segunda-feira, agosto 16, 2010

Eça de Queiroz

Há 110 anos, foi a enterrar Eça de Queirós*. 

Eça de Queirós foi diplomata. Se, como escritor, Eça foi um génio, como diplomata situou-se numa mediania que nem o esforço laudatório de alguns conseguiu disfarçar. Eça utilizou a sua carreira consular para escrever algumas das obras-primas da literatura portuguesa e, só por isso, valeu largamente a pena que o Ministério dos Negócios Estrangeiros lhe tenha pago o salário. O qual, no seu entender, não era suficiente, a crer no que escreve em "Uma Campanha Alegre":

Os diplomatas portugueses passam por agradar no estrangeiro pela sua palidez! Mas não se sabe que a sua palidez vem, não da beleza da raça peninsular, mas da fraqueza de legação mal alimentada. Onde um embaixador português mais se demora, não é diante das instituições estrangeiras com respeito, é diante das lojas de mercearia com inveja! E se eles não podem alcançar bons tratados para o País – é porque andam ocupados em arranjar mais rosbife para o estômago. Se não fossem os jantares da corte e as ceias dos bailes, a posição do diplomata português era insustentável. E ainda veremos os jornais estrangeiros, noticiarem:

“Ontem, na Rua de… caiu inanimado de fome um indivíduo bem trajado. Conduzido para uma botica próxima o infeliz revelou toda a verdade – era o embaixador português. Deram-lhe logo bifes. O desgraçado sorria, com as lágrimas nos olhos.”

Que o país atenda a esta desgraçada situação! Que tenha um movimento generoso e franco! Dê aos seus embaixadores menos títulos e mais bifes! Embora lhes diminua as atribuições, aumente-lhes ao menos a hortaliça. Eles pedem ao seus país uma coisa bem simples: não é um palácio para viver, nem um landau para passear, nem fardas, nem comendas! É carne! Que o País no número do pessoal diplomático – diminua os adidos e aumente os bois.”

*Como refere num comentário, com precisão, Luis Santos Ferro, entre a morte e o funeral de Eça de Queiroz mediou um certo tempo.


20 comentários:

RS disse...

E que fome ainda passamos hoje em dia...
Para o comum dos mortais, vivemos de mordomias e palácios, mas a remessa é tão fraca, que a carne é dividida por 18!

Abraço

José Martins disse...

Mas que coincidência o Elvis Presley foi para os anjinhos no mesmo dia do Eça... E eu ainda por cá ando nasci no mesmo dia do Elvis a 8 de Janeiro de 1935.

Anónimo disse...

Quem vive fora de Portugal já se habitou, infelizmente, à péssima administração de recursos na nossa rede consular e embaixadas. Queremos dar uma imagem de país rico, temos belos palacetes mas os "frigoríficos" estão vazios. Há dinheiro para residências oficiais do consul com piscina e belos jardins mas não há dinheiro para reparar goteiras e infiltrações.
Há dinheiro para belos salários mas por vezes não há trabalho para justificar esse salário.
A maioria dos portugueses já perdeu a paciência para estas situações, sendo pouco o crédito que atribuem aos funcionários escolhidos para representar Portugal no exterior. Infelizmente....

Mas existem belas excepções, o Embaixador Seixas da Costa é, com certeza, uma delas.

ARD disse...

"Ora a verdade é que o país gosta de pagar barato à sua diplomacia. E neste ponto abusa. Quer uma diplomacia ben fardada, bem bordada, bem aparatosa e no fim se se lhe apresentar por ter uma diplomacia uma conta um pouco maior do que por ter um carroção, escandaliza-se, e grita pelo sr. bispo de Viseu."

E.de Q.

José Martins disse...

Era uma "miséria" de quando eu era um não existe (me dizia o chefe-de-missão), como manga de alpaca entrei a ganhar o ordenado da mulher limpeza uns quinze contos.
.
Até o papel se economizava e quando o cheque demorava a chegar das Necessidades para os diplomatas lá estava a SC acudir com um empréstimo, para a renda de casa...

Eu tinha vergonha de dizer o ordenado que auferia aos colegas "alpacas" das embaixadas de paises do terceiro mundo, pois ganhavam 8/10 vezes mais que eu.

patricio branco disse...

realmente, o escritor tambem diplomata, tinha um estilo e uma graça, resultantes do manejo da ironia e da clara escrita, inigualável em portugal.
O individuo caido na rua, sem forças da fome, que "confessou toda a verdade" e a quem reanimaram com um bife, é um paragrafo de antologia. Antologia que nos é dada pelo autor do blogue FSC (que nos dê mais, pf.)
Como diplomata, é evidente que EQ não ficaria na história, não porque fosse mau, mas porque nunca teve ambições carreiristas mas sim literárias. Quase toda a sua grande força e génio foi para a escrita, fosse romanesca, jornalística, de cronista, de viagens ou cartas.
De diplomatas, contaram-me de um que esperava vários meses no estrangeiro para lhe pagarem as funções que exercia, aguentando por esforço próprio, o que por mais de uma vez aconteceu.

Que apareçam mais eças de queiroz que escrevam para honra do país e da sua literatura, não do seu governo ou ministérios de exteriores. De diplomatas escritores que primaram nas letras e "secundarizaram" as funções profissionais, refiro teixeira gomes (tambem grande cronista, que bem descreve as suas dificuldades económicas em Londres), abel botelho (foi embaixador na argentina)antonio patricio, paulo castilho, francisco sapim, almeida garret (tambem foi ministro dos negócios estrangeiros alem de servir no estrangeiro, mas sem história na diplomacia) e seguramente outros que não sei ou esqueço.
A transcrição de EQ no 2 ou 3 coisas foi sem duvida a minha boa leitura do dia e ainda a irei reler. Obrigado, portanto.

Anónimo disse...

Quem sabe se foi por falta de bifes que o Governo (os Governos!) suprimiu 8 Consulados de Portugal em França.
Carlos Pereira

patricio branco disse...

Fechar ou abrir consulados, reorganizar embaixadas!
Que consulados em frança foram fechados e porquê? ja não faziam falta ou é a crise orçamental? e noutros paises foram fechados?
Os consulados de newcastle, bristol, havana, onde trabalhou EQ creio que já não existem, apenas paris.

Mas voltando aos romances de EQ, os diplomatas têm o seu lugar na obra dele como personagens, p.ex. nos Maias: aparece o ministro da russia ou o da finlandia(o conde steinbroken, pianista ou cantor, amigo dos maias). Também no mandarim aparecem diplomatas, embaixadores. De consules não recordo que tenha falado, apesar de ele ter a profisão de consul.
e passando a outro escritor, machado de assis faz um melancólico e belíssimo retrato de um diplomata retirado no "memorial de aires".

Alcipe disse...

Meu querido Amigo, estás a ser profundamente injusto com o Eça : primeiro, ele era da carreira consular e não da carreira diplomática - o que, na época, fazia toda a diferença! Segundo, se leres o Calvet e o Archer (que tu certamente leste) e o relatório de Havana, editado e comentado pelo Raul Rego, verás que o nosso antigo colega trabalhou mesmo. Não te deixes impressionar pela má língua do António Nobre - o Eça não gostava da poesia dele e para um poeta isso é o caldo completamente entornado...

Helena Oneto disse...

Ler Eça é um grande prazer. Lê-lo aqui é uma delicia!:)

Os banquetes que o aristocrata Jacinto oferecia no 202, Champs Elysées eram famosos pelo requinte e abundância das iguarias. Subtil revanche do epicúrio da penúria diplomática!

Luís dos Santos Ferro disse...

Queirosmente sempre consigo! Apenas a precisar: EQ faleceu efectivamente a 16 de Agosto de 1900, mas não 'foi a enterrar' no mesmo dia! Os seus restos mortais,acolhidos numa igreja vizinha de casa (Neuilly)e depois transferidos para Lisboa,tiveram funerais oficiais para o Alto de S.João. Recentemente (finais dos anos'80)a família promoveu transladação para Sª Cruz do Douro,terras jacínticas. O Panteão não o recebeu -- ou a Assembleia da República não lhe atribuiu valor bastante...

Alcipe disse...

Em tempo e com perdão pela insistência:

Claro que há bibliografia mais actualizada sobre Eça como diplomata :

o(s) dicionário(s) e a biografia do Campos Matos (trabalhos notáveis) e a biografia da Maria Filomena Mónica, que na parte que diz respeito ao Eça diplomata segue muito de perto o livro do Archer, mas é interessante no enquadramento histórico-político que faz do nosso autor - diplomata.

patricio branco disse...

Cara Alcipe. Obrigado pelas sugestões de leitura. Como se chamam os livros de Archer e Calvet de que fala? na verdade não os li, mas li há uns anos a biografia do EQ por maria filomena monica.
António nobre foi diplomata?
Acredito que EQ quando fazia o seu trabalho consular o fazia bem, certamente que era um profissional dedicado, mas é o EQ escritor que celebramos em 95%.

Alcipe disse...

Caro Patricio Branco

Coloca-me numa situação embaraçosa, porque me atribui o sexo (ou género) certo do meu pseudónimo, mas vai colocar-me em sério risco de conflito com o meu querido amigo Fernando Mascarenhas, por usurpação de identidade da sua Avó... Por isso, tal como Jack Lemmon no final de "Some Like It Hot", sou forçado a revelar-lhe que sou um homem... nobody is perfect!

a) Alcipe

patricio branco disse...

a marquesa de alorna foi uma figura intelectual e uma poetisa de primeira importancia nos inícios do romantismo português, muito gostava da poesia dela quando tinha uns 20-25 anos (ainda gosto, mas entretanto outros autores conheci e li). Nos anos 70 encontrei e comprei os 6 volumes das obras poeticas dela, a edição de 1815 (ou 1816?), em perfeito estado. Entretanto perdi a sua propriedade, por via dum divorcio.
Mas que tem isto a ver com EQ, com os diplomatas, com os consules?
Ps. no meu caso, somebody is perfect, se é que isso é possivel, pois a regra enunciada no fim do some like it hot parece não admitir excepções.
A propósito, encontrei um livro do calvet mas sobre o almeida garret (uma biografia)onde fala da sua carreira na diplomacia.

Alcipe disse...

Caro Patricio Branco

Pois o Conde de Oyenhausen, marido da Marquesa de Alorna (Alcipe), foi nosso embaixador em Viena, sabia?
E em Viena Alcipe conheceu Pietro Metastasio, o poeta italiano autor de vários libretos de óperas (como o "Orfeu" de Gluck) e... enfim, nobody is perfect!

Francisco Seixas da Costa disse...

Caro Alcipe: conheço muito bem a vida e a obra de Eça de Queiroz e, muito em particular, as duas obras que citou. Era em Archer de Lima que eu estava precisamente a pensar quando me referi a trabalhos laudatórios. Se, na carreira diplomática portuguesa, as pessoas merecessem um qualificativo positivo por terem escrito um relatório (ou dois, porque há outro em Newcastle), então só tínhamos por lá "Talleyrands". Eça era um diplomata banal, para quem a carreira foi um modo de vida, um espécie de permanente "bolsa de estudo" para escrever. Bendita bolsa!

patricio branco disse...

correcta a apreciação da carreira do EQ por FSC. Era um diplomata apagado que se serviu da profissão para viver em sitios culturalmente interessantes e poder escrever. E fez muito bem ao fazer isso, permita se o pleonasmo.
Perfeita também a imagem da "bolsa de estudo bendita".

patricio branco disse...

origado pela informação, pois não sabia que a MdA tinha sido embaixatriz em viena.
Já agora, vem tudo por associação, nas "memórias de alem tumulo" chateaubriand fala da visita protocolar que fez ao embaixador ou encarregado de portugal em roma, o conde de funchal, descrevendo o de uma forma um pouco caricata caricata:
"Monsieur de Funchal, semi-official Ambassador of Portugal, is grotesque, agitated, grimacing, green as a Brazilian monkey, yellow as a Lisbon orange; yet he sings the praises of his Negress, this new Camoëns! A great amateur musician, he keeps a sort of Paganini in his pay, while awaiting the restoration of his King."

Alcipe disse...

Correcção : o libretto do "Orfeo" de Gluck não é de Meatastasio, mas sim de Rainiero de Calzabigi.

Scusati!

25 de novembro