"Participei" ontem nesta sessão, com um texto meu lido por voz amiga, dada a minha conjuntural impossibilidade de estar presente. Para quem estiver interessado, pode ser lido aqui.
sexta-feira, janeiro 27, 2017
Back to basics?
Um amigo meu, pessoa muito conhecida e que já teve elevadas responsabilidades, alimenta a teoria de que Portugal só "voltará a ser um país verdadeiro" quando desaparecerem do horizonte as ajudas europeias e cada um souber viver "alavancado" no seu trabalho, no crédito bancário tradicional e nas eventuais discriminações fiscais positivas que o Estado entenda dever conceder para a promoção de negócios de interesse para o país. Nada mais. Esse amigo vai mais longe, ao achar que só uma nova geração, de onde tenha sido erradicada a nefasta "cultura de subsidiação", pode vir "reconstruir um país independente". E "ai de quem não concordar com isto e, ainda por cima, se arme em liberal!"
Ouvi-o em silêncio e nem ousei responder-lhe.
Marcelo é fixe?
É costume dizer-se que são os homens quem faz os cargos. Nem sempre isso é verdade, em especial quando os “coletes” institucionais são um espartilho que deixa pouca margem para a afirmação das personalidades que os habitam.
A Constituição portuguesa, revista pela experiência histórica posterior à sua entrada em vigor em 1976, acabou por desenhar um cargo que, tendo embora um espaço de manobra inferior ao modelo original – esse sim, um claro semi-presidencialismo –, deixa ainda uma apreciável capacidade de atuação ao titular do cargo, a qual, no entanto, varia sempre na razão inversa da força parlamentar de que os governos dispõem. Se Eanes foi o executante do primeiro modelo, Soares, Sampaio e Cavaco, cada um a seu modo, protagonizaram a plenitude civil do exercício do poder. Cada um teve a conjuntura política que lhe calhou em rifa.
Soares viveu quase sempre com governos maioritários alheios à sua família política, ungidos de fundos e loas europeias, mas nem por isso deixou uma marca política impressiva, tendo para tal contribuído bastante o facto de ter sido o alegre notário do declínio do cavaquismo.
Sampaio e Cavaco conviveram ambos com as áreas políticas contrastantes. Sampaio foi discreto durante os governos não-maioritários de Guterres e demonstrou uma medida firmeza, de grau nem sempre apreciado pela sua família política, quando teve de confrontar-se com orientações governativas de que estava ideologicamente mais distante.
Cavaco foi prudentemente institucional quando, do lado do executivo, estava uma maioria de sinal oposto e, enquistando mal as crises, perdeu a tramontana perante o desvario de Sócrates, parecendo viver depois bem mais confortável com o governo maioritário da sua cor sob tutela externa.
Que sobra dos três presidente na memória coletiva? De Soares, o estilo, as presidências abertas e o garbo com que presidiu ao funeral do cavaquismo governativo. De Sampaio, o incansável escrúpulo funcional, o rigor institucional endémico e o faz-desfaz do período Santana Lopes, que o afastou muito da direita e acabou por semi-reconciliá-lo com a esquerda. Cavaco Silva ficou marcado por um penoso segundo mandato, em que não soube representar um país sofrido que também o tinha elegido e pactou, de forma imperdoável e silenciosa, com ataques inomináveis à corte constitucional, de cuja autonomia também devia ser garante.
Marcelo é um presidente de tipo novo. Segue o sentido instituicional de Estado de Sampaio, tem uma genuinidade, na proximidade às pessoas, que pede meças a Soares, descuidando a distância presidencial que este não dispensava. De Cavaco, a meu ver felizmente, herda pouco. A Marcelo, o presidente mais tranparente da nossa democracia, parece aplicar-se, na perfeição, a fórmula anglo-saxónica: “what you see is what you get”. Mas é fixe ou não? Por ora, tudo indica que sim. Vamos falando…
quinta-feira, janeiro 26, 2017
Leitura política para o fim de semana
... oferta de uma querida amiga, chegada diretamente das perturbadas terras de sua majestade britânica
quarta-feira, janeiro 25, 2017
A cidade de Ontem
Ao ler que a Santos Júnior, polícia-mor de um dos períodos mais sinistros da ditadura, foi atribuído o nome de uma rua em Coja (se fosse em Corja, não me admirava), dei comigo a pensar se, de facto, não seria justo, para cultivo de uma certa memória afetiva, ser criada, algures no nosso país, uma cidade que tivesse o nome de Ontem. Para aí irem viver poderiam ser convidados, em prioridade, todos quantos, nas redes sociais e nas caixas de comentários dos sites e jornais, permanecem fiéis a um saudoso passado em que, pelos vistos, se sentiam tão felizes. Mas muitos outros seriam elegíveis, como se intui em colunas de jornais e até em certas tribunas políticas residuais. Em Ontem, o Diário da Manhã e o Novidades dariam, ao alvorecer, as notícias a que os seus cidadãos tinham direito - mas nem mais uma, ou, então, "factos alternativos", como fazem as relações públicas de Trump! E iríamos vê-los felizes, cara ao sol, sentados na esplanada do Café do Aljube, com vistas para a Praça do Tarrafal (no centro da praça, em dias de calor haveria um lugar a que chamariam "frigideira"), à qual se acederia pela grande Avenida Oliveira Salazar, de sentido único, que, lá bem ao fundo, conduzia ao Beco Américo Tomaz (com Z). No Centro Social Silva Pais, não muito distante, ouvir-se-ia a Emissora Nacional que os "senhores óvintes" quisessem, obrigatoriamente abrindo com "Uma Casa Portuguesa" ("a alegria da pobreza está nesta grande riqueza de dar e ficar contente"). Na Alameda Barbieri Cardoso, ficaria a Livraria Lápis Azul, que só venderia livros rigorosamente conformes aos cânones do antigo e benquisto regime, sendo de todo excluídos aqueles em que as palavras "liberdade", "democracia" e "povo" pudessem surgir. Em Ontem, Pide seria o nome de uma associação de beneficência, com o Centro de Artes "Estátua", recuperando a tradição de uma instituição com uma benéfica ação que tão deturpada tem sido - embora, felizmente, já haja por estes dias um grupo dedicado de rapazes da historiografia que começa a tentar mudar tais erróneas perceções. O fotógrafo oficial da cidade de Ontem, um tal Rosa Casaco, faria os retratos à maneira, de preferência um "photomathon" com frente e duas laterais, numa moda estética lamentavelmente caída em desuso. E, por falar em "casaco", iria ser com certeza um sucesso o alfaite o local, o conhecido "Vira Casacas", que tanto trabalho tinha tido no 25 de abril. Perguntará o leitor: E a Justiça? E a Saúde? Quem assistiria nesses domínios os habitantes de Ontem? A Justiça, ora essa!, estaria a cargo dessas vestais do direito que eram os juízes dos Tribunais Plenários! E a Saúde, essa não poderia ficar em melhores mãos do que de esses dignos seguidores de Hipócrates que eram os médicos do Tarrafal, de Peniche e de Caxias. Mas não se fala da Educação? Não, porque em Ontem ela não seria necessária, orgulhosa do analfabetismo sadio que outrora imperava. E, sejamos óbvios, os que fossem educados só por engano é que iram viver para Ontem. Resta a ordem pública? Nem por isso! Bastava ficar por lá o capitão Maltez (nunca percebi porque nunca foi promovido, ou, se calhar, foi, depois do 25 de abril e ninguém nos avisou) e nem uma agulha bulia na serena melancolia da paz dos cemitérios. Ah! E, em Ontem, haveria também uma Colónia de Férias (então eles passavam lá sem ter uma coloniazita...). Pela certa, finalmente, a cidade não enjeitaria uma geminação com Santa Comba ou com a angolana São Nicolau, porque há memórias que calam fundo - e calar é algo que Ontem saberia sempre fazer. Um ponto muito importante seria permitir que os cidadãos pudessem sair de Ontem sempre que lhes apetecesse. Não há, porém, a certeza de que isso, necessariamente, lhes agradasse, porque a liberdade é, no fundo, aquilo que eles menos apreciam. Enfim, Ontem é, talvez, o futuro que alguns desejariam. Por que não fazer-lhes a vontade? Será que para a criação desta urbe da saudade se arranja, finalmente, uma maioria decente na Assembleia da República?
Mário Ruivo
Quando, em 2012, passei a acumular a chefia da embaixada em Paris com a representação junto da Unesco, ao fazer a regular ronda com os principais responsáveis pela organização, constatei que Mário Ruivo me era invariavelmente referido como a grande referência portuguesa.
Uma década antes, nas Nações Unidas, em Nova Iorque, quando promovia os interesses de Portugal nas questões do mar, o mesmo nome era-me sempre citado com imenso respeito.
Mário Ruivo era uma grande figura da ciência portuguesa à escala internacional, uma personalidade ímpar na problemática dos oceanos. Com a sua desaparição, que agora sucede - poucos dias depois do seu amigo Mário Soares, com quem relevou o papel de Portugal nesses domínios -, Portugal perde uma das suas grandes personalidades com prestígio científico reconhecido pelo mundo.
Devo confessar que Mário Ruivo, que hoje desapareceu, era das pessoas por quem tinha maior consideração pessoal, política e intelectual - e não digo isto de muita gente. Era uma personalidade encantadora, um homem do mundo, um espírito aberto, com uma permanente atenção ao novo, um entusiasmo quase adolescente, que fazia esquecer a idade que tinha.
A minha primeira relação com ele foi fugaz. Em agosto de 1975, Mário Ruivo foi ministro dos Negócios Estrangeiros do "famigerado" 5° governo provisório. Esse foi também o mês em que eu entrava para o MNE. A precariedade previsível daquele que iria ser o executivo mais à esquerda da História portuguesa fez com que, nas Necessidades, houvesse uma quase generalizada (e, vá lá, compreensível) recusa para integrar o gabinete do ministro Mário Ruivo. Contactado pelo Agostinho Roseta, disse que podiam contar com a minha disponibilidade para tal função, logo que terminado o meu período militar, no final desse mês. Quando, finda a "tropa", ia assumir o cargo, o 5° governo estava já prestes a cair. Nem assim me livrei, para sempre, desse "ferrete" político. Com garbo e gosto, diga-se...
Mário Ruivo foi um nome mítico da oposição à ditadura. Em várias conversas que com ele tive, durante passagens suas por Paris, contou-me histórias muito interessantes dos seus tempos de Roma, do seu papel na FPLN (Frente Patriótica de Libertação Nacional), da sua leitura sobre a personalidade de Mário Carvalho, o sicário da Pide que levou ao asssassinato de Delgado, mas também sobre a alegada filha bastarda de D. Carlos, que apoiou oposicionistas portugueses. Várias horas ganhei, nas mesas do "Flore", ouvindo-o falar sobre esse Portugal expatriado a que devemos muita da nossa liberdade, com ele sempre a assumir com grande modéstia o seu papel pessoal nesse cenário de resistência.
Desaparece o homem que muitas vezes vestia de verde, o que, no fundo, talvez simbolizasse o seu compromisso permanente com a natureza, a sua grande paixão.
terça-feira, janeiro 24, 2017
O nome dele é Acácio?
Então tu, meu magano, querias que o voto secreto dos Conselheiros de Opinião da RTP fosse no sentido de escolher para provedor do ouvinte aquele que é talvez o mais qualificado profissional da Rádio Portuguesa?
Achavas mesmo, meu caro João Paulo Guerra, que eles iam escolher uma voz independente, que não deve nada a ninguém e que pede meças a quem quer que seja em experiência qualificada no setor, para essa função crítica?
O Joaquim Vieira tinha, na douta opinião secreta dos conselheiros, escassa tarimba na Rádio? Pimba!, foi chumbado. A seguir vinhas tu e, claro, foste também às malvas na urna, imagino que por aquele critério desqualificador antigo que é o "excesso de habilitações".
Que importância tem a listagem de prémios que, ao longo da vida, recebeste pelo teu trabalho radiofónico, ao lado do currículo brilhante de alguns dos conselheiros, que como prova útil da sua existência só têm o seu direito de veto?
Que sabem eles do PBX, do Tempo Zip, daquela escola inigualável que foi o noticiário do Rádio Clube? Acaso eles ouviram alguma vez os Reis da Rádio ou O Fio da Meada?
Tenho a suspeita, João, de que entre os conselheiros que te vetaram está aquele escriba que, um dia, iniciou uma crónica com o histórico "Era meia-noite e, no entanto, chovia...". Como é que se chamará esse conselheiro? Acácio, não é?
segunda-feira, janeiro 23, 2017
Uma dúzia de notas
1. Benoît Hamon foi o candidato mais votado das primárias socialistas francesas. A esquerda perderia sempre as eleições presidenciais, mas, com Hamon, oferece, em definitivo, o peito às balas.
2. Carolina do Mónaco, ainda belíssima, faz 60 anos. Fico muito satisfeito. Em mês de aniversário, afinal constato que não sou só eu quem envelhece.
3. Neste tempo de crescente "belenensização" do meu Sporting, por que diabo tenho cada vez mais orgulho naquele clube?
4. O namoro da imprensa com o Bloco vai de vento em popa. Entre a partilha dos cultos fraturantes e outras afinidades eletivas, há todas aas semanas um/a amigo/a disposto/a para a promoçãozinha.
5. Os derradeiros resistentes ao Acordo Ortográfico sentiram um sopro de esperança com uma qualquer urticária académica. Imagino que já deva andar por aí um lóbi para um "Prós e Contras" a propósito.
6. Ao defender a preservação da estabilidade, no governo e na oposição (isto é, que ambos continuem nas suas posições relativas...), até ao fim da legislatura, o presidente da República sabia que abria uma guerra com os seus antigos amigos. Leia-se as redes sociais e o Observador! É de chorar a rir!
7. Depois do caos no tráfego nos ter dado cabo da paciência, Fernando Medina mostra os novos passeios e inicia, com segurança, o seu próprio passeio até às eleições. Até Bagão Félix já está conquistado! Cristas prepara-se para vereadora. O PSD continua, qual Martim Moniz, completamente entalado.
8. Vale a pena estar atento ao que se vai passar em Israel, agora com o novo "backing" americano. A direita israelita tem um tropismo para a fuga em frente que afasta o país cada vez mais da paz.
9. A imprensa dá nota de que os estímulos ao consumo, que faziam parte da estratégia de Mário Centeno, afinal funcionaram. Olhe-se os resultados das cadeias de distribuição.
10. Já não tenho pachorra para aturar a Remax e congéneres, que, volta-e-meia, me batem à porta a perguntar se quero vender a minha casa. Estou quase a ser tão antipático como já o sou, ao telefone, para a Nos.
11. Sabíamos que a relação da Impresa com esta Presidência - ou será de Balsemão com Marcelo? - nunca iria ser muito boa (MRS nunca foi comentador na SIC, lembram-se?). Mas, caro Paulo Magalhães, o tiro (do exclusivo) saiu mesmo pela culatra, não foi?
12. E, por falar em culatra, parece que a G3 tem os dias contados. Tenho memórias pouco divertidas de manhãs em Mafra, há 40 e tal anos, a desmontar e montar a culatra da minha metralhadora, num estupidificante exercício. Não verto uma lágrima pelo fim da G3, a arma da guerra colonial.
America, America!
Às vezes, a tão badalada presciência dos pais fundadores da sacrossanta Constituição dos Estados Unidos deveria levar-nos a recordar que esse foi o mesmo documento constitucional que, com todas as suas alegadas virtualidades democráticas, e sem que tivesse havido qualquer mudança de regime, legalizou por muito tempo a discriminação racial mais odiosa, criou o mais orwelliano sistema persecutório através do Comité das Atividades Anti-Americanas, deu cobertura de cara alegre a uma diplomacia que apoiou os mais sinistros regimes um pouco por todo o mundo e, last but not least, permitiu o cínico uso de torturas em Guantanamo. Isto só para dar alguns de muitos outros exemplos possíveis.
O que quero dizer com isto? Quero dizer que quem se fia nos "checks and balances" dado pela Constituição americana devia lembrar-se das barbaridades que já foram cometidas à sua sombra. E ter isto presente ao avaliar a América que aí vem.
Presidente ou Marcelo?
Percebo que o estilo do atual Presidente da República possa, aqui ou ali, estimular uma interlocução diferente.
Entendo que, muito provavelmente, ambos os jornalistas da SIC que entrevistaram o Presidente o tratam, em privado, por Marcelo.
Mas nada disso justifica que o chefe de Estado tenha sido sujeito, na entrevista que concedeu em exclusivo à SIC, a uma barragem de interrupções que roçou o desrespeitoso.
Não era um candidato a uma eleição que ali estava: tratava-se de uma espécie de balanço de um ano de exercício no mais elevado cargo do Estado.
Com o respeito profissional que os entrevistadores me merecem, só lhes faço uma pergunta, para a qual conheço a resposta: teriam ousado contraditar assim Cavaco Silva?
sábado, janeiro 21, 2017
A importância das sondagens
- Porquê? As sondagens, como diz o outro, valem o que valem...
- Não é bem assim! O Costa precisava de conseguir sondagens que apontassem, claramente, para uma maioria absoluta do PS sozinho.
- Acho isso bastante perigoso. Pode dar ideias, lá dentro do PS, de provocar uma crise e ir a eleições. Há uns "talibãs" que pensam assim.
- O Costa nunca se iria arriscar a isso, por várias razões. Desde logo, um PSD derrotado seria um PSD com um novo líder, e isso seria péssimo! O Passos é um "seguro de vida", porque é a cara da "troika" - e convém lembrá-lo por aí todos os dias. Além disso, o PC, humilhado, punha logo as tropas sindicais nas ruas e o Bloco lá ia fraturando pelas suas trincheiras da imprensa benévola que o leva a sério. Com o PS obrigado a ter de cumprir as metas europeias e com uma pressão, conjugada e contraditória, à sua direita e esquerda, seria uma maioria, mesmo que absoluta, sempre muito instável. Eleições, nunca!
- Então a solução será a continuação desta geringonça?
- Mais ou menos, mas o ideal seria ter o PC e o Bloco cada vez mais assustados, com medo de uma "banhada", se acaso se fosse para eleições - desencorajando-os, assim, de provocar uma crise. A flexibilidade dessa esquerda, no futuro imediato, terá de ser garantida por um duplo receio: um recuo eleitoral forte e, quem sabe? (se as coisas acabassem por correr eleitoralmente mal para o PS), o possível regresso da mesma direita que lhe atazanou o eleitorado depois de 2011. Para o PS, é também bom ser visto a titular algumas políticas francamente de esquerda, mesmo que a ala direitista do partido não goste muito e alguns sobrolhos internacioniais se franzam. Aos primeiros pode acenar com as benesses do poder que também a favorece, perante os segundos pode argumentar, discretamente, que esse é o preço, aliás relativamente barato, para ter a possibilidade de aplicar, sem dor nem grandes tensões, as receitas europeias a que não pode fugir. E, finalmente, ao mesmo tempo, vai habituando algum eleitorado, normalmente tentado pelo PC e pelo Bloco, a votar PS. Pronto, aqui tens a resposta sobre a razão por que, na minha opinião, o PS precisaria de muito boas sondagens!
- Mas tu achas que o Costa pensa assim?
- Não sei. Por que é que não lhe perguntas?
sexta-feira, janeiro 20, 2017
O que tem de ser
Todos somos, um pouco, filhos da América. Da literatura ao cinema, da música ao consumo, da pintura à universidade, somos herdeiros e sujeitos do poderoso soft power que nos chega do outro lado do Atlântico, servido por uma língua que se tornou comum e absorvente. O iPad em que escrevo é, pela certa, feito na China, mas a esmagadora maioria dos conteúdos que nele observo são tributários de fontes a que os Estados Unidos não são alheios.
A América foi o instrumento da esperança que, na Segunda Guerra mundial, ajudou a Europa a libertar-se dos seus demónios. Depois, por aqui ficou, como poder europeu, através da Nato, protegendo o template demo-liberal da ameaça soviética. Pelo mundo, impulsionou uma arquitetura institucional que ainda hoje sobrevive. Contra Moscovo, bipolarizou o mundo, que, por décadas, passou a branco-e-preto. Exauriu depois a União Soviética e ganhou a Guerra Fria. Pelo caminho, demonstrou, não raramente, um descarado cinismo estratégico, colocando os seus interesses à frente da coerência com princípios que apregoava e a que apelava a respeitar. Criou inimigos, mas foi sempre temida – e, no fim de contas, o medo dos outros é fautor de poder próprio.
Marcelo Rebelo de Sousa perdoar-me-á se eu escrever que qualquer presidente americano, de uma certa forma, é também, um pouco, nosso presidente. Porque a atitude internacional dos EUA é sempre relevante, queiramos ou não, para o nosso dia-a-dia. É-o na forma como se relaciona com a Europa, na leitura que promove do multilateralismo, na política comercial, nas opções de segurança. Até o é nas Lajes, na política de vistos ou na gestão dos salvíficos green cards.
Não votamos nas eleições americanas, mas, na realidade, cada votante yankee é um «grande eleitor» de todo um mundo que gostaria de o poder fazer.
Eu não escapo à regra. Com três anos, devo ter estado com Adlai Stevenson contra Eisenhower. E perdi. Não me recordo, porque não tinha idade para isso, de ter então visto o debate em que a sua five o’clock shadow ajudou Nixon a ser derrotado. Mas, com toda a certeza, eu estava ali ao lado de Kennedy. Depois, daí em diante, hesitei com Johnson, apreciei Carter, detestei (e detesto, for the record) Reagan, respeitei Bush pai, acabei convencido por Bill Clinton, desprezei Bush filho e considerei a eleição de Obama uma benesse civilizacional.
E chegámos ao dia de hoje. Bob Dylan, numa das suas canções, conta e canta que, um dia, foi, creio, ao Utah e deu-se conta da estranheza hostil com que o viram sobraçar o The New York Times. Sabia-se que essa América existia, Sarah Palin e o Tea Party prenunciavam-na, mas ninguém acreditava que ela se corporizasse um dia na Casa Branca. Agora? Agora, como diz o bom-senso do óbvio, o que tem de ser tem muita força.
(Publicado hoje no "Jornal de Notícias")
A América foi o instrumento da esperança que, na Segunda Guerra mundial, ajudou a Europa a libertar-se dos seus demónios. Depois, por aqui ficou, como poder europeu, através da Nato, protegendo o template demo-liberal da ameaça soviética. Pelo mundo, impulsionou uma arquitetura institucional que ainda hoje sobrevive. Contra Moscovo, bipolarizou o mundo, que, por décadas, passou a branco-e-preto. Exauriu depois a União Soviética e ganhou a Guerra Fria. Pelo caminho, demonstrou, não raramente, um descarado cinismo estratégico, colocando os seus interesses à frente da coerência com princípios que apregoava e a que apelava a respeitar. Criou inimigos, mas foi sempre temida – e, no fim de contas, o medo dos outros é fautor de poder próprio.
Marcelo Rebelo de Sousa perdoar-me-á se eu escrever que qualquer presidente americano, de uma certa forma, é também, um pouco, nosso presidente. Porque a atitude internacional dos EUA é sempre relevante, queiramos ou não, para o nosso dia-a-dia. É-o na forma como se relaciona com a Europa, na leitura que promove do multilateralismo, na política comercial, nas opções de segurança. Até o é nas Lajes, na política de vistos ou na gestão dos salvíficos green cards.
Não votamos nas eleições americanas, mas, na realidade, cada votante yankee é um «grande eleitor» de todo um mundo que gostaria de o poder fazer.
Eu não escapo à regra. Com três anos, devo ter estado com Adlai Stevenson contra Eisenhower. E perdi. Não me recordo, porque não tinha idade para isso, de ter então visto o debate em que a sua five o’clock shadow ajudou Nixon a ser derrotado. Mas, com toda a certeza, eu estava ali ao lado de Kennedy. Depois, daí em diante, hesitei com Johnson, apreciei Carter, detestei (e detesto, for the record) Reagan, respeitei Bush pai, acabei convencido por Bill Clinton, desprezei Bush filho e considerei a eleição de Obama uma benesse civilizacional.
E chegámos ao dia de hoje. Bob Dylan, numa das suas canções, conta e canta que, um dia, foi, creio, ao Utah e deu-se conta da estranheza hostil com que o viram sobraçar o The New York Times. Sabia-se que essa América existia, Sarah Palin e o Tea Party prenunciavam-na, mas ninguém acreditava que ela se corporizasse um dia na Casa Branca. Agora? Agora, como diz o bom-senso do óbvio, o que tem de ser tem muita força.
(Publicado hoje no "Jornal de Notícias")
Tudo bem?
É legítima a pergunta: acabou tudo de forma positiva no caso dos filhos do embaixador iraquiano ? Não, mas acabou, devo confessar, de forma muito mais positiva do que eu alguma vez esperei.
O cenário provável, desde o início, seria a expulsão dos alegados agressores, pela previsível recusa iraquiana a levantar a sua imunidade, gesto muito pouco comum no mundo internacional. Quero com isto dizer que a hipótese dos iraquianos serem julgados em Portugal nunca esteve, realisticamente, no plano das possibilidades.
Assim sendo, haveria que salvaguardar, pelo menos, uma reparação civil adequada e isso foi feito, com o acordo satisfatório entre as partes. Mas o Iraque foi mais longe, e aí portou-se politicamente bem : «auto-puniu-se» ao retirar, de motu próprio, o seu embaixador e prometeu organizar um futuro processo no Iraque. Claro que o teste final será o modo como esse julgamento vier a decorrer, tanto mais que, nesse contexto, há que não esquecer que o pagamento da indemnização funcionará sempre como um reconhecimento implícto de culpabilidade. À suivre, como se diz na banda desenhada.
Qualifico numa palavra a atuação em toda a questão de Augusto Santos Silva e do seu MNE: impecável.
(Artigo hoje publicado no Jornal i)
quinta-feira, janeiro 19, 2017
"Faz frio"?
Há meio século, ainda sobreviviam por Lisboa alguns restaurantes (em geral, velhas tascas "evoluídas") com as mesas separadas por tabiques. A privacidade sonora era relativa, mas o culto de uma refeição preservada dos olhares alheios (hoje, é o contrário: o interesse na exposição social chega a prevalecer sobre a qualidade da comida) levava ao gosto pela frequência desses locais.
Recordo-me de um clássico, cujo nome esqueci, na esquina da avenida Sacadura Cabral com o Campo Pequeno, onde fui pela primeira vez pela mão sabedora de Afonso Praça. Se não me engano, no género, ainda hoje existe a Estrela da Sé.
Mas é do Faz Frio que mais me recordo. Nesse tempo em que, para o jantar (e tirando as casas de fado) o vizinho Bairro Alto tinha ainda muito poucos locais "íveis" (significado deste neologismo que um dia ouvi ao Alfredo Alvela: "local onde se pode ir"), o Faz Frio (para as novas gerações: fica quase em frente ao Pavilhão Chinês) era um pouso frequente para grupos de que eu fazia parte. Tinha (terá ainda?) uma paella por encomenda que, não chegando aos calcanhares marítimos da da Saisa, era de se lhe tirar o chapéu (mas não excluo que os meus critérios de exigência fossem então bem mais baixos). Voltei ao Faz Figura há um ou dois anos, depois de uma ausência de décadas, mas, para além de estar cheio de estrangeiros, não me ficou registo relevante de memória dessa experiência.
Por que é que me lembrei hoje do Faz Frio? Ora essa! Porque hoje faz frio, mesmo muito, e, se acaso me apetecesse voltar a sair de casa, era aí mesmo que iria jantar. Bom, se calhar, estou aqui a enunciar esta intenção porque sei, de certeza segura, que hoje fico no quente caseiro. Seja como for, este é o dia do Faz Frio.
quarta-feira, janeiro 18, 2017
Solidão
Ambos tinham entrado, há muito, na casa dos 80. Ele estava de cadeira de rodas, no hall daquele hospital, a caminho de uns exames, que pressenti complicados. Ela, menos limitada, arrastava-se contudo com alguma dificuldade, embora no comando das operações familiares. Eram ambas pessoas com uma certa posição social. Isso ficou evidente na longa identidade do marido que, com orgulho, a senhora declinou ao balcão. A burocrática redução ao primeiro e último nomes, vocalizada em resposta pelo empregado, se bem que necessária, foi algo cruel, à vista e ouvido dos circunstantes.
A senhora sentou-se perto de mim, com o marido na cadeira de rodas, ao seu lado. Ele não parava de dizer-lhe coisas ininteligíveis. Ela respondia-lhe em voz alta, ao ouvido débil, para o aquietar. A certo ponto, ouvi-a dizer-lhe: "Está calmo. Lá iremos daqui a pouco para casa, descansa!". Mas ele continuava inquieto, tremendo, abalado sei lá por que doença, frágil e de fácies amarelo. A senhora olhava, ansiosa, a chamada da senha no quadro eletrónico, de cada vez que se ouvia um sinal sonoro. A certo passo, a uma nova questão do cavalheiro, ela passou-lhe discretamente a mão pela cara, numa festa pudica, de quem tem o pejo social de assumir, em público, gestos de ternura, e disse: "Sozinhos? Não, não estamos sozinhos. As pessoas como nós nunca estão sozinhas!". E olhou em volta, com uma altivez que os cabelos prateados e os traços de uma beleza passada lhe autorizavam. Mas ninguém notou esse olhar seguro. As caras estavam mergulhadas em telemóveis, muito sozinhas.
Qualquer que fosse o real significado da frase proferida por aquela senhora, achei curioso o que me pareceu ser uma interessante expressão de orgulho. Pensava nisto, quando o quadro eletrónico chamou pela minha senha.
terça-feira, janeiro 17, 2017
Sempre, os livros
Tenho uma vida à volta dos livros e com livros à volta. Nasci e cresci em casas cheias deles, em férias familiares de Verão dormi por anos numa biblioteca. Contudo, li sempre muito menos do que aquilo que desejava porque faço parte de um género de leitor saltitante que, com facilidade, deixa a meio o que está a ler para passar, de seguida, a outro livro, ao qual vai acontecer provavelmente a mesma coisa. O facto de ler, preferencialmente, não-ficção ajuda a essa instabilidade e o não ter pretensões académicas auto-desculpabiliza-me. Tempos houve em que isso me angustiava, em que quase me envergonhava intimamente ao encontrar, pelas minhas estantes, alguns livros não apenas por ler mas igualmente por folhear. Coisas compradas sob um entusiasmo de momento, que "faziam falta", que alguém me dizia "imperdíveis" e que eu, descuidado, acabaria por perder. Hoje vivo lindamente com isso. Sou assim e não dou o menor passo para corrigir-me. E a prova provada de que fui inoculado com um eterno e viciante vírus dessa natureza é o facto de persistir pelo mesmo caminho, de continuar a seguir o velho lema de que só há uma coisa melhor do que ler um livro, que é comprá-lo!
Mas, há pouco, preocupei-me. Andando por ruelas de Campolide, depois de cumprimentar, numa esquina, o melhor estofador do mundo (não digo o nome, porque ele não precisa de clientela e eu preciso que ele acabe umas coisas que por lá tenho), entrei num alfarrabista que não conhecia (posso publicitar: "Ferreira & Manteigas"). Um imensidão de oferta. Há uns anos, teria saído ajoujado de coisas boas que por lá encontrei (será fácil, em Paris, comprar uma 1ª edição da "Anthologie de l'Humour Noire", de Breton?), com imensa poesia, muito apreciável na História e uma Ultramarina sem raridades mas com livros importantes. E não comprei nada! A começar por um busto da República que estava na montra e que, confesso!, funcionou como um jacobino "driver" (para utilizar um termo da "minha" indústria de retalho) para me atrair. Mas nem a nossa "Marianne" (recente demais para o meu gosto) me mobilizou! E só não saí da loja de mãos a abanar... porque levava uma pasta!
O Congresso começou?
Correu bem o Congresso dos Jornalistas? Dizem-me que por ali ficou dita muita verdade, misturada com a angústia que atravessa muita gente da profissão, sujeita a precariedade laboral e a pressões diversas, a menor das quais não será a do imediatismo das redes sociais, que, dia após dia, competem com a imprensa escrita, de uma forma para a qual esta ainda não encontrou um antídoto eficaz.
Por aquela sala terá passado, muitas vezes, uma preocupação que é central para o utente das notícias e que, por maioria de razão, o deverá ser para os jornalistas: a questão da credibilidade. A classe parece ter já consciência de que, nos dias de hoje, paira uma forte descredibilização sobre a palavra dos jornalistas, vistos, às vezes, como veículos de inverdades ou de verdades enviezadas pelos interesses, pelos preconceitos, pelos alinhamentos doutrinários ou mesmo partidários - da geringonça ou da direita. Há um pouco a sensação de que, entre truques e malabarismos, desde títulos enganosos a notícias subliminarmente cheias de opinião, estamos frequentemente a ser servidos de gato por lebre. E deve ser terrivelmente desestimulante, para os ótimos jornalistas que existem em todos os órgãos de comunicação social, terem de conviver silenciosamente com quem se comporta nos antípodas das regras que eles observam.
Sei que não deveria ser fácil ao Congresso ter outro resultado, porque foi buscada a unanimidade, mas há que admitir que, nas conclusões finais, em especial naquilo que elas calam, continua a haver muita complacência corporativa com a imprensa de faca-na-liga, para quem o crime compensa em tiragens, onde o contraditório não é observado e a absolvição reside na abertura das colunas a alguma opinião contrastante. E tenho pena, francamente, que o chamado "serviço público", pago por todos nós, queiramos ou não, não tenha sido "chamado à pedra", como devido - apenas para nos ser explicado por que razão, não devendo ser as audiências a sua determinante funcional, se comporta como os "concorrentes" e não revela muitas vezes equidade e equilíbrio.
Para além do bom caderno reivindicativo sobre as condições laborais, espero poder testar o que vai sobrar, em matéria de determinantes deontológicas, com efeito prático no dia-a-dia, do muito de bom que foi dito no Congresso. Como utente, e no que me toca, acordei ontem com alguns títulos bombásticos com escasso apoio nos factos, com as "Sónias Cristinas" nos diretos vazios e desnecessários com "corneto" na mão, com os opinadores "jornalistas", que nos não dão factos limpos mas apenas a sua dispensável opinião sobre eles (eu preciso é de factos para formar a minha opinião), com telejornais com uma duração de terceiro mundo. Acordei, aliás, com a surpresa de ver que o Congresso teve uma cobertura noticiosa nesses mesmos órgãos muito inferior à real importância do evento. Para mim - leitor, ouvinte, telespetador - o Congresso verdadeiramente ainda não começou.
segunda-feira, janeiro 16, 2017
Maria Cabral
Era uma morena sardenta, que um dia alguém trouxe para o cinema novo que, por cá e em boa hora, tinha sido aprendido na Cinemateca de Paris, olhando o neorealismo italiano e a "nouvelle vague" francesa, vendo os americanos que importava ver, lendo os Cahiers e discutindo no Vává. Tinha no olhar uma rebeldia melancólica, um "mal de vivre" que ia bem com uma geração em transição, do rock à guerra colonial, pides pelas esquinas, muitos copos e alguma esperança.
Maria Cabral morreu, dizem, com 75 anos. Em Paris, como se deve morrer. Para mim, desculpem lá, ela terá sempre aqueles 20 anos.
Maria Cabral morreu, dizem, com 75 anos. Em Paris, como se deve morrer. Para mim, desculpem lá, ela terá sempre aqueles 20 anos.
domingo, janeiro 15, 2017
O oito e o oitenta
Portugal é um país do oito e do oitenta. Durante anos, por cá, atravessar uma passadeira de rua era uma aventura. Nos guias internacionais sobre Portugal, os turistas eram advertidos para os riscos em que incorriam, caso partissem inocentemente do princípio de que os automóveis parariam à sua passagem. Ainda me recordo da admiração com que, na minha juventude, se falava das "zebra crossing" das cidades britânicas, com o respeito pelos peões como marca civilizacional.
O nosso país mudou. Embora alguns energúmenos ao volante (mas também os ciclistas, que agora estão em odor urbano de santidade, que os autoriza a incomodar-nos sem consequências pelos passeios) continuem a não respeitar as passadeiras, parece cada vez mais interiorizado o salto de civilização que representa o respeito por quem atravessa, no devido lugar, as nossas ruas.
Mas, em Portugal, com facilidade se passa de um extremo ao outro. Na generalidade dos países desenvolvidos, quando um peão pretende atravessar uma passadeira, há um anúncio físico dessa pretensão, seja por um assomar cuidado à rua, seja mesmo por um sinal de mão. E há, em geral, alguma delicadeza perante o facto do automobilista ter de abrandar ou parar, sendo vulgar que a travessia pedonal se faça tendo em atenção o facto do movimento das viaturas ser mais difícil de suspender do que o estacar, por um ou dois segundos, por parte do peão.
Entre nós, não senhor! Qualquer pessoa acha que o simples assomar, em passo sereno, mesmo sem olhar para quem vem, deve obrigar ao estacar imediato dos automóveis. E vemos cidadãos em conversa ao telemóvel, descuidados, outros arrastando-se com visível pesporrência, olhando, sobranceiros, os automobilistas. Outros ainda, à conversa mole, às vezes parando a meio para sublinhar um argumento. E cada vez se veem mais jovens a proceder assim.
Volto ao que disse no início: entre nós é o oito ou o oitenta. Ou melhor, pouca gente compreende que há sempre deveres, pelo menos cívicos, a respeitar por parte daqueles que têm direitos.
sábado, janeiro 14, 2017
Os riscos e as incoerências
Até 2011, muito pouca gente em Portugal tinha ouvido falar da TSU e dos seus critérios. Foi nos debates televisivos Sócrates-Passos que o tema surgiu, ainda um tanto críptico, para os não iniciados. Só um ano e tal depois, quando as principais malfeitorias governativas deixaram de ter como (cómodo) alvo de estimação a Função Pública e ameaçaram os assalariados privados, o país se deu ao trabalho de vir para a rua protestar (e travar) um certo modelo de TSU, que os seus "criadores" confessaram mais tarde ter surgido numa converseta numa viagem Lisboa-Bruxelas - o que permite hoje avaliar o sentido de responsabilidade de quem andava então pelo Campo das Cebolas. Nem mesmo as entidades patronais se aventuraram a abençoar essa "trouvaille". A descida da TSU para o patronato, paga pelos assalariados, acabou por cair e isso foi também o princípio da queda de Vitor Gaspar.
A TSU volta agora à baila. O governo PS quis agora introduzir um alívio à carga patronal, como compensação da aceitação da subida do salário mínimo. No Rato, sabia-se de ginjeira que a doutrina anti-empresarial endémica do PC e do Bloco nunca permitiriam o seu apoio à primeira medida, empochada que ficava a segunda. Assim, só com o apoio da direita ela poderia passar.
Perante o acordo obtido em concertação social, o PSD esteve inicialmente silencioso, tendo mesmo mandado uma figura de segunda linha dizer, publicamente, que concordava com este alívio ao patronato, onde reside o seu "fond de commerce" histórico. Mas, depois, não resistiu e mudou de ideias. Entre a lógica de um partido com sentido de Estado - apoiar aquilo com que está programaticamente de acordo e rejeitar aquilo que contraria os seus princípios - há (neste) PSD uma terceira via, que é fazer tudo quanto possa prejudicar o governo, seja essa atitude coerente ou não com aquilo que sempre pensou e disse. Mesmo que isso aliene quem tradicionalmente o apoia.
Ao PS, nesta corda-bamba em que anda, era tempo de fazer um gesto positivo para o setor empresarial, Ou conhecia mal (este) PSD ou resolveu correr o risco de confrontar politicamente a oposição com a respetiva incoerência. Convenhamos que foi uma tentativa um tanto "ligeira", numa questão desta importância. Passos Coelho sai pessimamente disto, mas António Costa também vai pagar um preço.
Resta Marcelo Rebelo de Sousa, que revelou o seu contentamento com o anterior acordo e a quem, ao que se sabe, Passos Coelho não alertou desta sua atitude obstrucionista no almoço da passada semana em Belém. Fica provado que, às vezes, "não há almoços grátis" para quem os oferece.
Armstrong-Jones e Margarida
Leio agora que morreu Anthony Armstrong-Jones. Muitos não saberão quem é, pelo que talvez valha a pena começar por dizer que foi um excelente fotógrafo, em especial como retratista. Por quase duas décadas, período em que se tornaria mais conhecido, foi casado com a princesa Margarida, irmã da raínha Isabel II.
Lembro-me bem do tempo em que os amores da princesa Margarida eram, entre nós e não só, objeto de elevado interesse mediático e social. Nos anos 50, o mundo emocionou-se com o facto de ter sido recusada, pelo governo e pela igreja anglicana, autorização para o seu casamento com um oficial da Royal Air Force, o major Peter Townsend, por este ser divorciado. Recordo conversas ouvidas na infância, em que as pessoas se dividiam muito sobre o assunto.
Armstrong-Jones terá sido, assim, para a princesa, um "second best". O casamento durou 18 anos e Margarida, ainda durante e depois disso, viria a ter uma vida sentimental bem agitada, "to say the least".
Só a vi ao vivo uma vez, menos de uma década antes da sua morte. Foi num jantar, na embaixada de Portugal em Londres, em 1993, durante a visita de Estado de Mário Soares ao Reino Unido, onde esteve presente com a rainha. Não lhe dei muita atenção, a qual, posso confessar agora, estava concentrada em Diana...
Mas lembro-me bem de um episódio, semanas antes, quando escolhíamos, com o "caterer", as bebidas a oferecer a anteceder a refeição (durante e após esta, as bebidas foram portuguesas). Ele sugeriu champanhe, bebida preferida de Isabel II. Aceitámos a sugestão e ouvimo-lo então repetir, em voz alta, enquanto tomava nota: "So it will be champagne... and "Famous Grouse" for princess Margareth". Estive quase tentado em pedir um para mim!
Comecei a escrever sobre Armstrong-Jones - ou Tony como lhe chamava a "popular press" ou Lord Snowdon (depois de "feito" assim pela raínha) como era referido pelos "quality papers" - e acabei a falar nos conhecidos pecadilhos etílicos da princesa.
É assim de justiça, para equilibrar a atenção, publicar uma excelente fotografia de Margarida tirada pelo seu marido.
sexta-feira, janeiro 13, 2017
O trigo e o resto
Os jornalistas portugueses estão reunidos em congresso. A profissão atravessa momentos difíceis, com redações depauperadas, muita gente com vínculo precário, salários em geral baixos, com o futuro de muitos órgãos de informação em grave risco.
Quero crer que este encontro, em que vejo envolvidos grandes profissionais do setor, é um importante momento de reflexão prospetiva sobre o que poderá vir a ser a comunicação social portuguesa nos próximos anos. Desejo, como utente, que possam chegar a boas conclusões, que as possam tornar operativas, com consequências concretas na melhoria das suas condições de trabalho, mas também com efeitos na qualidade do produto de que diariamente são obreiros. Porém, e sem querer ser pessimista, pergunto-me se ainda irão a tempo.
O jornalismo passou, nos últimos quinze anos, por um desafio a que claramente não soube dar adequada resposta: as redes sociais. Qualquer bicho careta, com um blogue, uma página de facebook ou uma conta de twitter, lança para o ar “notícias”, sem um mínimo controlo de veracidade dos factos, com estes quase sempre embrulhados em opiniões de qualidade duvidosa. A comunicação social, em lugar de se distanciar, de reforçar o seu papel de referente da verdade, da precisão e do rigor, deixou-se embalar por essa moda. E a que é que assistimos ? Vimos e vemo-la a citar preguiçosamente a blogosfera e as graçolas do twitter, a deixar-se guiar pelas pistas lançadas na internet.
Espantamo-nos também ao observar jornalistas a quererem ser vistos como isentos e neutrais nos textos elaborados na sua profissão e, ao lado, a subscreverem opinião enviezada nas redes sociais, num triste modelo de “Dr. Jeckill and Mr. Hyde”. A primeira vitória de um jornalismo que se pretenda de qualidade passa pela total autonomização face às redes sociais, resistindo ao imediatismo destas, praticando por sistema o “fact-checking”, confrontando fontes e ouvindo partes. O utente da comunicação social, se esta quer ter um futuro, tem de reganhar o velho estatuto do “é verdade, porque vem no jornal”. É também necessário criar, com urgência, um visível “firewall” entre o que são os factos, reportados numa notícia, com as várias posições descritas de forma neutral, e o que é a opinião.
Nos últimos anos, assistimos a uma saudável quebra do monolitismo corporativo que parecia federar a classe jornalística. Vemos hoje profissionais respeitados dar mostras de incómodo perante práticas de colegas, em televisões ou em jornais. Este é o caminho, separar o trigo do resto e denunciar, em alta voz, quem está a prejudicar a imagem da profissão. Espero, sinceramente, que ainda possam ir a tempo.
quinta-feira, janeiro 12, 2017
Diplomacia
Agora que Mário Soares partiu, gostava de deixar dois sublinhados e uma nota, no tocante à diplomacia portuguesa.
O primeiro para sublinhar que o Ministério dos Negócios Estrangeiros lhe ficou a dever uma atitude de grande sentido de Estado, quando, em 1974, assumiu a pasta de ministro dos Negócios Estrangeiros. Perante algumas vozes que, à época, defendiam o saneamento de grande parte dos quadros diplomáticos, que disciplinadamente tinham servido a política do governo precedente, Soares teve o bom senso e a prudência de tratar esse assunto com elevado sentido de medida e de justiça. A "carreira" retribuiu-lhe e provou, no novo Portugal democrático, que tinha um sentido profissional muito elevado.
O segundo sublinhado é para destacar algo que raramente é mencionado. Foi Mário Soares quem, durante o seu tempo como ministro dos Negócios Estrangeiros, abriu a carreira diplomática às mulheres, que até aí estavam anacronicamente impedidas de exercer tais funções. O primeiro concurso em que entraram mulheres (o mesmo em que eu também acedi ao MNE) teve lugar em 1975.
A nota tem a ver com a despedida de Mário Soares. Foi o Protocolo de Estado, sedeado no ministério dos Negócios Estrangeiros, quem teve a responsabilidade essencial na organização dos funerais de Estado do antigo presidente. Para quem esteve atento, tratou-se de um trabalho impecável, rigoroso, feito com grande eficácia, onde a necessária solenidade nem por um momento foi tocada por qualquer gongorismo formal excessivo. Quase quatro décadas da "casa" ensinaram-me bem o que são as dificuldades de uma tarefa desta dimensão, em que nenhuma falha seria perdoada e teria uma visibilidade ímpar. Por isso, como diplomata, senti-me orgulhoso pelo trabalho levado a cabo pelos meus colegas, naturalmente associados a outros atores oficiais e privados imprescindíveis. Uma especial palavra é assim devida ao embaixador António Almeida Lima, chefe daquela excelente "orquestra".
quarta-feira, janeiro 11, 2017
O desastre
Ontem, alguém me dizia que olhamos para Donald Trump e para a América que com ele aí virá com a curiosidade quase mórbida de quem olha para a cena de um desastre. O somatório de sinais negativos é tão forte, a aproximação da figura à sua caricatura mais primária começa a ser tão evidente que a hipótese do pior se torna plausível. Por muita simpatia que possamos ter pela América - e eu tenho muita -, preocupa-me, essencialmente, o efeito disruptor que as ações da futura presidência Trump possam vir a ter pelo mundo, em especialmente por aquele cujo futuro imediato diretamente me respeita. Se acaso a Europa fosse outra, se ela estivesse noutro estado de afirmação e de capacidade coletiva de decisão, enquanto poder com peso à escala global, eu estaria menos preocupado. Assim, estou muito. E, como nos desastres, só me resta olhar. Quase apetece crismar Trump com o nome de um clássico restaurante lisboeta: "The great American disaster"...
terça-feira, janeiro 10, 2017
Cemitério dos Prazeres
O cemitério chama-se "dos Prazeres" e tem esse bizarro nome, para um lugar de convocação da tristeza, porque aí havia uma quinta no meio da qual se erguia uma ermida a Nossa Senhora dos Prazeres.
O cemitério dos Prazeres está ligado à minha memória de infância. Na minha família lisboeta, após a morte de um primo muito jovem, os pais, que lhe haviam erguido um jazigo nos Prazeres, tinham-se mudado propositadamente para uma casa quase em frente ao cemitério, de onde diariamente - e não estou a exagerar - iam visitar o lugar onde estava o depositado o filho. Estão hoje por lá todos, incluindo, desde há pouco mais de uma semana, um outro irmão.
Poucos meses depois de ter vindo viver para Lisboa, em 1968, voltei ao Prazeres. Era uma romagem por ocasião do funeral de António Sérgio. Estavamos os início de 1969, um ano que ia ser muito importante na vida política em Portugal, em que a "abertura" que a chegada ao poder de Marcelo Caetano tinha prenunciado revelaria toda a sua falsidade. Era o funeral de António Sérgio, um intelectual e pedagogo humanista, cuja presença no eixo da oposição não comunista fora marcante por muitas décadas. O ato redundou num momento público de expressão política democrática, com repressão policial associada. Para mim, seria uma espécie de "batismo de fogo" na agitação política lisboeta.
Nesse dia 25 de janeiro de 1969, notava-se que no centro da manifestação - que, de momentos de silêncio tenso, passou subitamente a palavras de ordem anti-regime, com o hino nacional à mistura, a anteceder o brutal ataque da polícia - havia um núcleo de pessoas que me parecia dominar a cena. Os amigos que comigo iam ajudaram-me a nele identificar algumas figuras. Ali estava Mário Soares, regressado escassos meses antes da sua deportação em S. Tomé. Ao seu lado, ficou-me a imagem de uma mulher ainda jovem, de cabeça bem erguida, com ar determinado, num corpo pequeno: era Maria Barroso.
Há menos de dois anos, fomos acompanhar Maria Barroso aos Prazeres. Hoje será a vez de Mário Soares. Agora, graças também a eles, já não haverá por lá polícia que nos impeça de saudar a memória dos mortos que queremos honrar.
segunda-feira, janeiro 09, 2017
Nós e a Índia
A circunstância, naturalmente infeliz, da morte de Mário Soares coincidir com a viagem oficial do primeiro-ministro português à Índia não tem permitido destacar a importância objetiva desta última.
A Índia é a maior democracia do mundo. Um em cada quatro votos em eleições livres à escala global é expresso por um eleitor indiano. O seu setor económico privado é de uma grande pujança e a Índia, entre as chamadas grandes economias emergentes, é a que mostra hoje maior vitalidade. As tensões políticas que, por vezes, abalam setores da sociedade indiana não nos devem fazer esquecer que ocorrem sempre no seio de instituições de grande solidez, marcadas por um forte sentido estratégico nacional.
Apesar de todos os esforços feitos no passado, nunca foi possível garantir uma relação económica profunda entre Portugal e a Índia. Passado o trauma da "perda" do Estado da Índia (a segunda peça do império colonial a cair, depois do Brasil), Mário Soares promoveu o estabelecimento de relações diplomáticas com Nova Delhi. Não obstante os esforços que têm sido feitos ao longo destas décadas - e António Costa viaja acompanhado pelo seu ministro da Cultura, Luis Castro Mendes, que foi um excelente embaixador na Índia - os resultados até agora obtidos ficam aquém do esperado.
António Costa é um cidadão português que assume com orgulho a sua origem indiana. A presença do PM português no congresso da diáspora indiana foi um gesto de inteligência política, num momento em que Nova Delhi começa a ponderar as consequências que o Brexit acarretará para um imenso país que tem uma inserção europeia que se faz muito através do Reino Unido, com que comunga a Commonwealth. E a Índia nunca esquece que foi Portugal, durante a sua presidência europeia em 2000, que promoveu o seu estatuto de "parceiro estratégico" com as instituições europeias - como me referiu, com ênfase, há semanas, a nova e dinâmica embaixadora que aquele país destinou para Portugal.
Por todas as razões, este é, politicamente, o momento certo para Portugal fazer este novo "forcing" com a Índia e, volto a dizê-lo, a origem indiana de António Costa pode não ser aqui um fator despiciendo, se bem se atentar na importância que as autoridades indianas têm vindo a dar a esse facto.
Por isso, neste preciso tempo, creio ser ocasião de evocar a grande figura da cultura que se chamou Orlando da Costa, pai do atual primeiro ministro e do jornalista Ricardo Costa, um português de origem indiana que é um magnífico exemplo da nossa diversidade.
Conheci Orlando da Costa no final dos anos 60 e inícios de 70. Cruzámo-nos por diversas vezes em casa de Carlos Eurico da Costa e de Maria Lúcia Lepecki, em grupos onde estavam José Cardoso Pires, Maria Velho da Costa, Jacinto Batista, Alberto Ferreira, entre muitos outros. Tenho dele a imagem de uma figura interessantíssima, de um homem suave, sorridente, com imenso humor, de uma cultura transbordante.
Acho que António Costa se deve ter lembrado muito do seu pai nestes seus dias da Índia. E ele merece isso.
domingo, janeiro 08, 2017
Daniel Serrão
Os mortos não são como os comboios nas passagens de nível: um não esconde o outro.
Imagino que o professor Daniel Serrão, que hoje desapareceu, nunca tivesse votado em Mário Soares. No entanto, embora oriundo de uma área muito diferente de pensamento filosófico e político, não deixava de representar um relevante setor nacional, integrante do nosso património intelectual como país.
Daniel Serrão, nascido em Vila Real, era presidente do Conselho Superior da AGAVI, uma associação sem finalidades lucrativas criada no Porto para a defesa dos produtos regionais, que também faço parte desde 2012. (Na imagem, Daniel Serrão utiliza a gravata da Confraria do Vinho do Porto, onde também éramos confrades).
No dia em que ambos tomámos posse na AGAVI, na Alfândega do Porto, recordei-lhe um episódio passado no Lar Universitário Gomes Teixeira, na rua da Torrinha, em 1966. Queixas por atos de indisciplina tinham obrigado a Reitoria a uma intervenção de emergência. Daniel Serrão reuniu então com os utentes do lar, para tentar alguma impor alguma acalmia. "Não me diga que o meu amigo era um deles?! Nunca, na história da universidade do Porto, se viu tanta anarquia num lar!", disse-me.
Entre gargalhadas, revelei-lhe que, nesse ano, fiz uma única cadeira do meu curso de Engenharia Eletrotécnica. Àquele ritmo, aliás, estaria a acabá-lo mais ou menos agora, se entretanto não tivesse mudado de agulha...
Deixo o meu pesar pela morte do professor Daniel Serrão.
Viver com a diferença
Uma "amiga" no Facebook deu hoje conta do seu desagrado, no aeroporto de Marselha, por se ver rodeada de "magrebinos".
Reconheço o direito à estranheza: eu próprio, aqui há alguns anos, tive a mesma sensação, numa praça de Marselha. Reconheço mesmo o direito ao desconforto, porque nem todos estamos preparados para viver com a diferença. Não reconheço o direito ao desagrado, e deixei-lhe este comentário:
"Se tivesse chegado à Gare d'Austerlitz nos anos 70 sentir-se-ia rodeada dos "magrebinos" de então, idos do Minho e de Trás-os-Montes. Com a diferença de que muitos destes, com ar de magrebinos, nasceram já em França, são tão franceses como a "madames" loiras do XVIème. Quem teve impérios e não quer ir para o "bâtiment" ou para o "ménage" paga o preço. "Salamun alaikum!"
sábado, janeiro 07, 2017
Despedida de Mário Soares
O corpo pesado estende-se pela cadeira, por detrás da secretária. A custo, insiste em levantar-se. Para me abraçar, para agradecer a visita. O seu olhar perde-se naquela sala tão cheia de recordações, de histórias, de História. As palavras saem-lhe com alguma dificuldade, quase automáticas, sempre amáveis. Suscita os temas que o mobilizam, as emoções e as certezas últimas que lhe dão alento à vida, mas também as tristezas que o abatem. Escolho bem as minhas palavras, mas não sei se são as certas. Relembro tempos comuns, mas não tenho a certeza de me estar sempre a seguir. Procuro assuntos que o façam reagir, agarra alguns, deixa passar outros em silêncio. Os nomes fogem-lhe, vive já com essa realidade, organiza o discurso em torno desses espaços vazios. Pergunta-me pela vida, mais para se orientar do que por real interesse. Dou-lhe novidades que, há pouco tempo, seriam para ele banalidades. Instalam-se entre nós as pausas, cada vez mais longas. Fico muito triste, sem saber o que dizer. Despeço-me com a quase certeza de ser aquele o nosso adeus.
(Escrevi este post em 4 de agosto de 2015. O amigo, que então não nomeei, era Mário Soares. Morreu há pouco. O encontro que relatei foi a nossa despedida)
Mascarenhas Barreto (1923-2017)
Li hoje duas notas necrológicas, dando conta da morte de Augusto Mascarenhas Barreto. Tinha 94 anos e várias vezes me tinha interrogado se ainda era vivo. Ficou conhecido pela opinião pública pelo livro em que defendeu a tese de que Cristóvão Colombo era português, nascido na alentejana povoação de Cuba.
Conheci-o em 1968, quando decidiu fazer uma licenciatura em Ciências Sociais e Política Ultramarina, no ISCSPU. Usava então um chapéu de abas muito largas, que dava à sua figura de elevada estatura um porte curioso, complementado pelo inevitável cachimbo. Naquela casa da Junqueira, onde ainda preponderava Adriano Moreira (Marcelo Caetano afastá-lo-ia no ano seguinte), o ambiente político, embora a certa altura muito tenso, era curiosamente bastante dialogante.
Mascarenhas Barreto era um conservador e, como tal, fazia parte de um setor com que eu não me identificava. Mas era, sem a menor dúvida, uma personalidade muito interessante para se falar, pelo que me recordo de grandes charlas na "sala verde", onde procurávamos motivos de conversa que passassem para além dessas tensões políticas. Também os 25 anos de diferença que nos separavam não tinham criado nenhuma distância insuperável entre nós.
Perdi-o de vista e só em 1974 voltei a encontrá-lo. Na manhã de 26 de abril, na RTP. Eu desconhecia que Mascarenhas Barreto trabalhava por lá (nenhuma das notas biográficas que li menciona esse facto) e foi com espanto que deparei com ele, nesse momento muito tenso em que era feita uma primeira triagem de "quem entra e quem não entra" na televisão que tinha sido o aparelho de imagem da ditadura. Demos um abraço. "Ó colega, não esperava vê-lo por aqui!", disse-me ele, olhando a minha farda militar. Já não sei o que respondi mas lembro-me de que o Mascarenhas Barreto, nesse dia, teve acesso à RTP. Depois, nunca mais o vi.
Mário Castrim
Há pouco, numa troca de mensagens, lembrei-me de Mário Castrim. Castrim foi casado com a escritora Alice Vieira e morreu há 14 anos. Foi ele próprio escritor e jornalista. Autor de excelentes obras para crianças, escreveu teatro e editou livros de ensaios. É um nome que, nos dias de hoje, merecia ser mais conhecido do que é. E é pena, porque o país da Cultura deve bastante a Mário Castrim, pessoa com quem nunca me cruzei mas que sempre admirei.
Mário Castrim, pseudónimo de Manuel Nunes da Fonseca, ficou talvez mais conhecido por fazer crítica de televisão, em especial no "Diário de Lisboa". Nos dias de hoje, com montanhas de canais acessíveis, os mais novos espantar-se-ão talvez que essa função tivesse alguma relevância entre nós. Mas tinha, e muita, nos tempos em que havia um único canal, a oficial e oficiosa RTP, fautora da imagem que o regime queria dar de si mesmo, que cuidava dela com um desvelo proporcional ao jeito que lhe dava como fator condicionante da opinião pública.
Todos os dias, o DL trazia-nos o "Canal da Crítica", onde Castrim, num português de lei, nos deliciava com "innuendos" e artimanhas estilísticas, com vista a dar a volta à censura, comentando programas, apreciando conteúdos, às vezes com notas bem à margem daquilo que comentava. Era um regalo conseguir ler por entre as linhas de Mário Castrim, mesmo que soubéssemos que, aqui ou ali, o "lápis azul" dos coronéis da rua da Misericórdia tinha feito os seus estragos. Mas até algumas ausências pressentidas de texto chegavam a ter significado.
(Esses eram "bons tempos"? Uma ova! Eram tempos sinistros e o facto de, por vezes, os referirmos com leveza e ironia deve ser apenas visto como uma forma de exorcismo. Que isto fique muito claro!).
Mas Castrim era muito mais do que um mero crítico de televisão, sendo esse embora um terreno em que nunca teve um émulo à sua altura. Era um intelectual e um homem das letras, que orientou o magnífico DL Juvenil, um espaço do "Diário de Lisboa" que, num tempo em que não havia blogues nem facebook, permitia a publicação de textos de conteúdo literário a muitos jovens - alguns que foram e são hoje figuras consagradas da nossa Cultura.
Politicamente, Mário Castrim era, creio, militante comunista e, com a Revolução, o seu radicalismo, algo extremado, veio ao de cima. Alguma da unanimidade de que até então usufruía nos meios oposicionistas veio a reduzir-se nesses anos "da brasa", como aliás aconteceu com muito boa gente. A certo ponto, alguém, com graça, apodou-o mesmo de "sectário-geral"...
Castrim era magnífico na polémica, mesmo antes do 25 de abril. Recordo-me bem de duas confrontações que teve. Uma com Artur Portela Filho, com uma das peças a ter o título genial de "Ó Artur! Ó Portela! Ó Filho!". Outra, bem pesada, com Luiz Francisco Rebello, que creio chegou a meter ameaça de bengalada. E Castrim usava uma!
Regresso ao ponto em que comecei. Provavelmente, muito poucos, nos dias de hoje, se recordarão já de Mário Castrim. Entre os outros, os mais antigos, alguns lembrá-lo-ão sob um olhar bem diferente do meu, quiçá mesmo oposto. Mas esta é a "graça" da democracia da opinião, que Castrim, com a sua pena acerada na pele tosca da ditadura, também nos ajudou a construir.
sexta-feira, janeiro 06, 2017
Dia de Reis
Os amigos monárquicos que hoje felicitei, pela passagem do dia de Reis, não se mostraram muito efusivos.
Samodães
Este bilhar é em Samodães
Ao olhá-lo, na noite de ontem, lembrei-me do Olívio e do Chico Menezes, desaparecidos príncipes do taco. Mas o bilhar deles era "livre". E o pano era verde. E era no Excelsior. E não eram permitidas "massés". E cada rasgão do pano custava 50 escudos (estava afixado na parede). E o Manuel Rato servia às mesas café de Timor. E, em Samodães, nesse tempo, ninguém jogava bilhar. Se calhar, nem matraquilhos.
Verdade seja que, também a mim, por essa época, me não passava pela cabeça vir alguma vez dormir a Samodães. Onde?
Lições aprendidas
Há
anos, mantive longas horas de conversa com um diplomata espanhol, sobre as
relações entre os dois países. Confrontámos visões e, como seria expectável,
detetámos imensas diferenças.
Ele
revelou-me que o nosso país, por muito tempo, após a estabilização do
franquismo, era quase um “não assunto” para a Espanha contemporânea. Portugal
estava ali, ao lado, mas a sua relevância era muito limitada para um país que
lançava a sua mirada externa essencial por cima dos Pirinéus.
Essa
conversa teve lugar ainda antes da entrada dos dois Estados nas instituições
europeias, mas já depois da democracia estar instalada na península. Esse era
um período em que, no nosso lado, se tinha assistido à atenuação de muitas das
clássicas desconfianças históricas face à natureza do poder em Madrid. Mas não
escondi a esse amigo que, não obstante essa crescente leitura benévola, se
mantinha, em setores portugueses – politicos, diplomáticos e económicos -
alguma reserva sobre a íntima atitude da Espanha face a Portugal.
Com
a passagem dos anos, tive o ensejo de trabalhar mais de perto alguns dos
terrenos residuais da nossa tensão bilateral: os comandos militares da NATO, a
regulação dos rios comuns, os conflitos da pesca nos limites fronteiriços, o
tratamento administrativo dado às empresas portuguesas, as divergências sobre
as acessibilidades rodoviárias e ferroviárias, as diferentes posições nas
questões institucionais e de gestão de poder dentro da União Europeia, etc.
Das
“lições aprendidas”, expressão utilizada em certos meios a propósito do
conhecimento que se retira da experiência acumulada, e em jeito de caricatura,
eu diria que a Espanha está ao lado de Portugal, nomeadamente no quadro
europeu, quando os nossos interesses nacionais lhe são indiferentes ou se somam
aos seus, ou quando o eventual reforço da posição portuguesa pode servir a sua
leitura “ibérica” de poder.
Mas
Madrid assume, com frequente e infeliz facilidade, em ciclos politicos contrastantes,
alguma arrogância face ao vizinho peninsular, implicitamente explorando a sua
fraqueza relativa, quando interesses seus despontam como minimamente evidentes.
Só com muita dificuldade se vê, nesses casos, a Espanha fazer um mínimo esforço
de acomodação.
Há
uma coisa que me parece óbvia: com este seu regular comportamento, a Espanha
revela alguma imaturidade para afirmar um estatuto de país “grande”, por
raramente conseguir assumir uma flexibilidade estratégica em face de dossiês
bilaterais complexos. E não só com Portugal.
Um
dia, escrevi no “El País” um artigo sobre as relações peninsulares, que
intitulei “Uma cultura de vizinhança”, que então parecia estarmos em vias de
criar, assente na progressiva geração de uma confiança mútua. Sinto que essa
confiança continua a existir, mas, tal como nas relações entre as pessoas, é
algo que, quando se erode custa bastante a recuperar. Estou a falar de Almaraz?
Estou.
quinta-feira, janeiro 05, 2017
Brexit news
Ao longo de quase quatro décadas como diplomata, tendo passado alguns anos em Londres e alguns mais a discutir à mesa negocial com os britânicos, ganhei um profundo respeito técnico pela capacidade diplomática do Reino Unido. Por muito indefensável que as suas posições fossem, por muito embaraçados que os funcionários britânicos parecessem ao assumi-las, a verdade é que a máquina do "Foreign and Commonweath Office" (as mais das vezes, dizemos simplesmente "Foreign Office" e o nome completo do MNE britânico tem algo de politicamente relevante) me deu sempre a ideia de interiorizar uma linha de orientação clara, transmitida e cumprida de alto-a-baixo de toda a sua estrutura de funcionários.
Quem passou por Bruxelas recorda-se de discussões intermináveis, com os britânicos frequentemente isolados, mas a serem teimosos até ao fim, às vezes por uma vantagem negocial residual, na maioria dos casos explorando a regra da unanimidade para baterem o pé - podendo fazê-lo graças ao peso político que o seu país tinha no contexto comunitário. Mas, sempre, com excelente conhecimento dos dossiês, em "trade-off" permanente entre vários assuntos, roçando às vezes um insuportável cinismo. A minha admiração profissional pela diplomacia londrina não se estende, necessariamente, a uma automática leitura positiva sobre a legitimidade daquilo que defendem como seus interesses. Nem sequer à lisura de meios utilizada para os defender.
Vem isto a propósito da demissão do embaixador britânico junto da União Europeia, ocorrida há dois dias. Talvez mais importante do que o facto em si é a circunstância de ter ficado claro que o gesto se deve ao reconhecimento de que um excessivo voluntarismo político, que não tem em devida conta a realidade no terreno negocial, pode estar a conduzir o Reino Unido a um sério impasse no futuro do seu processo de abandono das instituições de Bruxelas. Dir-se-á que isso é um problema deles e que nós, do lado de cá da Mancha, até nos devemos congratular com estes dissídios intrabritânicos.
Não estou nada de acordo. Se a futura separação do Reino Unido com a Europa vier a tornar-se litigiosa, a probabilidade da questão vir a correr mal para os dois lados é imensa. Em termos negociais, a experiência mostrou-me que ter um dos lados fragilizado internamente está longe de ser uma vantagem, cumula em geral radicalismos e reduz fortemente a capacidade de compromissos e recuos.
quarta-feira, janeiro 04, 2017
"Digo eu, não sei..."
A convite do seu diretor, José Carlos de Vasconcelos, ocupo hoje a última página do "JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias" com um diário a que dei o título de "Digo eu, não sei..."
Os leitores deste blogue e da minha página de Facebook não devem estranhar se por lá encontrarem, eventualmente noutras formas, retalhos de coisas já lidas. Cada suporte tem leitores diferentes e a imaginação tem limites.
De toda a forma, quem tiver curiosidade, pode ler o texto aqui.
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