Lisboa. A seu convite, colaborei, por alguns anos, com empresa de publicidade Ciesa-NCK, que ele dirigia, antes de eu ir viver para o estrangeiro e dele passar a administrador da Sociedade Nacional de Sabões.
Com ele e com a Maria Lúcia, passámos várias deliciosas férias em Monte Clérigo, alugando uma casa de pescadores que se enchia de amigos e conversas, bem amesentados e regados. Em algumas madrugadas, o Carlos partia dali à caça, tal como, de Lisboa (e, mais tarde, da herdade do Pinheiro, onde tinha uma casa), zarpava para a pesca, sempre com os ciclos do dia a revelarem a nossa eterna e única incompatibilidade: a leitura contrastante sobre a bondade dos horários matutinos... Foi com o Carlos Eurico que ajudei a fundar a Associação de Amizade Portugal-Polónia e, mais tarde, a Associação de Cooperação com as Nações Unidas em Portugal. Nesses tempos, se mais horas tivéssemos nos nossos dias, muitas mais coisas teríamos feito juntos por essa Lisboa. O Carlos Eurico ainda hoje me faz muita falta.
Esta apresentação breve da sua figura tem por objetivo introduzir um outro episódio, que se liga àquele que abriu este texto.
Um dia, aí por 1977 ou 1978, fomos, com as nossas respetivas mulheres, visitar um empreendimento turístico, algures no sul do país, que a Ciesa-NCK iria ajudar a publicitar. O diretor que nos recebeu, que acabávamos de conhecer, ofereceu-nos um simpático almoço num restaurante.
A meio da conversa, a Maria Lúcia trouxe à baila as capacidades divinatórias do Carlos, em matéria de “leitura” de mãos. Para mim, foi uma completa surpresa: embora o conhecesse bem, ignorava esse suposto “dom”. Ele mostrava-se, aliás, extremamente relutante em fazer uma “demonstração”. Eu brinquei e ofereci-me para cobaia, o que ele recusou, liminarmente: “Nunca leio as mãos de alguém de quem estou próximo!”.
O tal diretor achou graça e disse não se importar de ser ele a “vítima”. Foi claramente forçado que vi o Carlos aceder a fazer essa experiência. Ao final de uns breves minutos em que olhou as mãos do homem, a sua cara ficou muito séria: “Pronto, já terminei!”. “E então?”, retorquiu o outro, curioso. O Carlos continuava de rosto fechado: “Não vou dizer nada!”. A curiosidade do outro aumentou: “Diga lá! Esteja à vontade! Pode dizer tudo!”
Eu olhava algo divertido, não acreditando em nada daquilo mas não querendo mostrar, por isso poder ser visto como ofensivo, o meu completo ceticismo. A insistência do homem foi tal que o Carlos, olhando-o bem de frente nos olhos, disse: “Quer mesmo que eu diga?”. Sentia-se já alguma tensão à volta da mesa. O homem, sorridente, confirmou: “Claro que sim!”. O Carlos, baixando um pouco a voz, disse: “A sua mão revela que houve um caso de incesto na sua vida”.
Gelámos. O sorriso apagou-se de imediato na cara do nosso anfitrião, que não disse uma palavra. Fez-se um pesado silêncio, por uns instantes. Ao final de um minuto, o homem levantou-se, pálido, aparentemente para ir pagar o almoço. Estávamos todos um pouco incomodados. Para descontrair o ambiente, perguntei ao Carlos: “Já sabias a história do homem, não?”. “Eu?! Nem sei bem o nome dele”, respondeu-me, “quanto mais saber das suas histórias de família!” O homem regressou. A refeição tinha acabado. Despedimo-nos com a possível naturalidade e cada um de nós foi à sua vida. O assunto desapareceu, por completo, da nossa conversa. Para sempre. Creio que a Ciesa-NCK não obteve o contrato.
Ontem, ao ler a nota de Fernando Dacosta sobre Natália Correia, lembrei-me desta historieta. Repito: não acredito, am absoluto, na “leitura” de mãos, como não acredito em horóscopos, crenças religiosas ou coisas similares. Mas que o episódio a que assisti sempre me intrigou, isso não posso negar!