Ontem, Giorgio Napolitano, com os seus 87 anos, aceitou, bastante contra a sua vontade e apenas para ajudar a resolver a grave crise política que atravessa o seu país, reassumir a chefia do Estado.
Em 1953, Napolitano foi deputado pela primeira vez, pelo Partido Comunista Italiano. Muitos anos depois, já como membro dos Democratas de Esquerda, foi presidente da Câmara dos Deputados, ministro do Interior, senador vitalício e presidente da República italiana, neste caso por nove anos.
Foi através de Piero Fassino, que foi presidente da Câmara de Turim e ministro da Justiça (grande amigo do antigo secretário de Estado português, Victor Neto, ao tempo do exílio deste em Itália), que conheci Napolitano.
Eu havia criado com Fassino uma forte relação, que se mantem até hoje, desde o tempo em que tivemos responsabilidades similares nos nossos respetivos governos. Napolitano e Fassino, ambos oriundos do Partido Comunista Italiano, tinham colaborado no "aggiornamento" de Berlinguer e faziam parte de quantos, mais tarde, com d'Alema, haviam trazido o velho PCI de Togliatti (e de "Peppone", claro) para o "mainstream" da política italiana, também muito graças ao "compromisso histórico" que pode ter custado a vida a Aldo Moro.
Em inícios de 1997, Fassino telefonou-me para Lisboa, perguntando se eu estaria disponível para ter uma conversa com Giorgio Napolitano, à época ministro do Interior, durante uma deslocação que, na semana seguinte, eu iria fazer a Roma, já não recordo bem para quê. Acedi de imediato.
Em Portugal, por esse tempo, cabia ao secretário de Estado dos Assuntos Europeus a gestão do dossiê do Acordo de Schengen, o que era um expediente para superar a rivalidade entre os ministérios da Administração Interna e da Justiça no tratamento do tema. Assim, no ano de 1997, iria competir-me a titularidade da presidência daquele acordo, que Portugal ia assumir por regra rotativa.
A Itália tinha subscrito o acordo em 1991 (Portugal apenas em 1992), mas só veio a aplicá-lo em fins de 1997 (com Portugal a pô-lo em vigor em inícios de 1995). As principais razões do atraso da Itália prendiam-se com a falta de confiança dos parceiros na sua capacidade de controlo das fronteiras externas.
Napolitano recebeu-me no seu soberbo gabinete do ministério do Interior, em Roma. Tinha 71 anos e já parecia ter muitos mais. Os seus movimentos eram lentos, as palavras também, mas o seu raciocínio era muito ágil. Recordo sempre o comentário do meu então chefe de gabinete, Miguel de Almeida e Sousa, no final da reunião: "O velho é muito vivo!"
A nossa conversa começou em torno dos melhores chás pretos, que ambos apreciávamos e tínhamos pedido, com ele a tomar nota, com um lápis, num pequeno pedaço de papel, de uma marca inglesa que então lhe recomendei. O tempo, naquele ambiente antigo, parecia suspenso. Pelas caras de quem ia comigo, a começar pelo nosso embaixador em Roma, percebi que o ritmo da audiência poderia vir a contaminar outros encontros e reuniões que eu ainda teria nesse dia. Não tenho ideia se isso veio a acontecer.
Napolitano, numa voz cava e pausada, que mantinha num registo baixo, foi direito ao assunto: a Itália precisava de garantir, na reunião ministerial a que eu presidiria, em Lisboa, meses depois, o seu lugar de pleno direito em Schengen. Um país fundador das comunidades europeias não podia ficar fora do sistema.
Eu trazia a lição estudada. Lembrei as medidas técnicas que a Itália se comprometera a aceitar, em matéria de portos e aeroportos - que outros parceiros consideravam ainda muito incompletas, num processo de decisão que funcionava a unanimidade. Ao contrário de Fassino, que fazia esgares e se mexia na cadeira, ao ouvir, com alguma contratiedade, aquilo que eu ia dizendo, Napolitano mantinha uma atitude impassível, mesmo ao explicitar o seu contra-argumentário.
Com toda a simpatia, que era real, pela posição italiana, disse-lhe que faria o meu melhor na ministerial de Lisboa. Mas não prometi nada, a não ser a melhor boa vontade.
A reunião de Lisboa foi muito difícil, e não apenas por causa da Itália. Só consegui fazer vingar um compromisso final... pela fome! Prolonguei a reunião por horas, com sucessivos "drafts", até conseguir o resultado pretendido. O almoço oferecido aos delegados, no CCB, só começou quase às quatro horas da tarde, com alguns a perderem aviões.
Conseguimos, no final, depois de muitas horas em que isso pareceu impossível, que fosse aceite um compromisso que, segundo recordo, consagrava a plena e automática aplicação de Schengen à Itália, desde que esse país fosse ultrapassando, com sucesso, nos meses seguintes, uma lista calendarizada de exigências técnicas ainda em falta. Se assim acontecesse, mas sem necessitar de uma nova e penosa ratificação política pelos governos, o país teria o seu lugar de pleno direito no acordo. Assim sucederia, meses mais tarde. Napolitano pôde então anunciar que os ministros de Schengen tinham dado o seu acordo político para a aplicação do sistema à Itália, que apenas teria de colmatar alguns pontos técnicos residuais.
Nessa tarde no CCB, com todos nós esgotados pela longa jornada, que tivera início num jantar na véspera nas Necessidades, Giorgio Napolitano ficou tão contente com a fórmula que havíamos conseguido, que, no termo da reunião, me pregou dois repenicados beijos na cara.
Passaram, entretanto, mais de dois anos.
Em janeiro de 2000, Portugal defrontava-se com dificuldade em obter o "avis conforme" do Parlamento Europeu para poder arrancar com a Conferência Intergovernamental que iria rever o Tratado de Amesterdão. Tratava-se de superar uma exigência, suscitada por alguns e rejeitada por outros Estados, de incluir na agenda negocial um determinado ponto. Napolitano era o presidente da poderosa Comissão Institucional, por onde tudo teria de passar. Portugal tinha uma fórmula a propor, mas necessitava de ajuda para garantir que ela seria aceite.
Fui ver Giogio Napolitano ao seu gabinete em Estrasburgo. Mal eu tinha acabado de lhe expor as dificuldades com que nos confrontávamos, sempre com aquele seu fácies só aparentemente impassível, retorquiu-me: "Francisco. Nunca esqueci a ajuda preciosa que me deste em Lisboa. Agora, farei tudo o que puder para te ajudar." E fê-lo, com grande empenhamento, auxiliando-nos num momento particularmente delicado. Eu também não esqueci isso.