A situação que se vive entre a Grécia e a União Europeia traz à discussão um problema interessante, sob o ponto de vista teórico, que poderá ser reforçado se acaso o Podemos vier a assumir responsabilidades de governo em Espanha ou mesmo se o Front National vier a ascender ao poder em França.
A questão tem a ver com o surgimento, nos poderes sufragados eleitoralmente nos Estados membros, de forças políticas que, à esquerda ou à direita, recusam o modelo liberal, cuja filosofia enforma hoje todos os tratados europeus. Se olharmos para o discurso do ministro das Finanças grego - melhor, se lermos retrospetivamente aquilo que ele escreveu ao longo de anos - verificamos que a lógica em que assentam as suas propostas, mais do que não coincidirem com os compromissos assumidos pela Grécia dentro da UE, apresentam a caraterística de se situarem-se "fora da caixa", porque comportam em si mesmo uma aberta recusa da filosofia dominante. Mas, curiosamente, isso também é válido para o discurso soberanista de Marine Le Pen, num outro lado do espetro.
A União Europeia foi criada em torno de um compromisso entre o liberalismo, a social-democracia e a democracia cristã. A sua filosofia inicial acabou por ser uma mescla com uma forte componente social, para a qual essas três correntes contribuíram, fruto de preocupações comuns no pós-guerra. Com o surgimento de uma vocação económico-financeira por detrás do projeto europeu, os setores mais "sociais" foram progressivamente perdendo a liderança do processo e veio a prevalecer uma economia de mercado que, por alegadas razões de eficácia operativa num mundo globalizado, foi prescindindo do "modelo social", que hoje é residual, muito deixado à subsidiariedade (isto é, à capacidade de cada Estado) e sustentado a custo, curiosamente sob fogo teórico de alguns países que haviam estado na sua génese. Quer a democracia cristã original, quer principalmente o socialismo democrático, estão do lado dos "perdedores" deste "campeonato" europeu, hoje ganho amplamente pelo liberalismo (a que alguns chamam neo-liberalismo porque se despiu precisamente das preocupações sociais do liberalismo histórico). Este "template" formatou a vida política na generalidade do Estados da UE, com a ascensão ao poder de forças que não são verdadeiras alternativas - são apenas modelos "nuancés" do mesmo padrão. O espartilho macro-económico, com limitações drásticas em matéria de défices, tornou a representação política refém de opções que só no discurso, e muito marginalmente nas alocações orçamentais, são diferentes entre si. Que o desespero, de esquerda ou de direita, se afirme "fora da caixa" era algo que, mais tarde ou mais cedo, acabaria por acontecer. Hoje é o Syriza a tentar recusar as medidas de austeridade, amanhã será o Front National a pôr em causa o livre comércio, a impossibilidade das ajudas de Estado e o resto da agenda soberanista que aí está ao virar da esquina. Resta saber se a Europa conseguirá resistir a estas tensões.
10 comentários:
Eu acho mesmo que é Portugal e o MNE que estão Out of the box e continuam a querer viver numa lógica de preservação dos priviégios corporativos que está fora do tempo presente. Eu sei, José Sócrates que Évora é o reverso do corte do direito de férias aos magistrados...
Ontem um embaixador que já atingiu o limite de idade era lhe dada a sinecura da posição de Director do Instituto Diplomático, posição remunerada que cumulará com a pensão de reforma.
O diácono Remédios diria que "não havia necessidade" e diplomatas mais qualificadas, no feminino, diriam que também não. Portugal e o MNE serão reformáveis?
Bom dia Francisco.
Concordo com a sua analyse.
Nous que diz respeito à França, penso que o país està em perigo. Hoje nāo existe congruência para os problémas essenciais.
C.Falcao
O problema é que a caixa se tornou cada vez mais pequena. Aquilo que o Syriza e vários outros partidos em vários países europeus estão a tentar fazer é alargar o espaço do debate político. Alguns desses partidos, como a FN, por exemplo, de facto põem em causa os valores matriciais da democracia liberal europeia. Outros, pelo contrário, representam uma tentativa de recuperar um espaço que se tornou demasiado exíguo. Esta paarece-me ser uma distinção fundamental. De qualquer modo, uma coisa parece-me certa, o status quo - esta caixa tão apertada - não tem condições para continuar. Um unanimismo tão estreito e limitado como aquele que foi criado pelo neoliberalismo triunfante não é capaz de sobreviver numa sociedade aberta e democrática.
Muito pertinente, mais uma vez, este "post" Senhor Embaixador. Se analisamos o exemplo da França, é indispensável de fazer volta atrás para apreciar a pertinência do que o Senhor escreveu .
.François Hollande reconheceu oficialmente há um ano a sua identidade social-democrata. Mas esta "confissão" foi bem tardia, porque se fez eleger por um programa "socialista"em 2012. Nao esqueci o discurso do Bourget, onde estive. E os socialistas não lhe perdoarão em 2017 de o ter esquecido.
Na realidade, se analisamos os 30 últimos anos, aparece claramente que esta viragem social-democrata foi avalisada pelos responsáveis do PS desde 83-84, e que depois, houve a deriva social liberal completamente realizada e assumida no início de 2014.
Constatei há dias com muita pena as contorções do pobre Moscovici como Comissário europeu, "socialista", em frente do ministro das finanças grego , de esquerda, ! Como ter um discurso "socialista" quando a Comissão o obriga a vender um "produto" invendável na embalagem da troika ?
A deriva social liberal do inicio dos anos 80 fez-se em paralelo com a transformação liberal da UE, como muito bem escreve, impulsionada pelo PS e a direita.
A coerência do programa de 81 de Mitterrand foi sabotada , a lógica do mercado varreu a vontade política de enquadrar o capitalismo, ao bloquear os salários, baixando os encargos sociais das empresas, reduzindo as despesas publicas e sociais, para, dizia, favorecer a competitividade das empresas e portanto o emprego.
E o discurso do Bourget de Hollande, quando dizia que o seu inimigo era a finança, teve o mesmo destino. Recordo que, no momento em que proferiu estas palavras, dizia à minha esposa ": Quando atacar o programa de Mitterrand, porque é a mesma politica que o mercado quer impor hoje, afundar-se-à no oceano da incompatibilidade entre reformas liberais e estado social. O pacto de responsabilidade de Hollande com os empresários não funciona hoje, porque estes estão sempre prontos a aceitar as baixas de encargos e de impostos, mas não estão nunca dispostos a jogar o jogo das criações de empregos.
Aliás, é o fundamento mesmo do capitalismo que de trabalhar de todas as maneiras, incluindo a evasão fiscal, para aumentar sempre a rentabilidade financeira, e distribuir dividendos, considerando que a criação de empregos não é a sua finalidade.
Quando Mitterrand assumiu a presidência da Europa em 85, e que impôs Jacques Delors à cabeça da Comissão, vimos, ao fio das coabitações e das alternâncias políticas, que houve sempre acordo sobre o fundo entre as duas forças políticas francesas, quanto à evolução liberal da UE. Basta lembrar o símbolo: Chirac e Jospin em 2000 e o Tratado da Estabilidade (TSCG) e o "Merkozy" de Sarkozy.
A direita gaulista virou para o ultra liberalismo e a social democracia para o social liberalismo.
Resta a esperança que o espectro do Front Nacional, que explora bem o slogan da falência das politicas de direita como de esquerda, na solução dos problemas de toda a ordem, económicos como societais, e propõe de dinamitar a Europa, fará reflectir a massa dos descontentes no exemplo do passado. E fará reflectir os socialistas que estão no caminho errado.
Porque seria terrível que fosse a esquerda "vermelha" que conduza ao fascismo cinzento, por causa da compromissao dos sociais liberais com o capitalismo financeiro mais feroz,
Permita-me V. Exa., Europa?.
Uma Europa de funcionários em roda livre nunca iría (irá?) longe.
"... mas não se coloca um alto funcionário perante um primeiro-ministro ou um ministro...".
Jean-Claude Juncker, presidente da Comissão Europeia
J-C J, sem dúvida, com dois bons dedos de testa ... para o bem e para o "mal".
Muito certo. É um problema entre a teoria e a prática.Nascer num berço de ouro por vezes traz os seus inconvenientes.
Cumps.
há países que não se reconhecem no actual modelo europeu a que pertencem, estão a reagir contra ele que, alem do mais, se tornou altamente autoritário para os membros que reclamam. tornou-se uma união muito rígida, alem de que o elemento social praticamente desapareceu. à eta ou à esqda ou seja onde for começam a tomar corpo rejeições. e isso significa tensões.
Embora, quero crer, o autor do Blogue não tenha tido a intenção de colocar no mesmo pote o Syrisa e a FN francesa, ficou, de algum modo, inadvertidamente, essa impressão. Igualmente ficou a impressão de que aquilo que o Syrisa defende seria algo irrealista, no contexto dos moldes de actuação da UE. Ora, a austeridade que o novo governo grego contesta e bem, colide com dois princípios que a União Europeia deveria saber respeitar, mas assim não parece, que é a Dignidade de um povo e a sua Soberania, que foram postos em causa com o tal programa da Troika (negociado por Altos Funcionários, em vez de Políticos, como agora vem J.C. Juncker lamentar, tardiamente). Por outro lado, o chamado Programa de “Assistência” em boa verdade não o é, mas, outra coisa bem diferente: impôr aos países que o solicitaram, ou dele necessitaram, um modelo económico-político (bem como se obter uma boa fatia lucrativa, como investimento, daquilo que foi é emprestado, por quem constituiu, ou compõe, a Troika), o que contrasta muito, por exemplo, com o tipo de negociações que os credores do pós-II Guerra Mundial (e por junto da I GG) com a ALE, cujo objectivo consistia em ajudar a ALE a sair da crise resultante da sua derrota “e lhe permitir crescer e voltar a desenvolver-se, economicamente”. O que se verificou. Ora, esta austeridade que nos é imposta, à Grécia, Portugal, Irlanda, não segue esse padrão, muito pelo contrário, como bem sabemos. A União Europeia, com este tipo de posições, veja-se as do Eurogrupo, da ALE e outros países que alinham pelo mesmo diapasão, acaba por revelar uma perigosa e preocupante falta de princípios democráticos, pois, o que nos procura dizer é que os povos e os países do seu espaço podem votar no que quiserem…desde que aceitem as regras neoliberais estabelecidas (e não colidam com os interesses dos mercados), o mesmo que afirmar que a Democracia nesses (e noutros) países é relativa, ou que a sua prática tem limites. Enquanto aquilo que se emprestar aos países a viver situações como as dos tais PIGS contiver em si espartilhos económico-politico-financeiros e sociais deste teor, não será possível recuperá-los, ou esperar que se desenvolvam, que cresçam. A título de exemplo, imaginemos que o meu banco, por ocasião do meu pedido de empréstimo para aquisição de casa me exigia, para além dos juros e amortizações normalmente devidas, juntamente com o prazo de liquidação do mesmo, um determinado comportamento de vida, na forma como me transportaria doravante (de transporte público em vez de viatura própria), como me deveria alimentar, de vestir, onde passar férias, etc.
Abraço,
RF
Parece-me que se há alguém que não aturará o caminho para os amanhas que cantam será provavelmente a Alemanha e alguns dos países nórdicos. Para nós desejo que esse dia não aconteça; acho que mais uns políticos com a sensibilidade dos Varofakis, num país de peso(Espanha, França, Italia) e aí vai a UE por agua a baixo. O que nos pode acontecer penso que o iremos poder ver em menos dum ano; basta telefonar aos meus amigos gregos e ouvir de viva voz.
Caro Senhor Antonio Cristovao :
Se telefonar aos seus amigos gregos e se estes pertencem às famílias políticas daqueles que puseram a Grécia na situação em que se encontra hoje, que eles sejam de esquerda ou da direita, adivinho a resposta.
São aqueles que caminham num cortejo de cabeças curvadas, como os burgueses de Calais, acusando um só culpado : o povo, de não pagar o IVA, esquecendo à passagem o clero que nunca pagou impostos, os capitalistas idem e que para mais praticam a evasão fiscal a grande escala, os armadores ricaços que pagam o mínimo, e que nos últimos meses , 45% dentre eles, mudaram o nome do porto onde registaram os seus navios... para evitarem os impostos.
Mas que prepararam para o povo um remédio de cavalo à base de austeridade, rigor, seriedade, que traduzido dá : desemprego, fome, doença, salários de miséria, saldos do património nacional, e que bem embalado agrada aos mandões da UE.
"Chez nous" existem os mesmos representantes do comércio da dívida, que querem fazer pagar a factura àqueles que não são os culpados.
Quanto à Alemanha, quase metade da sua economia depende da Europa, isto é, de nós! Onde quer que ela vá arrancar outras partes de mercado tão benéfico como o nosso ?
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