Foi em 1983. Ligaram da portaria da nossa embaixada em Luanda, onde eu era então o “número três”. Um cidadão português, que eu conhecera num encontro ocasional, semanas antes, pedia para me ver, “com a maior urgência”.
Chegou, afogueado, ao meu gabinete. A cara serena e sorridente que eu havia conhecido estava transtornada, com um fácies de visível perturbação. Mandei-o sentar, sossegar, para me explicar o que o trazia ali. O homem suava em bica, mas levei isso à conta do calor que o fim da época do cacimbo trouxera à cidade.
“Senhor doutor, tem de me ajudar! Está a ser cometida uma grave injustiça! Prenderam, hoje de manhã, “Fulano de Tal” (um nome estranho para mim). Acusam-no de ter traficado diamantes. Imagine! Um homem como ele, uma jóia de pessoa, transmontano como nós, não sei se o conhece?, pode lá estar envolvido em semelhante trapalhada!”
Eu lembrava-me de que o meu interlocutor era transmontano, mas tinha para mim que ser de Trás-os-Montes (que me desculpem os meus conterrâneos) estava longe de poder ser um atestado automático de inocência. (Não, não vale a pena trazerem à colação, em comentários, nomes de figuras conhecidas de transmontanos envolvidos em sarilhadas).
O assunto, contudo, não era comigo. E disse-lho logo. A responsabilidade pela proteção dos cidadãos nacionais compete às estruturas consulares. Em Luanda, havia um Consulado-Geral. Ora eu trabalhava na embaixada (só quando não existe uma estrutura consular autónoma é que as embaixadas dispõem de uma Secção Consular. Curiosamente, eu tinha acabado de ser responsável por uma, durante três anos, em. Oslo). O máximo que eu podia fazer era levá-lo ao Consulado-Geral, dois andares abaixo. E lá fomos.
“Espero que o senhor doutor não se desinteresse pelo assunto”, foi-me dizendo pela escada abaixo, sempre crispado e tenso. Eu, que mal o conhecia, fiz-me de desentendido. Não podia imiscuir-me no que minimamente me não competia. Levei-o ao gabinete do vice-cônsul, com quem o deixei à conversa. E regressei ao meu trabalho.
No dia seguinte (ou dias depois), a “bomba” rebentou. Uma extensa rede de tráfico de diamantes fora descoberta em Angola. Haveria cidadãos portugueses envolvidos. O “Fulano de Tal”, amigo do meu interlocutor, de acordo com o que se sabia, seria um dos acusados. Na altura, senti pena pelo meu visitante de uns dias antes: afinal, o seu amigo, o “nosso conterrâneo”, ia acabar por ter uns tempos difíceis.
Passaram mais uns tempos. Surgiu então a notícia de que o homem que me visitara fora também detido: também ele estaria profundamente envolvido na rede de tráfico de diamantes.
Fiz então um “flash back”: afinal, toda aquela perturbação que eu testemunhara não seria apenas de preocupação pelo destino do amigo, era talvez já o forte receio de ele próprio poder ser atingido pelo processo.
“To make a long story short”: o meu visitante foi condenado, bastante tempo mais tarde, a uma pesada pena, de bem mais de dez anos de prisão. O meu colega embaixador Fernando Andresen Guimarães, então cônsul-geral em Luanda, e o vice-cônsul Hermenegildo Gonçalves lembrar-se-ão muito bem de toda esta triste história, que conhecem bem melhor do que eu.
Por que é que me lembrei disto? Talvez pelo facto de, nos últimos dias, todos termos ouvido falar muito de tráfico de diamantes.