O dia acabou por se "ajeitar", como se diz na minha terra. Mas, ontem, ao sair de casa, de manhã, pairava sobre Lisboa um céu de cinza, um leve vento fresco, mesmo alguma humidade.
A nossa memória guarda coisas longínquas e, nesse instante, o que é que me veio à cabeça? Imaginem lá! Algumas "belas" manhãs de agosto, em Viana do Castelo, na minha infância.
O meu pai, nos verões, zarpava com a minha mãe e comigo, por umas três semanas, para Viana. Desde o dia imediato à nossa chegada até à véspera do regresso a Vila Real, as manhãs na praia do Cabedelo eram "sagradas".
Para mim, aquilo era um excesso de praia, atividade que, se matutina, nunca me entusiasmou por aí além. Era preciso levantar bem cedo, caminhar até à avenida, toalha sob o braço a embrulhar o calção de banho, embarcar numas camionetes a cair de velhas, vermelhas, da Auto-Viação do Minho, partir para a praia através da ponte e do Cais Novo. O cheiro "mecânico" daquelas viaturas está-me ainda no olfato, o arrascanhar do "meter da segunda", a meio da curva de 180° de entrada para a ponte, é um ruído que também me ficou.
Chegados ao Cabedelo, lá para as nove e meia, era habitual começar-se o dia de vilegiatura com um vento desagradável, arenoso. Eu procurava o refúgio da barraca, o meu pai forçava um passeio e, no seu termo, havia sempre um sinistro banho! A água, por ali, sempre foi frigidérrima, detestável, mas o meu pai obrigava-me a mergulhar, pelo menos uma vez. À medida que fui tendo direito a opinião, argumentava já com as constipações que aquilo podia criar (tentando por aí a cumplicidade da minha mãe), mas o meu pai contrariava-me com os efeitos salutares dos "pirolitos" de água salgada. Era uma guerra perdida, da qual só consegui "desertar" já na adolescência. Com sorte, havia pelo meio uma escapela ao "Raio Verde", para um Rajá, uma Invicta Cola ou um Ginger Ale (em Vila Real, sei lá porquê!, ainda não havia Ginger Ale). Aproximada a hora de almoço, lá vínhamos nós no percurso inverso, com banho a correr, porque a minha avó exigia tudo sentado, impreterivelmente, à mesa, à uma hora. Se bem me lembro, era uma canseira!
Porque é que a manhã de ontem me trouxe, então, uma memória positiva? Porque me recordou alguns dias em que, bem cedo, ao abrir-se a janela que dava para Santa Luzia, o meu pai constatava que estava tudo enevoado - e, em alguns dias (gloriosos!), até chovia!
O meu contentamento íntimo era então inversamente proporcional à irritação do meu pai, para quem a perda de um dia de praia era algo de terrível. Eu olhava-o, ansioso, da cama, temendo apenas ouvir o "isto ainda pode abrir...", que às vezes o levava a arriscar cruzar a neblina, connosco atrás.
Para mim, os dias ideais eram, então, aqueles em que ele concluia que "isto hoje já não se compõe!". Ouvir isso era uma benção: dava-me mais uma hora ou duas de cama e era a garantia de um dia de brincadeira lá por casa, com os meus primos, da "torre" (as águas furtadas) à "loja" (uma cave que conserva o cheiro a humidade desses tempos).
A imensa casa da minha avó é agora uma escola de música. Consegui, há tempos, visitá-la. E lá fui encontrar, na "loja", o cheiro, bem como a janela sobre Santa Luzia, que me deu tão deliciosos dias de névoa e preguiça.