Na noite de Santo António, Lisboa regurgitava de pessoas, entre as quais muitos turistas estrangeiros. Entre a Baixa e o alto do Chiado, circulava imensa gente. Para quem vinha da praça do Comércio em direção à zona do Camões, com vontade de ainda dar uma saltada aos festejos no Bairro Alto ou na Bica, o atalho pela escadaria do Metro era a opção mais natural e rápida. Entra-se sob a FNAC, desce-se um pouco (a escada rolante estava parada, mas, a descer, todos os santos populares ajudam) e, depois de atravessar um largo corredor, surgem diante de nós três longos lanços de escadas rolantes, colina acima, que desembocam na zona da Brasileira.
Assim devia ser, mas não era. As escadas rolantes em sentido descendente estavam a funcionar. As que subiam mantinham-se imóveis. Ao meu lado, forçados a grimpar penosamente 252 degraus de uma escadaria paralela muito pouco confortável, centenas de turistas estrangeiros pareciam interrogar-se sobre esta peculiaridade portuguesa. Era uma bela maneira de os receber! E era um gesto que "calava fundo", por parte de uma empresa pública que assim mostrava a sua simpatia e atenção para com os portugueses, em noite festiva.
Às vezes pergunto-me se a ocorrência deste tipo de coisas é apenas estupidez, só incompetência técnica e "deixa-andar", ou, no limite do absurdo, se é mesmo de propósito, por parte de alguém que se quer vingar da vida, estragando a dos outros. Sendo português, a única coisa que eu sei, de certeza segura, é que nada acontecerá à pessoa responsável por este estado de coisas, que configura um profundo desrespeito por nós e por quem nos visita. "Accountability" é uma palavra que nunca terá uma tradução adequada em português.
A propósito deste sentido nacional para a irresponsabilidade, vou contar duas histórias.
Aqui vai a primeira.
Todos assistimos, alguns de nós siderados, à vergonha que foi o hastear da bandeira nacional, virada de pernas-para-o-ar, pelo presidente da República, no dia 5 de outubro do ano passado, no mastro da varanda da Câmara municipal de Lisboa. Como português, senti-me ofendido com este imperdoável descaso, que deixou de sorriso amarelo as ilustres figuras em volta.
Há semanas, estive numa cerimónia no salão nobre do município lisboeta. Numa conversa conjunta com vários responsáveis pela casa, ousei perguntar: "Qual foi a punição atribuída ao funcionário responsável pelo erro da colocação da bandeira, no 5 de outubro? Foi demitido?". Notei, na generalidade dos presentes, algum embaraço provocado pela minha questão. Uma das pessoas do grupo, a medo, retorquiu: "Coitado do homem. Anda por aí, ficou humilhado..."
"Humilhado"? Humilhado foi o presidente da República que o dia comemorava, humilhado deve ter ficado o presidente da Câmara em cuja sede se praticou um ato de incompetência crassa que colocou o país a rir-se das suas instituições. Mas não! Aparentemente, "humilhado" ficou, afinal, o medíocre assalariado, tudo levando a crer que rapidamente terá ficado absolvido e isento de culpas por essa "humilhação". Ao menos, conviria que fosse divulgado o nome da personagem, para que possamos conferir se, um destes dias, não recebe por aí um medalha...
E aqui fica a segunda história, que tem de ser um pouco mais longa*.
Até 2010, Portugal não tinha nenhum embaixador acreditado no Mónaco. Por essa altura, e a exemplo do que muitos países fazem, foi decidido que o embaixador em França (que, por acaso, era eu) passasse, cumulativamente e como não-residente, a representar Portugal no Mónaco. O processo correu os trâmites habituais: foi "pedido o 'agrément' ", através do envio do currículo do embaixador, e, tempos mais tarde, chegou uma "nota verbal" (é mesmo assim) das autoridades monegascas, dirigida à nossa embaixada em Paris, informando do respetivo assentimento para que, em data a combinar, o embaixador designado entregasse as "cartas credenciais" ao soberano, única altura a partir da qual estaria qualificado para exercer as funções. (Para quem esteja menos familiarizado com estas coisas, as "cartas credenciais" são um documento, assinado pelo chefe de Estado, que qualifica um determinado embaixador junto de um seu homólogo estrangeiro, e que são pessoalmente entregues pelo diplomata, naquilo que se chama a sua "apresentação".). Informei de imediato Lisboa de que era preciso mandar publicar o decreto de nomeação e preparar as "cartas", pedindo, simultaneamente, às autoridades monegascas para indicarem uma data na qual o seu soberano pudesse receber-me. As "credenciais" (modo como no jargão diplomático nos referimos à "apresentação das cartas credenciais") ficaram marcadas para cerca de três meses depois.
Lisboa teve, assim, mais de três meses para publicar o decreto e preparar as "cartas", uma tarefa que, sem pressas, se pode fazer em pouco mais de duas semanas. Porque já sei "do que a casa gasta", fui fazendo lembretes informais a Lisboa, sempre acolhidos com "rassurantes" respostas. Na semana anterior ao ato, pagos que estavam já o meu bilhete de avião e um adiantamento da reserva do hotel, bem como combinados todos os procedimentos formais e pedidos os encontros técnicos de trabalho que, subsequentemente às "credenciais", eu teria no Mónaco, comecei a dar-me conta que alguma coisa parecia estar a correr mal em Lisboa. Constatei então uma azáfama que envolvia já a Presidência da República e o gabinete do ministro dos Negócios Estrangeiros. Porque tudo se tinha atrasado, chegou mesmo a encarar-se a necessidade da publicação de um número especial do "Diário da República", apenas com o decreto da minha nomeação para o Mónaco. E também fui informado que as "cartas", que só podiam ser elaboradas depois da publicação do decreto, iriam ser-me enviadas por DHL, na véspera da apresentação das credenciais, no dia do meu voo a caminho do Mónaco. Tudo isto porquê? Porque um qualquer incompetente (cujo nome, acreditem!, não sei nem quero saber) havia deixado atrasar o assunto e todas as entidades envolvidas no processo tinham sido apanhadas desprevenidas.
Que fazer? Não se podiam correr riscos. A experiência ensina a não confiar, em absoluto, na eficácia da DHL. Não houve outra solução que não fosse pedir ao Mónaco para anular toda a cerimónia, para alterar a agenda prevista do príncipe e todos os restantes contactos, com o desagradável impacto que isso teria, para além de encontrar maneira de suportar todos os encargos financeiros já assumidos. Vários meses passaram antes que a cerimónia pudesse voltar a ser organizada.
Perguntei então a Lisboa: "Foi instaurado um inquérito ao responsável por esta gigantesca incompetência? Isto justifica um processo disciplinar!". A resposta foi portuguesmente elucidativa: "'Tás a brincar?! Isto aqui não funciona assim..."
Pois claro que não funciona! Por estas e por outras é que "isto aqui" está como está!
*Imagino que algumas pessoas, em alguns meios oficiais, possam entender menos conveniente trazer-se um episódio desta natureza para a praça pública. Porém, eu acho que só pode temer quem deve.