Olá, Sérgio
Cheguei há pouco ao sul da Anatólia, aqui na Turquia, não muito longe da Síria de que tanto me falavas com entusiasmo. De repente, lembrei-me que terá sido mais ou menos por aqui, no final dos anos 80, que vinte e tal facadas traiçoeiras te calaram a alegria. Foi num dos meus mais tristes Natais, em Vila Real, aquele dia frio em que te fomos deixar para sempre em Santa Iria.
Ainda tenho, entre algumas outras, uma carta tua, enviada meses antes, de Ancara, em que me falavas do teu cansaço com o posto onde te mantinham, para além do razoável, muito contra a tua vontade. Lembro-me de me teres dito que te apetecia concorrer a Marselha e de eu te desaconselhar essa opção, já nem sei bem com que argumentos. E de não ter tido artes para te tirar da Turquia, coisa que nunca me perdoei. Não esqueço também o nosso último almoço, na Laurentina, com a Mi Allegro, a quem tu davas conselhos para a vida afetiva - logo tu, Sérgio!
Já passaram muitos anos, mesmo muitos, desde os tempos em que desembarcaste em Vila Real, vindo dos "States", com o melhor inglês da cidade, sempre agitado e agitador, numa terra pouco dada a acomodar quem não estava "nem aí" para se acomodar. Foram os tempos comuns no liceu de Vila Real, onde só o teu entusiasmo, e a paciência bracarense do professor Ladislau, conseguiu levar-nos a montar o fantástico "Centro de Estudos Geográficos", onde, com o Elísio Neves, o Zé Barreto, o Carlos Leite e alguns outros, soubemos dar a volta à rotina desses dias algo baços, numa cidade que - confessemos! - era então uma grande chatice. Ainda guardo exemplares do "Meridiano", órgão do Centro, com textos que hoje me fazem sorrir.
Para ti, que sempre foste um apressado dos tempos, esse foi apenas o início de um percurso trepidante, que te levou à universidade de Coimbra, a dar aulas, a ser preso pela Pide, a te meteres na aventura da cooperação na jovem Guiné-Bissau. E, finalmente, sob o meu conselho, a entrares para a carreira diplomática, onde foste uma promissora estrela, tão efémera como acabou por ser a tua vida. Tudo isso feito sob o olhar bom, sorridente e deliciado, da tua mãe, a âncora mais fiel de uma existência em que, sem outras baias que não fossem as do usufruto obsessivo do instante, testaste todos os limites e abanaste todas as convenções. Até àquela noite.
Para ti, que sempre foste um apressado dos tempos, esse foi apenas o início de um percurso trepidante, que te levou à universidade de Coimbra, a dar aulas, a ser preso pela Pide, a te meteres na aventura da cooperação na jovem Guiné-Bissau. E, finalmente, sob o meu conselho, a entrares para a carreira diplomática, onde foste uma promissora estrela, tão efémera como acabou por ser a tua vida. Tudo isso feito sob o olhar bom, sorridente e deliciado, da tua mãe, a âncora mais fiel de uma existência em que, sem outras baias que não fossem as do usufruto obsessivo do instante, testaste todos os limites e abanaste todas as convenções. Até àquela noite.
Nunca se soube, nem se saberá ao certo, o que aconteceu nessa ocasião trágica, aqui na Anatólia. Como dizem os juristas, "a doutrina divide-se" e eu fiz parte de uns poucos que, contra a vontade de alguns outros - à frente de quem esteve, quem havia de ser?, a nossa amiga Ana Gomes, que tu me havias apresentado um dia - nunca se mostraram excessivamente empenhados em escrutinar o rigor dos factos ocorridos, talvez porque o facto maior foi sempre a tua morte, e essa foi a tristeza definitiva que nenhuma revelação sensacional poderia reverter. E porque, quem sabe se erradamente, sempre fui de opinião de que a verdade oficial que, inevitavelmente, seria vendida e mediatizada, só iria contribuir para agravar a tristeza de quem te estava mais próximo.
É tudo quanto hoje te quero dizer, Sérgio, aqui da Turquia, um país a que sempre te associo. Se acaso há algum lugar por onde possas andar, só tenho uma certeza: estarás a agitar as águas e os espíritos. Recebe um abraço saudoso do
Francisco
ps - não te falo da política caseira porque, conhecendo-te, "passavas-te" se eu te contasse como as coisas andam por lá, por Portugal. Mas, mesmo assim, felicito-te pelos resultados em Setúbal, em Évora, em Loures ou em Beja, entre outros lugares onde os teus (o "partido", como tu dizias) mostraram a sua consabida arte de bem cavalgar todas as crises.