domingo, agosto 08, 2010

Humberto Delgado (1)

Encontrei, há dias, um exemplar do manifesto da candidatura presidencial do general Humberto Delgado, em 1958, entre as folhas de um livro antigo do meu pai.

A fotografia que encima este post figura na primeira página dessa "Proclamação". Essa era também a imagem que, à época, aparecia nos cartazes colados em algumas as paredes de Vila Real. Eu tinha 10 anos, mas recordo, como se hoje fosse, o momento em que o meu pai - "republicano" dos sete costados, o que então queria dizer "democrata" - me levou a ver Delgado depor uma coroa de flores no monumento a Carvalho Araújo, na avenida com o mesmo nome, em Vila Real. Era 22 de Maio de 1958. À época, eu estava longe de perceber bem a importância desse tempo, mas era-me sensível o ambiente de tensão que então se vivia.

A candidatura de Delgado terá sido, porventura, a maior ameaça de contestação interna que o Estado Novo sofreu em todo o seu percurso. Oriundo do regime, para cujo sucesso contribuiu com entusiasmo, e que serviu com dedicação durante muitos anos, o general teve uma passagem de alguns anos pelos Estados Unidos que terá estimulado a sua propensão contestatária e o fez aderir a um ideário liberal. Crescente crítico de Salazar, essa sua atitude não passou desapercebida à hierarquia militar, que não deu alento à carreira profissional que ambicionava, acabando por assim espoletar a sua dissidência. Uma ala moderada da oposição ao salazarismo, conhecedora dessa sua evolução, teve então a iniciativa de lhe propor ser candidato "independente" à Presidência da República, vindo a conseguir arrastar em seu favor outras correntes mais radicais, em especial o PCP, que originalmente qualificava Delgado como o "general Coca-Cola".

Delgado veio a protagonizar uma campanha cujo entusiasmo popular não encontra paralelo na história política portuguesa, como a imagem seguinte, da receção que lhe foi feita no Porto, melhor documenta.
.
A personalização do combate a Salazar, que encarnou de forma enérgica e destemida, trouxe-lhe uma imensa e inesperada popularidade, em quase todo o país. Ao afirmar, com frontalidade, que demitiria o ditador, se acaso viesse a ser eleito, Delgado rompeu com o endeusamento histórico que protegia Salazar e abriu um tempo novo na vida política portuguesa.

O candidato do regime era o inenarrável contra-almirante Américo Tomás, um obscuro ex-ministro que Salazar selecionara para evitar a recandidatura do general Craveiro Lopes, o qual dera sinais de algumas reticências à liderança política do homem de Santa Comba.

O período eleitoral foi muito duro, com Delgado e os seus adeptos a serem objeto de forte coação e intimidação, com perseguições, prisões e mortes, na sequência de muito violentos atos de repressão. O comportamento do candidato esteve sempre à altura da coragem que se lhe creditava e que lhe veio a dar o cognome histórico de "general sem medo".

Sabe-se hoje que, dentro do regime, se passaram então horas de grande angústia e que essa tensão contribuiu para agravar confrontações entre personalidades do governo, que não deixaram de marcar os anos seguintes. No plano institucional, o susto foi ao ponto do regime decidir mudar a Constituição e acabar, pouco tempo depois, com a eleição por sufrágio direto, passando a escolha do Presidente da República a ser feita por um "colégio eleitoral" de fiéis da "situação".

Com os cadernos eleitorais desatualizados, com uma generalizada fraude no escrutínio, Humberto Delgado viria, mesmo assim, a obter cerca de 1/4 dos sufrágios expressos - isto durante um regime que, em anteriores e posteriores eleições legislativas, nunca permitira à oposição eleger um único deputado.

Delgado seria depois afastado das Forças Armadas. Foi forçado a exilar-se no Brasil e, depois, na Argélia. Viria a ser assassinado, em Fevereiro de 1965, por uma brigada da PIDE, em Espanha, perto de Olivença.

14 comentários:

Jose Martins disse...

Senhor Embaixador,
Não tinha 10 mas 23 anos.
Estive envolvido, indirectamente, na candidatura do General Humberto Delgado e Arlindo Vicente.
Percebia tanto de política como de lagares de azeite.
Na campanha eleitoral os dois candidatos da oposição, Humberto Delgado e Arlindo Vicento, a população do Porto (praticamente toda operária) atingiu o rubro. Pretendiam a mudança e deixar de ser amordaçada pelo regime.
Na altura, era eu o primeiro motorista de furgoneta da Cooperativa de Ramalde. A “mula” tinha morrido e arrumada a carroça de transporte de mercearias aos associados que eram operários de fábricas da Senhora da Hora e da zonas de Ramalde-do-Meio e da Boavista.
A direcção da Cooperativa de Ramalde era composta de operários e considerados (como todos oponentes ao regime) comunistas.
A direcção optou por apoiar o Dr. Arlindo Vicente e programado um comício no mercado da fruta na Ferreira Borges.
Na manhã do dia do comício, eu sou o encarregado de levar na furgoneta da cooperativa, o material de propaganda, onde se incluía um grande painel, de pano de lona, enrolado num pau com a imagem do Dr. Vicente.
Toda esta propaganda tinha sido confeccionada na carvoaria e na horta da cooperativa.
Deixei a propaganda no mercado da fruta e regressei a Ramalde. Bem não houve comício nenhum, a PIDE barrou-o e foi prender todo os directores da cooperativa a casa e levou-os para a sede da PIDE na rua do Heroísmo (lados de Campanhã).
Quando ao outro dia chego para iniciar o trabalho, esbaforido chegou-se a mim o gerente e diz-me: “temos que ir queimar os folhetes de propaganda do Dr. Arlindo Vicente, o presidente já foi preso e com ele foram todos!” Queimamos tudo num ápice na horta. A direcção da cooperativa esteve umas duas semanas na PIDE e regressaram amarelos que metiam dó!
Levaram pancadaria.
Vingança dos rapazes do meu tempo pela noite adiante, naqueles painéis de azulejo muito populares nas casas do Porto que designavam “Bem vindo quem vier por bem”, nós apagávamos (quem vier) e escrevíamos “Humberto Delgado”. Isso irritava os “bófias” de rua, que embora mais moderados que os PIDES, usavam como arma o cassetete, que não partia ossos mas fazia nódoas no lombo.
Saudações de Banguecoque
José Martins

Anónimo disse...

"Um livro antigo do meu pai."

Aliás enciclopédia de ternura perpétua...
Isabel seixas

Anónimo disse...

DIZEM-ME QUE TAMBEM EM 45, COM nORTON DE MATTOS SE VIVEU UM PERIODO ASSIM , DE ESPERANÇA, ÉLAN DEMOCRATICO...

SERIA INTERESSANTE FAZER UM ESTUDO COMPLEMENTAR DOS 2 PERIODOS, E TAMBÉM DOS 2 PERSONAGENS E CONTEXTOS.

cPMTS

Desculpe as maiusculas... sairam..

patricio branco disse...

A nossa historia tem optimos episódios que poderiam inspirar argumentos de filmes que ajudariam a conhecê la: a campanha eleitoral de HD, a ocupação e desvio do Santa Maria, o exilio e assassinato de HD, o assalto ao quartel de beja por varela gomes,etc.
Ou mesmo telenovelas, ou filmes de televisão em 3 ou 4 episódios, como fazem os espanhois (ex. o recente telefilme sobre o 23 f de 1981.
Faça se um filme sobre HD no período 57-58-59, para reviver estes episódios da luta anti salazarista, cada vez mais esquecidas, como a evocada pelo autor do blogue.

Helena Sacadura Cabral disse...

Grávida do meu filho Miguel andei por esses caminhos de tentada liberdade. Com alguma temeridade, confesso. E ocupei, mais tarde, sem medo e com orgulho, na então Aeronáutica Civil, o gabinete que antes pertencera a Delgado!
São as "estórias" da História!

Anónimo disse...

Na candidatura de Norton de Matos, não sucedeu o mesmo como depois na de Hunberto Delgado.
O povo português com a graça do senhor estava muito atrasadinho. Lembro-me, com 10 anos, a propaganda que foi distribuída na minha aldeia onde uma das palavras de ordem era: "Norton de Matos é o Grão-Mestre da Maçonaria.
Sabia lá a gente do meu povoada o que era a Maçonaria se era toda analfabeta e ouvia, do que sabiam ler, os editais que eram colocados numa parede certa de um edifício da rua correnta onde as pessoas se juntavam depois da missa dominical José Martins

Anónimo disse...

Era de HOMENS como o General Humberto Delgado que precisavamos em Pedras Salgadas,para fazer frente a toda poderosa UNICER,não de lacaios ao seu serviço no poder local.


João Silva.

Helena Oneto disse...

Muito interessante e oportuno relembrar Humberto Delgado.

A morte do General sem medo resta um mistério.
Rosa Casaco não contou a verdade toda. Foi julgado à revelia e condenado a 8(!?) anos de prisão e anda por aí a gabar-se que voltaria a ser PIDE e que morrera "de consciência tranquila"!
Quem mandou assassinar Humberto Delgado?
O meu tio Fernando morreu -cedo de demais- com alguns elementos de resposta atravessados na garganta...

Francisco Seixas da Costa disse...

Cara Helena: Rosa Casaco morreu em 2006. O "mistério" em torno da morte de Delgado é uma invenção da PIDE, que o assassinou, como está hoje bem provado.

Helena Oneto disse...

Fico contente de saber que essa pérfida e sinistra criatura tenha desaparecido de vez! Que a terra lhe seja pesada como pesado foi a sofrimento de quantos lhe cairam nas mãos.

OCTÁVIO DOS SANTOS disse...

«(...) da RECEÇÃO que lhe foi feita no Porto (...)»

O mesmo é dizer, porque soa exactamente da mesma maneira: «da RECESSÃO que lhe foi feita no Porto».

Porque é que não passa a escrever só em francês? Ficava menos ridículo.

Francisco Seixas da Costa disse...

Caro Otávio dos Santos: Nada melhor que um (sempre elegante) comentário seu para alegrar este agosto (os meses passam a escrever-se com minúscula, segundo o novo Acordo Ortográfico, como saberá). Fico contente que ainda leia o que por aqui se escreve, pelo que é com muito gosto que publico a sua amável nota. Volte sempre!

OCTÁVIO DOS SANTOS disse...

Voltarei, caro Franciscu Seichas da Kosta, voltarei (você continua a escrever incorrectamente o meu nome, pelo que faço o mesmo consigo). Divirto-me sempre muito com as suas «postas», não só pelo conteúdo mas também pela «ortografia». Há que reconhecer a sua coerência e persistência: você é mesmo um utilizador da «novilíngua orwelliana malaco-casteleira» e não um dos hipócritas que a impuseram e ratificaram mas que não a usam... como o presidente da república e o primeiro ministro.

Unknown disse...

http://analisesocial.ics.ul.pt/documentos/1223400499A1rNG9eq8Lo93IW1.pdf

25 de novembro