Andava muito cansado e, enquanto esperava, na
sala ao lado de uma oficina, que me arranjassem o carro, sentei-me numa cadeira
e, por instantes, fechei os olhos. Foi então que o som, ao fundo, de uma chapa
a ser batida, bem como impactos secos, provavelmente oriundos de um martelo de
borracha no realinhamento de uma direção, despertaram em mim uma súbita onda de
prazer auditivo. Não tinha o ritmado do mimimalismo de Philip Glass que um dia,
em Londres, me embalara no Barbican (levando-me a sair no intervalo, por
queixas de ressonar), mas havia por ali algo que evocava no meu ouvido (talvez
mesmo em melhor) uma sessão de música concreta polaca, no S. Luís, a que só por
vergonha, cerca de uma semana antes, resistira até ao fim. Terá sido nesse
instante que, embora meio adormecido, acordei pela primeira vez para a
fantástica identidade dos ruídos de Lisboa.
Os estímulos auditivos que não resultem de melopeias ou de
sonoridades pré-cozinhadas são, de há muito, uma das mais inspiradoras fontes
da minha reatividade. E Lisboa, com o alarido mediterrânico – que os nórdicos
confundem, insensivelmente, com javardice e falta de respeito pelo sossego dos
outros – é um raro oásis (longe ainda de Nápoles, claro) em matéria de impactos
dessa natureza.
O som “oficial” de Lisboa é, como todos sabemos, o fado, mas,
mesmo num registo turístico clássico, o chiar dos elétricos na descida do
Ferragial ou a buzina dos cacilheiros sob neblina, bem poderiam
equivaler-se-lhe nessa dignidade identitária de cartaz. Antes, no tempo do SNI
e do Ferro, era também o gritar esganiçado das varinas, tão incensado na
fadunchada primária, que integrava esse património decibélico. Mas as varinas
foram-se com o tempo e com o Pingo Doce.
Verdade seja que os ruídos humanos lisboetas são reportados
desde as calendas. Fernão Lopes registou-os na sonoridade literária da sua
Crónica, a Rattazzi tomava-os à conta de falhas na educação e nos costumes
(meros preconceitos!), Eça ouviu-os pelos bilhares do Montanha. Até o canto de
Fausto, no “Europa, Querida Europa”, fala dessa “algazarra nas ruas”, com um
“suave cheiro a sardinhas”. O chavascal é parte da nossa matriz e Lisboa é o
palco orgulhoso dessa imensa peça de chinfrim.
Um amigo brasileiro, há dias, deixou-me sem palavras, num
ambiente de infernal basqueiro e guinchos de máquinas, no longo concerto de
barulheira operária concreta que o maestro Fernando Medina orquestrou, por
meses, pela cidade, ao dizer-me: “Você sabe, Francisco, é adorável este vosso
Chiado”. Como ele disse isso nas Avenidas Novas, em frente à Versailles, fiquei
sem saber se havia de escrever Chiado com maiúscula ou não.
Mas tudo isto, meus amigos, será sempre apenas uma singela
gota de água numa realidade com uma riqueza hoje quase inesgotável.
Todas as cidades, como sabemos, têm os seus sons próprios.
Questão diferente é selecionar aquelas raras urbes às quais uma forte presença
auditiva confere um estatuto identitário próprio.
À lembrança vem-me, de imediato, Nova Iorque, com aquela
obsessiva e permanente confusão de sirenes de ambulâncias e carros de
bombeiros, que alguém um dia chegou a pensar que eram pagos pelo serviço de
turismo da cidade, para lhe sustentarem, no imaginário dos viajantes e
cinéfilos, essa típica marca sonora. Mas Lisboa, passe a imodéstia, não fica
nada atrás de Manhattan.
O meu interesse por este tema, embora por muito tempo de
forma pouco consciente, vem já de muito longe. O ruído lisboeta é, em mim, um
eterno fator mobilizador, que me induz a certas atitudes, embora algumas, se
acaso fossem levadas até às últimas consequências, eu não possa garantir que
evoluíssem sempre num registo de serena urbanidade. É que me recordo, por
exemplo, de, quando vivia perto do Campo Pequeno, em noites de fim-de-semana,
ter sido o roncar dos escapes dos motards que, por exemplo, suscitou em mim uma
inesperada vocação cinegética. Só não comprei a caçadeira por falta de espaço
lá em casa para a guarder.
Nos dias de hoje, na rua da Lapa onde vivo, a desportiva
tendência dos carros para aí testarem os limites urbanos de velocidade,
traz-me, por vezes, o impulso de complementar a minha reforma com uma atividade
de bricolage, onde o uso de pregos e taxas é, como é sabido, imperativo.
E, não raramente, a saborosa diversidade dos claxons, saídos
dos SUV a fingir que por aí abundam, guiados por graves metrossexuais de barba,
travados no caminho para as start-ups, desperta em mim, nesse tráfico
congestionado (e Lisboa tem evoluído para grandes confusões de trânsito,
garantindo-se assim já ao nível das grandes cidades) saborosas memórias da
sétima arte: mais precisamente uma nostalgia pelos gadgets que Q colocava no Aston
Martin de James Bond, capazes de disparar rajadas em várias direções.
Mas aprendi que o ruído lisboeta, paradoxalmente, também
convida à reflexão. Recordo-me de jantares em casa de um amigo que vivia no
topo de um prédio sobre o qual passavam, na aproximação à aterragem, os aviões.
Havia pausas de largos segundos nesses momentos de convívio, tipo “un ange qui
passe”, que permitiam instantes valiosos de meditação ou, em alternativa, de
concentração em mais umas boas garfadas.
É, contudo, o ruído humano lisboeta, em todo o esplendor da
sua criatividade, que estimula em mim os mais inesperados sentimentos, mesmo
que, por vezes, ele tenda a atenuar os efeitos dos hipertensores que tomo.
Quase sem igual no mundo, são os berros das adoráveis
criancinhas nos restaurantes onde escolhemos ir ter uma conversa serena. Lisboa
tem, nesse domínio, uma magnífica cultura liberal – e ainda há quem se queixe
de sermos uma sociedade iliberal! – permitindo, desde a tenra idade, a
vocalização do protesto ou da alegria. É uma espécie de aplicação do 25 de
abril às creches, socializando a criança ao usufruto do seu inalienável direito
à indignação, ou à berraria em voz bem alta. Mas, entre nós, o que é mais
notável é que os pais cuidam em não guardar essa expressão sonora dos rebentos
para o recato egoísta da família, antes a partilham, com imensa generosidade,
com a vizinhança, que assim pode apreciar a encantadora espontaneidade
infantil. O facto de alguns circunstantes se sentirem tentados (e cito o que,
infelizmente, já ouvi) a “dar um par de bofardos no puto”, também deve ser
levado à conta do inestimável efeito de impulso interventivo, que é desejável
poder suscitar em nosso redor. A sociedade ou é interativa ou ficamos todos
silenciosos de olhos nos iPads e iPhones. Não é disso de que todos se queixam?
A contemporaneidade, contudo, tem também sabido trazer, neste
domínio, uma generosa oferta sonora, mais high-tech. O telemóvel é hoje um
imprescindível instrumento da nossa transparência urbana.
O lisboeta típico, como os estrangeiros extasiados se fartam
de constatar, dá-nos regularmente o gosto de partilhar connosco, em lugares
públicos, diálogos da sua vida pessoal, como informações muito francas, por
exemplo, sobre os seus padecimentos de saúde ou as crises existenciais dos
conhecidos.
Experimente o leitor ir ler para um lugar desses e, ao final
de uns minutos, concluirá que lhe são oferecidas pausas divertidas que,
tirando-lhe embora o fio à meada daquilo em que estava concentrado, o fará
entrar num mundo novo de revelações alheias – excelentes para quem gosta de
exercitar sociologia de pacotilha no Facebook.
Outros ainda capricham, nos cruzamentos ou nas filas de
trânsito, em nos fazer ouvir os ritmos “metal” que saem do altifalantes dos
seus carros, num volume tão elevado que, às vezes, os incapacita de tomar nota
de alguns alguns adjetivos qualificativos com que, muitas vezes sem uma
explícita simpatia no nosso rosto, lhes retorquimos essa não solicitada
partilha.
Mas os estrangeiros visitantes, ao que me chega, já também
cuidam, eles próprios, e cada vez mais, de participar no alimentar do
património de sonoridades atípicas. Ao que parece, pelas noites animadas dos
hostels, ou em partilhas de Airbnb, surgem cada vez mais interações sonoras
entre andares, as quais, com o tempo, acabarão pela certa nas páginas do crime
do Correio da Manhã ou nos apanhados noticiosos das urgências dos hospitais.
Esta "Bica", que nasceu com uma explícita vocação
de servir de guia a uma nova leitura de Lisboa, rompendo com estereótipos e
tentando descortinar espaços inéditos de interesse para visitantes em busca de
novos nichos de curiosidade, tem aqui um papel indispensável. Dar a conhecer a
riqueza dos ruídos da cidade, chamar a atenção para essa Lisboa dos sons
pretensamente não harmónicos, indicar mesmo oportunidades de criatividade ativa
nessa área para quem nos visita, é levar à prática um imenso dever cívico.
Não deixemos silenciar esse inestimável património decibélico
(por onde anda a Unesco, que não viu ainda as virtualidades disto?) que é o
ruído urbano lisboeta. Não façamos orelhas moucas à necessidade de cultivar
essa riqueza e, acima de tudo. Não calemos a nossa voz perante a óbvia
conspiração que se está a fazer contra o chavascal popular, contra a (tão
típica) conversa aos berros em voz alta pela rua, contra a espontaneidade das
mães chamando crianças à distância, nos lugares públicos e outras amenidades
correlativas. Cuidemos do que é nosso, povo de Lisboa!
Há alguma coisa melhor que isto? Pode haver, mas por cá ainda
não se sabe.