sexta-feira, março 08, 2019

Onde está Portugal no mundo?


A prima de olhos verdes


É uma história de família. Da minha família. 

Era uma vez uma mãe que tinha dois filhos. E uma sobrinha, bonita, de olhos verdes. Ambos os filhos gostavam da prima. A mãe decidiu, porque era muito decidida e ai de quem lhe fizesse frente, que havia de ser o filho mais novo a casar com a prima de olhos verdes. Só que o filho mais novo, que era o “ai jesus!” da mãe, viria a morrer, bem jovem, de forma trágica. A família nunca se recompôs do choque. A mãe e o pai, com o filho mais velho, mudaram-se para uma casa em frente ao cemitério, onde, todos os dias, até morrerem, visitavam o jazigo onde haviam depositado o filho querido. 

Havia o outro filho, claro. E havia a prima. Que gostavam um do outro. Tinham um namoro escondido, um tabu na família, de que a mãe talvez suspeitasse, mas que nunca, em vida dela, se iria transformar em casamento. Foram décadas, acreditem! A mãe, um dia, já bem depois do pai, desapareceu. Os primos, superado o obstáculo, consagrando uma espécie de usucapião romântico, já passada a meia centena de anos de cada um, casaram, logo de seguida, claro. 

Foram felizes? Quero crer que sim, embora uma felicidade bem tardia. Ele morreu, há cerca de três anos. Ela seguiu ontem para o cemitério, já perto dos 80 anos, fechando de vez os seus belos olhos verdes.

Numa tarde chuvosa e espessa, como sempre achei que devem ser os dias dos enterros, deixámo-la lá, no jazigo que havia sido feito expressamente para o primo com quem nunca casaria. Ali mesmo já estavam, desde há muito, os seus sogros, os quais, aliás, nunca chegaram a sê-lo. E também o marido, o primo com quem casou. Esta acabará por ser a primeira noite em que toda a família, finalmente, se reúne. Em paz.

quinta-feira, março 07, 2019

O juízo dos juízes


Descobri agora isto que publiquei em 5 de janeiro de 2013 neste blogue:

“Choca-me, com frequência, a ligeireza das decisões de certos juízes, muitos deles seduzidos pelas luzes da ribalta mediática, com contornos a roçar a irresponsabilidade. E mais me choca que, revertida essa decisão por uma outra instância, nenhuma responsabilidade possa ser pedida a quem tomou a primeira - pelos vistos errada, caso contrário não prevaleceria a segunda. Alcandorados na sua "independência", os tais juízes a quem a instância superior tirou o tapete profissional, aí estão prontos para outras, ficando imunes à responsabilização, civil ou outra, pelos efeitos, patrimoniais ou humanos, que a sua anterior decisão acarretou. Não quero particularizar, mas apenas direi que é graças a uma atitude dessa natureza que o túnel do Marão acaba por não estar concluído, já há vários anos, com muitos milhões de euros de prejuízos e incontáveis custos para toda uma região.

A absurda sacralização que paira sobre estes operadores judiciais, armados em impolutos "orgãos de soberania", impede, por exemplo, que um qualquer cidadão possa chamar incompetente a um juíz incompetente, sem o risco de cair na imediata alçada ... de outro juíz! Às vezes, trata-se de uns miudecos acabados de sair das escolas de magistratura, sem experiência da vida e do foro, produtores de decisões absurdas e irresponsáveis, que ganham logo à sua volta uma espécie de temor reverencial, que os protege da denúncia de que "o rei vai nu".

A "importância" que certos juízes se atribuem a si próprios foi sempre ridicularizada pelos seus pares mais responsáveis, pouco satisfeitos com o impacto negativo que esse abuso do conceito de "independência do poder judicial", pode provocar sobre a imagem da classe.

Um dia dos anos 90, essa grande figura que é o magistrado José Matos Fernandes, ao tempo secretário de Estado adjunto e da Justiça, olhou do gabinete do ministro para a rua e, de repente, chamou quem estava na sala: "Olhem! Olhem! Vai ali um órgão de soberania!" Toda a gente arrancou para as vidraças que davam sobre a varanda. Lá em baixo, no terreiro do Paço, havia gente a cruzar a praça. Que queria ele dizer com o "órgão de soberania"?, perguntou alguém? Com aquele sorriso magnífico com que lhe ouvi algumas das mais deliciosas histórias da vida judicial, ele esclareceu: "Então não viram? Ia ali um juiz..." E lá apontou uma dessas figuras para quem a sala de audiências era um mero cenário que intervalava as suas aparições perante as câmaras televisivas.”

Nem sempre nos revemos no que publicámos no passado. Neste caso, fico confortável.

Paulo Roberto de Almeida


Paulo Roberto de Almeida é um embaixador brasileiro. Conheci-o quando por lá chefiei a nossa missão diplomática e ganhou a minha admiração pelo seu empenhado estudo da política externa do seu país. É autor de uma bibliografia impressionante e mantém o blogue “Diplomatizzando”, para mim de consulta diária.

O PT nunca gostou de Paulo Roberto de Almeida. A corrente dominante no Itamaraty, durante os anos de Lula e de Dilma, não apreciava minimamente o seu espírito independente, a sua leitura do que entendia serem os interesses permanentes brasileiros na ordem externa e da postura diplomática que considerava que melhor os defenderia. E ele pagou, em termos de carreira profissional, onde já tinha tido postos muito importantes, um forte preço por isso. A defesa de uma diplomacia não ideológica não caía bem num Itamaraty que, manifestamente, não ia por esse caminho.

Em face da nova situação instalada no Brasil, após as últimas eleições, fiquei curioso sobre qual iria ser o futuro de Paulo Roberto de Almeida. Desde cedo, tive um pressentimento: se, com a esquerda no poder, o Paulo fora adepto de uma diplomacia não sectária e sem viés ideológico, seguramente que o não via a favorecer o enviesamento extremo, mas de sinal contrário, que agora passou a dominar o discurso e a prática da política externa brasileira.

Não me enganei. Paulo Roberto de Almeida, um democrata corajoso e um cidadão que pensa pela sua cabeça, tem uma perspetiva elaborada sobre a postura brasileira na ordem externa, que não passa pela adesão a ondas cíclicas de fervor ideológico. A sua conhecida liberdade e independência de pensamento não parecem compatíveis com a orientação, extremada e radical, a que o Itamaraty está a ser sujeito nos últimos tempos.

O embaixador Paulo Roberto de Almeida acaba de ser demitido pelo governo Bolsonaro do cargo de diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, horas depois de ter reproduzido no seu blogue, sem comentários, três artigos sobre a atual política externa do Brasil face à Venezuela: um de Rubens Ricupero, uma imensa figura da diplomacia brasileira, outro do antigo presidente Fernando Henrique Cardoso e, finalmente, um outro do atual Ministro das Relações Exteriores. 

Deixo ao Paulo Roberto de Almeida o meu abraço amigo e solidário, num tempo que imagino difícil. Ele sabe bem, contudo, que eu respeito sempre a velha quadra popular portuguesa: “Por me veres em baixo agora / Não me negues a tua estima. / Os alcatruzes da nora / nem sempre andam por cima.”

quarta-feira, março 06, 2019

Não como com hashi!


Sou muito pouco dado a comidas “étnicas”. Embora tenha andado um pouco pelo mundo, e tenha vivido ou frequentado algumas cidades (Londres, Nova Iorque, Paris, São Paulo) onde essa diversidade culinária estava muito bem representada, nunca fui um consumidor regular desses sabores. Estranho? Talvez, mas cada um é como é, não é?

Sou também de um tempo em que, por cá, os únicos restaurantes ”estrangeiros” existentes eram os indianos, na altura sem a sofisticação das suas várias declinações regionais - e uma certa Índia ainda era então “portuguesa”, não era? 

Creio que só depois é que abriram uns italianos (destes, as pizzarias foram as últimas, ainda nos anos 70), mais tarde uns auto-proclamados franceses, mas a proximidade de paladar destes com certa cozinha portuguesa faz com que não caibam, em definitivo, no meu conceito de “estrangeiro”, como é também o caso das diversas cozinhas espanholas.

Um pouco mais tarde vieram os chineses e, mais tarde, os japoneses. E, claro, passou também a haver mexicanos e gregos, brasileiros e marroquinos, russos e argentinos, peruanos e libaneses, tibetanos e belgas e moçambicanos, e agora também sírios e paquistaneses, e apenas dos que me lembro.

Serve isto para dizer que, desde o primeiro instante, me recusei a utilizar os “hashi”, os “pauzinhos” com que é suposto manifestarmos a nossa familiaridade com a forma asiática de comer. Admito que haja quem goste do ritual mas, por mim, achei sempre aquilo uma espécie de folclore a que nunca me sujeitei.

Por essa razão, quando confrontado com culinária asiática (e raramente o sou, pelo menos por minha iniciativa, note-se), ou mesmo “de fusão”, num qualquer restaurante, português ou estrangeiro, exijo sempre faca e garfo. Enfrento por essa razão, com toda a naturalidade, os olhares de reprovação que acompanham essa minha deliberada falta de adequação às regras do local. 

Porque refiro agora isto? Porque essa experiência sucedeu-me há muito pouco tempo e vi, comigo entre o divertido e o provocatório, o olhar espantado que as pessoas me dedicavam. E, apenas por isso, tive agora vontade de o escrever. OK?

Paulo Roberto de Almeida


Dedico ao embaixador brasileiro Paulo Roberto de Almeida, um diplomata (anti-lulista, note-se!) “saneado” pelo governo Bolsonaro, o meu artigo hoje no “Jornal de Notícias”, que pode ler aqui.

segunda-feira, março 04, 2019

Amigos perdidos

Há pouco, por uma qualquer razão, lembrei-me deles. Dos amigos que, entretanto, se foram. Não me refiro aos que morreram, mas aos que, com o tempo, se foram afastando, nos caminhos da vida. Não foram muitos, mas alguns eram mesmo dos “de toda a vida”, como algumas pessoas acham “bem” dizer. Em nenhuma dessa meia-dúzia de separações me pertenceu o gesto, tendo sido eles que tomaram a iniciativa de sair de cena. Às vezes, por razões que me pareceram fúteis, outros por um quid pro quo sem sentido, outros ainda por motivos que, à certa, nunca cheguei a perceber muito bem. Num ou outro caso, pela política, imaginem! Terei tido culpas “no cartório”? Quem sou eu para julgar as razões dos outros, quando, por vezes, nem as minhas consigo avaliar bem! Uma coisa já concluí: esta vida não é suficientemente longa para que tenhamos tempo para nos preocupar e ficar a maturar em tudo o que ela nos traz de menos agradável. O que lá vai lá vai! Olhar em frente, porque o caminho é por aí. É que a vida são dois dias e o Carnaval são três - e um já quase passou!

É isto?

meu bue cenas fixe chaval altamente nice curtir baril top man coche fatela “uma beca estranho” brutal “tás a ver?” “Curtir tótil” bacano cota puto ya conhé “tipo a curtir” “bora lá” fónix pitar tasse bem meu irmao bazar pica superbem guito babado bombar fogo népia chibar

O regresso de Monroe


Um dia, numa conversa em Caracas com Hugo Chávez, Lula da Silva fez-lhe notar que o desequilíbrio da balança comercial entre a Venezuela e o Brasil, em especial em bens de consumo corrente, atingira um tal ponto que, embora o saldo fosse agradável para a economia brasileira, começava a ter uma dimensão com que ele próprio, como amigo da Venezuela, não podia deixar de preocupar-se. Lula aconselhou-o, nesse encontro, a deixar criar unidades produtivas em áreas que pudessem dar resposta a algumas dessas carências mais evidentes, até ali supridas por compras ao exterior, adquiridas com os rendimentos do petróleo. Como me contou um ministro presente à conversa, Chávez retorquiu que estava a pensar criar empresas públicas para esses setores produtivos. O presidente brasileiro terá reagido: era em empresas privadas que estava a pensar, em abertura ao investimento estrangeiro - como o então sucesso da economia brasileira bem o provava. Chávez reagiu: “Privados? Nem pensar!” e a ideia ficou por ali.

O socialismo bolivariano era isso mesmo: uma obsessão estatizante, assente em políticas de distribuição de uma riqueza que não correspondia a um real crescimento do país, conduzindo a um ambiente inflacionário e, no plano político, a uma polarização maniqueísta que, cada vez mais, passou a recorrer ao sufoco das vozes dissonantes, nomeadamente através da domesticação da comunicação social. O facto dos setores conservadores venezuelanos, por mais de uma vez, terem dado mostras de não ter pejo em recorrer ao golpismo armado, para inverterem a legitimidade eleitoral que conduzira Chávez à presidência, conferia a este uma forte autoridade interna e, no plano externo, dava-lhe uma certa aura de um poder que, embora radical no formato, parecia ratificado pelo povo. Com o tempo, o autoritarismo político passou a estar presente no dia-a-dia do país. A Venezuela não era Cuba, não tinha o histórico da ilha de Fidel, mas, para se afirmar, Chávez ia mimetizando algumas das práticas repressivas mais detestáveis do seu parceiro privilegiado na região. O seu carisma continuava a suscitar algum proselitismo militante, mas a prova provada de uma impopularidade que se foi alargando era o facto das forças armadas e policiais se terem convertido na sua indispensável guarda pretoriana – contudo, rodeadas de acusações de implicação em negócios pouco claros.

Maduro não é Chávez, mas ninguém pode garantir que, se este tivesse sobrevivido, a Venezuela estaria hoje muito diferente, porque todos os erros que conduziram à atual situação já estavam nas cartas, ao tempo do antigo presidente. O modelo “bolivariano” era, desde o primeiro momento, um desastre anunciado, num mundo que já não ia por aí. Maduro apenas o conduziu inabilmente, e de uma forma quase caricata, ao impasse em que acabou por cair. O facto de uma guerra civil não ter eclodido é talvez o maior milagre que se produziu na Venezuela, mas nem sequer o podemos creditar à gestão de Maduro.

Depois de Cuba, a Venezuela era, de há muito e à evidência, uma espinha encravada nos humores de Washington na América Latina. Não se tratava de um caso qualquer: estamos a falar de um Estado com reservas imensas de petróleo e outras riquezas, circunstância que é óbvio não ser indiferente a um país que delas tem sido um pouco discreto cliente, na fria “realpolitik” do negócio. No passado recente, a bravata anti-yankee dos dirigentes venezuelanos ia sendo tida à conta de uma realidade incómoda que apenas havia que suportar, tanto mais que o país não era “produtor” de insegurança na sua periferia que justificasse uma ação específica nele focada, salvo o apoio às forças opositoras internas. O que é que mudou, entretanto?

No essencial, foi-se esgotando a complacência da comunidade internacional em face de um regime que, dia após dia, se tinha convertido numa mera caricatura democrática. O descaso oficial perante uma situação humanitária cada vez mais trágica, e o completo fechar de portas por Maduro a um diálogo com setores fora do núcleo político-social do governo, começou a escandalizar o mundo, com a União Europeia a dar sinais de crescente inquietude. A isto se somou, nos últimos meses, o afastamento claro do Brasil, com uma nova administração à qual, por razões de política interna, conveio a diabolização do modelo bolivariano. Este fator não tem sido sublinhado com a importância que julgo que realmente tem, porque tudo indica que o empenhamento americano, na tentativa de um rápido derrube de Maduro, dificilmente se teria processado, pelo menos nos moldes que assumiu, se, da parte de Brasília, como potência sub-regional, fosse presumível a promoção de uma qualquer reação, menos de “proteção” de Maduro e mais de rejeição da intromissão americana.

Verdade seja que, ao forçar agora, com determinação, a mão à Venezuela, os Estados Unidos assumem, num novo ciclo histórico, o seu nunca dispensado “droit de regard” sobre a América Latina, na linha clássica da “doutrina Monroe”. Fazem-no numa causa que sabem ser hoje popular em vários quadrantes, explorando o inédito isolamento em que Maduro se deixou cair. Trump aproveita este tipo de “fogachos” como uma oportunidade para gerar uma fácil unidade interna, que lhe pode render alguns dividendos políticos. Na ordem externa, esta iniciativa pode também garantir aos EUA, aos olhos de alguns, um estatuto de liderança na promoção dos valores democráticos. Além disso, deixando o juízo sobre estas prioridades ao sabor de cada um, trata-se de uma oportunidade soberana para Washington poder assegurar um lugar privilegiado na preservação dos seus próprios interesses económicos na região. Ainda neste jogo de sombras que é a agenda de desígnios, convirá notar um ponto que, com toda a certeza, nunca deixou de estar presente na coreografia geopolítica da América: Cuba. Uma queda de Maduro, com Lula e os seus heterónimos já fora do cenário, levará o regime de Havana a sentir-se cada vez mais fragilizado – e isso não pode deixar de fazer parte das contas de prazer em Washington.

(Artigo publicado na Revista, a convite do "Expresso", em 2 de março de 2019)

domingo, março 03, 2019

A quem não convém que se fale disto?


Procópio


Quando, há horas, lá entrei, a média etária deve ter subido vertiginosamente para os 30 anos. O “Procópio” está muito diferente, bem mais jovem, muito mais alegre e agradável do que nos últimos anos do “nosso tempo”. Ah! E “também” às vezes se fala português por lá!

Olhei para a mesa “Dois”. Estava ocupada por pessoal muito distinto do que nós éramos. Imagino que a conversa não tivesse rigorosamente nada a ver com a que, por décadas, por ali alimentámos. 

É que tudo isso já lá vai, há muito! O “Procópio”, com naturalidade e aparentemente sem o menor esforço, soube reinventar-se, encontrou uma nova forma de estar na noite de Lisboa - outra gente, outros copos, outro tipo de diversão. E, dessa forma, partiu para uma nova fase da sua “estranha” e bela forma de vida.

Há já muitas semanas que fazia “gazeta” do meu bar de sempre. Ontem, ao final da noite, deu-me para passar por lá. Fiquei à conversa com a “Sedonalice”, ao balcão, com umas cervejolas a liquefazer a noite.

Quero dizer que fiquei muito feliz ao constatar que o “Procópio” continua a ser o lugar geométrico onde alguma noite saudável de Lisboa cada vez mais se encontra. 

Há muitos outros bares em Lisboa? Claro que sim! Mas quem sabe destas coisas também sabe que não é a mesma coisa! O “Procópio” é único!

sábado, março 02, 2019

O regresso de Monroe

“O regresso de Monroe” é o título que dei ao artigo que hoje fui convidado a publicar na Revista do “Expresso” sobre a atitude americana perante a Venezuela.

sexta-feira, março 01, 2019

O mundo é pequeno!


Vim, há dois dias, a Bruxelas para fazer parte de um grupo de trabalho, integrado por um representante de cada Estado membro da União Europeia, que vai preparar um relatório sobre uma determinada temática internacional. Assinei hoje o (simpático, diga-se) contrato, mas não consegui satisfazer a minha curiosidade sobre quem terá, por aqui, sugerido o meu nome às duas entidades (ambas privadas e muito ciosas da sua independência face aos governos), uma alemã e outra belga, que me recrutaram para trabalhar nos próximos meses. Um dia, espero saber e agradecerei.

À entrada para a reunião, ouvi alguém dizer: “Estás na mesma!”. Era um velho amigo austríaco, que já não via há quinze anos e que, durante a nossa presidência da OSCE, eu havia empossado num cargo da organização, na Polónia. No seu país, passa agora a ter a mesma função do que eu. O que ele dizia não era, de todo, verdade, como era óbvio, mas não deixava de ser agradável de ouvir. 

Estava ainda nessa conversa quando alguém me pôs uma mão no ombro e me perguntou: “Ainda andas pelo Brasil?”. Era um qualificado diplomata dinamarquês, que conheço há décadas, e que havia encontrado, pela última vez, creio que em 2006, em S. Paulo - trata-se de um grande especialista das coisas europeias, que fez grande parte da sua carreira em Bruxelas, que agora vai ser um dos coordenadores do nosso trabalho e que tive como colega nomeadamente na negociação dos tratados de Amesterdão e Nice.

Ao final das primeiras horas de debate, no primeiro “coffee break”, dirigiu-se-me uma senhora búlgara, cuja cara, confesso, não me dizia nada: “Não se lembra da sua ida a Sófia?”. Tinha sido a seu convite que eu tinha visitado dessa vez a Bulgária, há bem mais de duas décadas, quando ambos tínhamos funções idênticas nos nossos respetivos governos. A memória veio então.

À saída, sob um vento e chuva fria desta invernosa Bruxelas, no regresso em passo rápido para o hotel, o representante espanhol no grupo perguntou-me: “Trabalhas com o Luis Tomé?”. Claro que sim! Como é que ele tinha adivinhado? Trata-se de um amigo próximo desse meu colega na Universidade Autónoma de Lisboa (como também o é de Nuno Severiano Teixeira) e, ao ler o meu currículo, dera conta da minha ligação à UAL.

O mundo é bem pequeno e Bruxelas, no fundo, é, desde há muito, uma das minhas “casas” habituais de passagem (embora o nunca tenha sido de vida). Há minutos, antes do almoço, estava eu a encher-me de livros, na magnífica “Filigranes”, quando ouvi, em bom português: “Com que então sempre interessado pela banda desenhada!”. Eu estava, de facto, a pensar como ia ter espaço para meter na mala o último “Blake & Mortimer” (já tinha comprado na Buchholz a tradução portuguesa, mas não resisti a adquirir o incomparável texto em francês deste “falso” Edgard P. Jacobs), quando este velho amigo português me surgiu ao encontro (se tivesse sido uns minutos antes, tinha-me apanhado a folhear um comprometedor Manara...)

Bom, vou andando para o aeroporto, porque esta capital belga cada vez se parece mais com o Chiado...

Maria João Rodrigues


Longe de mim imiscuir-me na sempre complexa questão dos nomes da lista socialista às eleições para o Parlamento Europeu, mas ficaria de mal com a minha consciência se não deixasse aqui expresso, preto-no-branco, que considero que a saída de Maria João Rodrigues representa uma perda de vulto na representação do PS naquele instância.

Maria João Rodrigues, de quem tive o gosto de ser colega num governo e com quem depois trabalhei muito de perto na presidência da União Europeia de 2000, onde foi o braço direito de António Guterres, é uma das pessoas que, entre nós, melhor conhece as questões europeias, dispondo de um grande prestígio nas diversas instituições, que lhe adveio do seu grande sentido de responsabilidade, de uma dedicação sem limites ao trabalho e de uma inquestionável competência no tratamento de todos os dossiês em que se envolveu.

quinta-feira, fevereiro 28, 2019

Digo eu, não sei...


Há dias em que o ato de escrever num jornal se converte numa operação de elevado risco, tal a volatilidade dos acontecimentos e o facto de uma qualquer “mudança do vento“ poder alterar, num instante, toda a lógica em que a análise imediatamente anterior se apoiava. É o que acontece, por estes dias, com o Brexit.

Duvido que muitos consigam hoje seguir, passo a passo e com um mínimo de rigor, este debate – uma questão em que as posições do governo de Theresa May são marcadas por uma tal tergiversação tática, em termos da “costura’ de alianças, que legitima que nos perguntemos se, por detrás dela, existe alguma clareza estratégica – que passe para além do seu esforço de sobrevivência política. Declarações e “tweets” de várias fontes sucedem-se, são citados nos noticiários como doutrina a respeitar, numa cadência que soma confusão à confusão. Por isso, como já experimentei, estar dois ou três dias sem olhar as notícias de Londres pode deixar-nos perdidos face a esta atualidade tão movediça. Alguns, mais cínicos, acabarão por concluir que, no final de contas, tudo continua na mesma. Talvez, mas isso não nos deve sossegar, bem antes pelo contrário.

Quando Theresa May vem aventar a possibilidade de adiar a data “fatal” e propor uma prorrogação do Artigo 50°, o que é que isso significa? Quando o líder trabalhista Jeremy Corbyn vem propor um segundo referendo, hipótese que grande parte da classe política britânica pareceu sempre afastar, por receio de ela poder surgir como desrespeitosa face à vontade soberana manifestada no primeiro voto, que podemos concluir? Uma única coisa: que os britânicos com um mínimo de responsabilidades já entenderam que o Brexit, com mais ou menos medidas compensatórias ou atenuantes, acabará sempre por ser um desastre para o seu país.

Percebo que a unidade dos “27”, conseguida em torno do “pacote” que foi negociado com os britânicos, e que May não consegue “vender” internamente, tem um valor inestimável. Mas lembraria esta coisa simples e que creio muito óbvia: tudo aquilo que foi negociado tem um valor “zero” se não conseguir ser posto em prática. É a Theresa May quem compete conseguir isso? Claro que sim, mas se ela não conseguir, o cenário do “hard Brexit” é um pesadelo que passa a ser nosso. Embora isto possa parecer uma heresia, pergunto-me se a UE, num esforço que teria muito também de egoísta, não poderia ter uma flexibilidade acrescida que ajudasse a evitar a tragédia. Como se diz na minha terra, “digo eu, não sei...”

Zaventem



Passei por lá há poucas horas, coisa que não fazia há dois ou três anos. Pelo aeroporto de Bruxelas, dito de Zaventem.

Ao contrário do que vulgarmente me sucede, voltei a sentir alguma nostalgia pela velha aerogare, construída para a exposição universal de 1958. Com o tempo, ela chegou a atingir momentos de notória decrepitude, com pássaros a voar pelos corredores, redes a tentar travá-los e os grandes vidros fazendo sombras de sujidade. 

Sou bem antigo por ali. Assisti ao nascer do velho "satélite", ao fundo do antigo grande corredor. Vi construir, depois, do outro lado, a nova ala, que tornou aquilo que era um aeroporto de culto num espaço igual a todos os outros, como hoje já acontece com a Portela. Com os anos, fui descobrindo espaços novos, naquilo que hoje parece ser um espaço de gente apressada e quase angustiada, um imenso centro comercial. Hoje, surgem BMW iluminados, topo de gama, entre as passadeiras, a acenarem-nos com aquilo que não poderemos vir a ter. Já não me reconheço neste Zaventem, sou sincero! Mas, devemos ser justos: este novo aeroporto, embora mais “desumano”, é bem mais agradável e com melhor aspeto do que o antigo!

Devo ainda reconhecer uma coisa: se há um espaço desta natureza, em todo o mundo (e, caramba, conheço 109 países!), que me diz muito, por tantas razões afetivas, algumas inconfessáveis, é Zaventem - claro que depois da Portela e Pedras Rubras, sobre cujas relação comigo seria quase capaz de escrever um livro.

Por Zaventem passei os meus primeiros banhos de cosmopolitismo oficial, na segunda metade dos anos 70, como portador da "mala diplomática", na descoberta do "glamour" das viagens aéreas, ao tempo em que isso existia (ainda haverá “malas diplomáticas acompanhadas”?). À chegada, recordo, esperava-nos então, rezingão, o senhor Rézo, o motorista da nossa delegação junto da NATO, que sempre nos encaminhava para uns hotéis manhosos, onde se sabia que ele tinha comissão garantida.

(Um dia, troquei-lhe as voltas e, à chegada, anunciei ter reservado em um outro hotel. Ele era fiel do “Albert I”, na place Rogier, mas eu (depois de, numa noite umas semanas antes, ter aí tido a experiência bizarra de baratas sobre a cama) havia-me decidido por um tal “Sirius”, ali ao lado. O homem ficou silenciosamente furioso. Para aliviar a conversa, perguntei-lhe o que achava da minha escolha. Fez um silêncio, mas depois foi soberbo: “Pas mal, pour un bordel!”. Grande Rézo! Era francês, de Valenciennes, coisa que eu de início desconhecia. Tinha sido desclocado de Paris, quanto a NATO estava por lá, antes de De Gaulle ter tido um arrufo com os americanos. Era casado com a telefonista da nossa delegação na organização, uma loira de cabeleireiro, bem mais simpática do que o marido, o que, aliás, não era difícil. Na primeira vez que o conheci, a “armar” que falava francês à moda da Bélgica, em conversa no carro, usei a palavra “nonante”, que é a forma belga de dizer “noventa”, para o francês “quatre-vingt dix”. Rézo, que detestava a Bélgica e os belgas, “fuzilou-me”: “Vous me prennez pour un belge?! Mais non! Je suis français, monsieur!”. Tomei nota.)

Já mais tarde, depois de 1986, o aeroporto de Bruxelas passou a ser um meu destino bem habitual, pela TAP ou pela desaparecida Sabena (agora chama-se Brussels Airlines), nas deslocações regulares a "grupos de trabalho" da então CEE - o nome da atual União Europeia. Um comboio soturno levava-nos de lá, já pela noite dentro, para o centro da cidade, com os diplomatas e técnicos portugueses a saírem nas estações do Midi ou do Nord, para daí rumarem aos hotéis, como o Métropole e outros bem piores destinos da "moda", que cabiam nas nossas pobres ajudas de custo. Não eram tempos gloriosos, mas eu, à distância temporal, acho-lhes alguma graça, confesso.

Finalmente, o aeroporto de Zaventem ficou-me, para memória eterna, ligado a outros tempos que, embora também com bastante interesse, acabaram por ser de um imenso cansaço - os meus anos de governo, a partir de 1995 e até 2001. 

Chegava a Bruxelas esgotado de dias incessantes em Lisboa ou noutras capitais, atulhado de papelada, ensonado e esfalfado. (Cheguei a adormecer na Portela, ainda antes de levantar voo, e a acordar com a tremideira da aterragem em Bruxelas, com o meu “pessoal” a pedir às hospedeiras para não me acordarem). No desejado cenário no fim da manga, tentava descortinar a figura amiga do senhor Barreiros, o simpático funcionário da Representação Permanente (Reper, para os iniciados), que me aliviava o peso da pasta e me conduzia, por corredores que sempre presumi serem VIP, até a um parque de estacionamento, onde me aguardava o fiel Willhelm, um motorista flamengo, tão calado como discreto, como o futuro o viria a provar à saciedade. E lá ia eu, para o Hilton, para o SAS ou para o Montgomery, arrasado de sono, ajoujado de dossiês chatíssimos, com os quais, ao lado, cheguei adormecer e a acordar no dia seguinte, ainda com a luz acesa...

Por aquele aeroporto passei então dezenas (qual quê! centenas!) de horas de atrasos, de conversas, de esperas, de compras. Por lá me deixei adormecer um dia, de fadiga, num banco, num final de tarde, perdendo um voo para o Luxemburgo, o que me obrigou a dormir, quase envergonhado comigo mesmo, num hotel próximo - e não há nada no mundo mais triste do que um hotel de aeroporto, acreditem! Por ali adquiri coisas que ainda hoje estão na minha memória familiar, num tempo em que, em Portugal, a oferta proporcionada pelas lojas era muito diferente das da "estranja". Por lá festejei "vitórias" arrancadas nas lides europeias e ali me forneci de livros inúteis, que comprava para entreter os minutos que antecediam os aviões - minutos que, no meu caso, são sempre mais, porque faço parte dos que, por regra e para desespero dos atrasados crónicos, chegam a tempo e horas. 

Lembrei-me disso, ao final da tarde de hoje, numa breve passagem por Zaventem. Com alguma nostalgia, assumo. Serão saudades doutros tempos ou saudades de mim nesses tempos? Já escrevi isso por aqui, não escrevi?

terça-feira, fevereiro 26, 2019

Equidade

Há dias, participei num exercício de âmbito académico que envolveu pessoas com diferentes responsabilidades empresariais, numa escola universitária de topo no setor. No centro da discussão estava a questão da participação das mulheres em lugares de responsabilidade nas empresas, o “estado” de Portugal nesse contexto e as razões que, entre nós, podem motivar as dificuldades de acelerar uma maior equidade a esse nível. 

A certa altura, o CEO de uma grande empresa deu conta da reação que teve, não há tanto tempo quanto isso, ao ter designado uma mulher para sua chefe de gabinete. Por incrível que pareça, uma atitude de espanto foi expressa por várias pessoas, bem dentro deste século XXI. 

Quando ocupei funções governativas, e já lá vão quase duas décadas, dois dos quatro chefes de gabinete que tive foram mulheres. As presenças femininas no meu gabinete eram tantas que, num determinado período, constatou-se que, além de mim e de dois motoristas, o resto do pessoal, das técnicas ao pessoal administrativo, era todo feminino. Julgo que nenhum membro do governo, em democracia, bateu este “record”. Ao ponto de uma dessas amigas se queixar, um dia: “Fazem falta homens nas nossas salas de trabalho...”

segunda-feira, fevereiro 25, 2019

As armas da Venezuela


Há cerca de dois anos, contei esta historieta no meu blogue. Hoje, pelas razões que facilmente compreenderão, lembrei-me dela:

"Mário Soares não tinha por hábito pernoitar nas embaixadas, preferindo quase sempre os hotéis. Apenas em Brasília, numa das vezes que por lá passou, o convenci a dar-me o gosto de ali ficar. Mas foram bastantes as noites, em vários países, em que com ele fiquei à conversa pela noite dentro. Nessas ocasiões, eu aproveitava para saciar a minha curiosidade em torno das suas inesgotáveis memórias, sempre marcadas por um rigor dos factos, datas e nomes. Muito aprendi então sobre a história da oposição democrática à ditadura e os bastidores da política doméstica no pós-1974.

Naquela noite, eu juntara à sua volta, num jantar, o antigo presidente da República, José Sarney, e o então vice-presidente, José Alencar. Sarney era um velho conhecido de Mário Soares, que as voltas da política tornara, à época, um leal aliado de Lula, e Alencar era um querido amigo pessoal meu, que achei que Soares gostaria de conhecer melhor.

O jantar começou muito bem, com a bonomia e as histórias mineiras do vice-presidente a deliciarem o nosso antigo presidente. Este tinha vindo, na véspera, da Venezuela, onde entrevistara o presidente Hugo Chávez para um programa televisivo. Estava visivelmente entusiasmado com o líder venezuelano, sentimento que eu sabia muito longe de partilhado pelos dois convivas brasileiros. Alencar mostrava-se mais parcimonioso nestas reservas do que José Sarney, que, tempos mais tarde, acabaria por assumir no Senado brasileiro uma oposição forte à entrada da Venezuela para o Mercosul.

A certo passo do repasto, com a conversa quase sempre em torno da figura de Chávez, comecei a notar que o diálogo entre Soares e Sarney se estava a tornar um tanto tenso. Entre outras discordâncias, Sarney explicava a Soares que havia setores brasileiros muito preocupados com as aquisições de material militar que Chavez tinha recentemente feito, e procurava chamar em apoio das suas teses o vice-presidente da República, José Alencar, que, até meses antes, tinha acumulado o cargo com o de ministro da Defesa. Este, porém, por não querer distanciar-se da atitude nada crítica de Lula face a Chávez, mantinha-se discreto.

Soares, contudo, acreditava piamente na boa vontade de Hugo Chávez, creditava-o de boas intenções e de um real interesse em manter um relacionamento positivo com o Brasil. Num determinado momento, voltando-se para Sarney, disse-lhe: "Ó José Sarney! Eu conheço muito melhor o Chavez do que você! E, por isso, posso assegurar-lhe que nunca uma arma venezuelana que ele controle se voltará contra um interesse do Brasil".

Sarney fechou aquela cara de brasileiro que, do bigode ao cabelo negro com brilhantina, refletia uma imagem caricatural do brasileiro da sua idade a que o mundo dos anos 50 e 60 se habituara, e, longe de convencido, voltando-se para Soares, disse-lhe: "Ó Mário! Nem você nem eu já temos idade para acreditar nessas coisas! Não seja ingénuo!".

Mário Soares não gostou, retorquiu firme, mas com procurada elegância. Eu fiz um sinal a Alencar para me ajudar a amenizar a conversa. Isso foi conseguido, sem dificuldade, mas pode dizer-se que aquele que seria o último encontro entre os dois antigos presidentes não acabou em ambiente de grande euforia."

Chávez já morreu há muito e por lá está agora Maduro. Alencar e Soares também já desapareceram. Olhando as coisas à luz dos riscos potenciais nos dias que correm, com a escalada entre os dois países, em que só se pode esperar que o bom-senso prevaleça, lembrei-me das preocupações de Sarney.

Biafra


Li, há pouco, que vai ser publicado um livro sobre a aventura de alguns portugueses envolvidos no apoio aéreo ao Biafra. Ainda alguém se lembra, nos dias de hoje, dessa República secessionista da Nigéria, dos ibos que por lá habitavam e das fortes razões do petróleo, origem dessa guerra inútil, com muitos mortos e fortes cumplicidades internacionais? 

Ainda guardo algures uma bela nota de “Banco do Biafra”, imaculada e nunca usada, creio que impressa nesta Lisboa onde então vigorava um regime que apostava nos Briafras, nos Catangas, nas Rodésias e em tudo o que fragilizasse a África que se opunha ao colonialismo, de caminho, e também para isso, dando refúgio aos “The Dogs of War” que Frederick Forsyth tão bem retratou.

Um dia, nos inícios de 1976, recém-entrado na diplomacia, fui destacado para ir efetuar uma determinada missão ao recém-criado Estado de São Tomé e Príncipe. A minha estada por lá seria de uma semana, porque era esse o ritmo dos voos da Air Gabon, num pequeno avião que nos fazia chegar e sair da ilha para Libreville, num tempo em que o único percurso alternativo era uma ligação da Taag, através uma Angola em guerra.

Nessa semana, calhou passar uns fins de tarde naquilo que se chamava o “Benguidoxe” (escrever-se-ia assim?), uma espécie de pensão com esplanada, no centro da cidade, onde se bebiam umas cervejas. Creio que através do Jorge Coimbra, um amigo do liceu de Vila Real que vim a encontrar por lá, veio um dia parar à minha mesa (ou eu fui parar à mesa dele) uma figura curiosa. Era um homem grande e cordial, conversador, de um género de contador de histórias que se encontra muito nesses lugares onde o tempo se suspendeu por algum tempo - como era bem o caso da cidade de São Tomé de então. 

O meu interlocutor chamava-se Villaret - um nome que não esquece quem tem a memória do Portugal dessa época. Era piloto e tinha andado envolvido na guerra do Biafra. Contou-me episódios dessa aventura em que aquela ilha, recém-independente, havia também tido o seu quinhão de participação. Eram relatos onde não havia nenhuma arrogância de heroísmo, muito embora as missões tivessem um elevado grau de risco. Lembrei-me dele agora. Surgirá o seu nome no livro que agora vai ser publicado? 

Saí de São Tomé, nesse mês de Fevereiro de 1976, a caminho do Gabão. Ao fundo do aeroporto estava um velho Constellation. Perguntei a alguém o que era aquilo. “É da guerra do Biafra”, respondeu-me. Tentei tirar uma fotografia ao inutilizado avião mas foi-me dito que era proibido, “por razões de segurança”. Não fossem essas brincadeiras serem pouco prudentes, nesses tempos muito afirmativos de juventude independentista, e teria perguntado se a ordem era “do tempo do colono”. Só podia!, como dizem os brasileiros. 

Voltei lá anos depois. O velho Constellation (descobri agora uma foto dele na net!) ainda por ali continuava, a apodrecer. As coisas, em África, têm sempre um tempo e em especial um ritmo diferente. E que teria acontecido entretanto ao Villaret, que já por lá não andava?

Rockwell