As crises fazem parte da sina de todos os governos. Por culpa própria ou da conjuntura. A primeira é integrada pelos erros dos governantes. A segunda traz essa coisa temível e inesperada que são os "factos", isto é, o inesperado, aquilo que tudo condiciona, sem ser previsível. A capacidade de um governo consiste saber em superar, rapidamente, cada crise emergente, colocando um ponto final nos novos problemas, não deixando que estes inquinem, até pela sua repetição, a imagem do executivo. Isto é sempre mais fácil no início dos governos, dado que, com o passar do tempo, a capacidade destes para superarem os problemas vai diminuindo, com o fim do (mais ou menos longo) "estado de graça" e com o inevitável desgaste.
O governo de António Costa foi, nesta matéria, um tanto atípico. A sua formação - e, para muitos, a sua legitimidade - foi polémica, pelo que, curiosamente, veio a ganhar um "estado de graça" progressivo, grandemente derivado da "habilidade" (que é, em linguagem comum, sinónimo de "capacidade política") do PM. O facto de ter conseguido superar alguns processos complexos (p.e., TAP e orçamento) e se ter mostrado expedito e afirmativo em outros (p.e.,Banif) conferiu-lhe uma imagem daquilo a que os anglossaxónicos chamam de "troubleshooter", isto é, de "resolvedor" de problemas. A noção de que muitos agravadores tradicionais de conflitos (partidos mais à esquerda, sindicatos) estão agora na maioria de apoio do governo criou a impressão pública de que essa capacidade resolutiva tinha condições para perdurar bastante no tempo. O desnorte da oposição (que é composta, por ordem decrescente de eficácia, pelos comentadores económicos televisivos de direita, PSD, "Observador" e CDS) ajudava ao resto. A tudo isto veio cumular-se um chefe de Estado manifestamente interessado em não ser visto como fator de instabilidade, o que, numa sociedade política, funciona como "neutralidade colaborante", para utilizar uma formulação clássica.
Porém, no horizonte governativo, começaram a surgir os "eventos".
As medidas na Educação revelaram a dependência de uma agenda que o país não entendeu nem achou prioritária, e indiciaram um primeiro erro de "casting" de António Costa. A ligeireza (algo ruidosa) com que agora ocorre a demissão de um secretário de Estado de que nunca ninguém tinha ouvido falar também não é saudável.
O episódio João Soares era francamente evitável, mas Costa soube atalhá-lo com célere maestria.
O caso Lacerda Machado revela evidente descuido, até porque, muito injustamente, abriu caminho a que alguns colocassem em causa o bom nome de uma pessoa que há muito tenho por proba e altamente competente. Por muito que tendamos a defender - e eu faço-o, sem a menor reticência - a boa fé de todos os envolvidos no processo, coloco uma simples e honesta pergunta aos meus amigos de esquerda: o que é que, durante a vigência do governo anterior, teria acontecido se, de repente, se viesse a saber que o dr. Passos Coelho utilizava "o seu maior amigo" para ajudar o Estado a negociar acordos desta magnitude, sem um qualquer vínculo contratual? Não "caía o Carmo e a Trindade"? Respondam-me, por favor.
Finalmente, a "trapalhada" do Colégio Militar.
(Um parêntesis para dizer que começo a ter escassa paciência para esta ideia de que a a "tropa" é uma espécie de "chasse gardée" em que sempre se deve tocar com pinças, por uma espécie de reverência eterna que é devida a uma instituição composta por gente que, em princípio, se dispõe a arriscar a vida pela pátria (embora paga para isso) e a quem, além do mais, devemos o 25 de abril. Os* militares parece pretenderem preservar neste país um estatuto à parte, como se, lá no fundo, recusassem uma completa subordinação ao poder político, tentando garantir que na sua "quinta" mandam eles. Detesto e rejeito este sentimento de casta, até porque faço parte de uma carreira que lhes pede meças em patriotismo e devoção ao interesse nacional. Acho, aliás, que já chegou a hora do país deixar de levar a sério algumas indignações castrenses, que indiciam um tropismo obsessivo de afirmação de uma espécie de aristocracia fardada, pouco consentânea com os valores de abril.)
Confesso que não tenho opinião formada sobre as razões neste caso, em especial sobre as culpas ou não do ministro, que tenho por uma pessoa muito respeitável. Nem isso é importante para o que aqui trago. A realidade é que o governo tem agora um problema para resolver neste setor, e deve fazê-lo com rapidez, tanto mais que o assunto começa a ser cavalgado pela direita (cuja "autoridade" nesta área é conhecida, como ficou patente nas relações entre Aguiar Branco e a corporação).
António Costa tem de conseguir evitar a repetição de casos polémicos. Nada pode fazer contra o surgimento de novos factos, mas, para não se desgastar rapidamente, tem de ter uma equipa coesa, disciplinada e com nervos de aço.
* onde escrevi "os militares" naturalmente que deveria estar "alguns militares". Quem me conhece, em especial muitos militares que tenho como amigos, sabe que é exatamente isso que penso. A rapidez da escrita informática leva a estes erros.