quarta-feira, junho 22, 2016

terça-feira, junho 21, 2016

País do quase

O título de um jornal de hoje é sugestivo: "Portugal a um empate dos oitavos".

É uma sensação magnífica sabermo-nos parte de um país marcado pela ambição, que dobrou Bojadores, a caminho da Boa Esperança, das Índias, da Taprobana, por especiarias, por fé, por glórias.

O mundo mudou, nós também. Consta.

E é por isso que amanhã, ali estaremos, uma "pátria em chuteiras", como diria Nelson Rodrigues, Asterix na Gália de César, sem poção mágica, lutando, com denodo, prestes a esmagar todos os magiares que se atravessarem entre nós e esse imenso e audaz objetivo: o ponto.

Que falta nos fazes, José Maria Eça de Queiroz!

A "pérfida Albion"


Agora que o referendo britânico nos atazana os dias, veio-me à memória uma cena penosa, numa noite de Bruxelas, à saída de um jantar de trabalho, há cerca de duas décadas.

Estávamos ainda à porta do local do repasto, eu e uma figura britânica relevante para o que aqui me traz, isolados do resto dos convivas. Enquanto os nossos carros não chegavam, voltei-me para o meu interlocutor, que eu já conhecia há alguns anos e com tinha alguma confiança pessoal, e disse-lhe:

- Espero que o Reino Unido, amanhã, no Coreper (o Comité dos Representantes Permanentes, que reúne os embaixadores junto da União Europeia), apoie a nossa proposta de declaração sobre Timor-Leste. Necessitamos de colocar pressão sobre a Indonésia.

O tema era candente. Tinham-se passado incidentes sérios em Timor-Leste e o nosso embaixador junto das instituições europeias, sabedor de que eu iria ter um jantar onde estava esse britânico, pediu-me que o tentasse sensibilizar. Se a declaração "passasse" no Coreper, a hipótese de vir a ser aprovada, dias depois, no Conselho de Ministros, estava assegurada. Os mais renitentes eram, ao que recordo, os holandeses, mas os britânicos também não estavam a ser fáceis. E era precisa unanimidade. Expliquei, como se isso fosse necessário, a gravidade do problema, ele foi dizendo que sim com a cabeça e, no final, respondeu-me:

- Podemos fazer um acordo. Na reunião agrícola de ontem, vocês colocaram objeções sobre a linguagem que tínhamos proposto sobre a BSE (a doença das vacas loucas). Se levantarem essas vossas reservas, posso assegurar que apoiamos o texto sobre Timor-Leste.

- Estás a brincar?! Estás a pôr uma questão de Direitos humanos ao nível das "vacas loucas"?!, exclamei, quase escandalizado.

- Isso mesmo!, disse ele com aquela espécie de gargalhada snobe que os britânicos fazem quando acham que conseguem fazer uma graçola de "nonsense".

Ouvi-me então a utilizar a expressão começada por "f" com o "you" no fim, que já não ensaiara desde que saíra de Londres, que tinha sido o meu último posto diplomático no estrangeiro, onde aliás me cruzara pela primeira vez com essa figura britânica. Nesse instante, dei razão ao Marquês de Ximénès, quando qualificou a Inglaterra de "pérfida Albion". Virei-lhe as costas, de forma ostensiva, e entrei no carro. Mas fiquei preocupado: tinha ido um pouco longe demais!

No dia seguinte, nos corredores do Justus Lipsius, cruzei-me com ele. Saudou-me como se nada se tivesse passado. A única coisa que não recordo é o destino que teve a declaração sobre Timor-Leste.

segunda-feira, junho 20, 2016

O Brexit num esfregar d'olho


Não obstante ser este o tempo das reflexões profundas sobre o Brexit, confesso que me não sinto tentado - embora tenha tido pedidos da imprensa para escrever - a perorar muito sobre a questão. Vou apenas alinhar aqui uns breves pontos:

- David Cameron foi um irresponsável ao ter libertado, por oportunismo eleitoral, os demónios que agora não consegue controlar. Hoje, no Reino Unido, os eurocéticos radicais têm muito mais força e visibilidade mediática do que alguma vez tiveram. E, no resto da Europa, há outros a esfregar as mãos.

- Os britânicos, que são dos grandes beneficiários da Europa comunitária, pagam agora anos em que se dedicaram a usá-la como bode expiatório para muitos dos seus problemas.

- Ao não fazerem um mínimo de pedagogia pró-europeísta, e a campanha pelo "sim" se ter limitado a uma agenda defensiva ou de criação de novos medos, os britânicos que querem ficar na Europa revelaram uma inabilidade rara. 

- Se alguém pensa que as mensagens ou as ameaças exteriores para condicionar a opinião britânica tem algum efeito. desenganem-se! Os britânicos pensam pela sua cabeça e quanto mais os tentarem convencer, com opiniões de fora, pior!

- O RU já tem quase tudo o que queria da Europa: está fora do euro, de Schengen, das regras da livre circulação, de muito do quadro da Justiça e Assuntos Internos, da observância da Carta dos Direitos Fundamentais. Antes, excluíra-se do protocolo social e recebia um "rebate" anual em forma de cheque. As concessões dadas pelos 27 há semanas foram a "cereja no bolo" da excecionalidade britânica.

- Há uma quase unanimidade, nos meios e analistas económicos, sobre o impacto negativo da saída da União para o Reino Unido. Mas com essa realidade podemos nós bem. A mim, confesso, nesta fase do campeonato, é o futuro da União que me preocupa, não a felicidade ou infelicidade britânica.

- Uma saída britânica induzirá um ambiente de instabilidade e imprevisibilidade no seio da UE que pode vir a desencadear um movimento centrípeto de "refundação" da Europa, com "purga" do euro. E nesse grupo, dificilmente Portugal terá condições para ficar. Sobre isto não tenho a mais leve dúvida.

- Há ainda um cenário que não excluo: é o RU vir pedir mais excecionalidades à Europa para não sair e esta, por temor, vir a concedê-las. A "caixa de Pandora" já está aberta e, não tarda, outros Estados (vá lá, com alguma legitimidade!) vão querer aproveitá-la.

- A negociação entre o Reino Unido e a UE, para organizar a sua saída, sendo embora algo de inédito e sem precedentes, não me parece uma tragédia. As ordens jurídicas, naquilo que importa, são as mesmas e Londres, sendo um negociador "tough" e às vezes bastante "rough", é um poder amigo.

- A UE, em caso de Brexit, tem na sua mão alguns trunfos muito importantes. Nesse contexto, devo confessar que não me parecem preocupantes - pelo menos muito mais do que já foi dado nas recentes concessões - os impactos sobre a situação dos portugueses que vivem naquele país.

- Na quinta-feira, se votarem a saída, o britânicos vão perder milhares de lugares numa máquina europeia onde têm uma posição dominante e decisiva - na Comissão, no Conselho, no Parlamento Europeu, nas missões diplomáticas europeias pelo mundo. Esse pessoal deve estar em pânico! E há muitos mais a esfregar as mãos...

- Se o Brexit tivesse lugar, o dia seguinte seria o dia 1 para um novo referendo para a Escócia. E, nesse caso, bom dia Catalunha!

- O meu "guess", no dia de hoje? O Brexit não passa. À boca da urna, a aposta no desconhecido é demais para um eleitorado que, no fundo, é esmagadoramente "conservador" - quero com isto dizer, que tem algo a conservar. E não é nada pouco! Mas se estiver enganado, o que pode acontecer com grande facilidade, "apertem os cintos"... E mesmo que os britânicos por cá fiquem, muita coisa será diferente no futuro.

domingo, junho 19, 2016

A homofobia em Portugal



Acho saudável o sobressalto suscitado pelo atentado terrorista que teve como alvo uma discoteca frequentada por homossexuais nos Estados Unidos. Embora pense que há outras dimensões dessa agressão que se devem considerar a nível idêntico da óbvia homofobia subjacente ao ato, creio importante que esse fator específico seja sublinhado, entendendo como natural que o acontecimento mobilize uma atenção particular para o tema. Porque ele é, cada vez mais, socialmente importante. Com a maior sinceridade, penso que só poderemos considerar-nos um país plenamente livre quando nos libertarmos, por completo, dos preconceitos residuais que o tema da homofobia ainda suscita.

Faço parte de uma geração que foi aculturada de uma forma muito peculiar quanto ao tema da homossexualidade. Não obstante, desde muito novo, ter convivido sem problemas com pessoas que deixaram entender publicamente essa sua opção sexual, não tenho o menor pejo em admitir que a aceitação "compreensiva" e formal dessa realidade ia estranhamente de par com o regular uso de uma linguagem jocosa e menorizante sobre o fenómeno. Ironias e graçolas, tendo como alvo os não heterossexuais, faziam parte de um discurso machista que eu próprio utilizei até muito tarde e com que, não raramente, me cruzo ainda em alguns circuitos sociais, onde o fator etário não é despiciendo.

Na cidade de província onde vivi até entrar para a universidade, a cultura dominante estava eivada de um ambiente profundamente discriminatório, que isolava e ridicularizava socialmente os homossexuais, que eram apontados a dedo pelas ruas, mesmo se tal era muitas vezes atenuado por uma espécie de tolerância sobranceira, mas que não escondia a ideia de fundo de que, no final de contas, se tratava de uma "anormalidade", mais ou menos admitida por uma espécie de liberalidade modernaça. Olhando retrospetivamente para esses tempos, posso imaginar a violência que esse ambiente social constrangente provocava, não apenas nessas pessoas, mas igualmente em quantos imagino que foram forçados a retrair a assunção pública da sua opção sexual.

Devo dizer que me dou conta de que esse ambiente paternalista está muito longe de dissipado nos dias de hoje e de que terão de passar ainda bastantes anos até que o respeito pleno pela liberdade de assunção de uma opção diferente da heterossexualidade seja comummente aceite de forma natural. Talvez o facto da cada vez mais famílias serem confrontadas com o "outing" de alguns dos seus membros possa ajudar a acelerar esta evolução.

Como cidadão, tenho a sensação de que este tema deu passos de gigante, nos últimos anos, em Portugal. E, devo dizer, sinto-me orgulhoso por fazer parte de um país que foi capaz, num prazo de tempo relativamente curto, de dar mostras de assumir uma postura de grande abertura nessa dimensão essencial da luta pela igualdade entre as pessoas. 

Há um teste que costumo utilizar para perceber se a aceitação da homossexualidade por parte de pessoas com quem convivo é real ou é apenas o resultado de um esforço intelectual para seguir o "politicamente correto": a questão da adoção de crianças por casais homossexuais. Independentemente de poder compreender quantos, por razões religiosas e até de uma certa leitura sobre a integração societal, achem que o crescimento de uma criança de deve fazer sob um quadro parental com um casal no modelo tradicional, estou profundamente convicto de que a grande objeção à adoção de crianças por homossexuais tem, "on the back of the mind", a ideia da "anormalidade" dessa opção e, no fundo, uma não assumida convicção de que se pode estar a expor as crianças a possíveis atos de pedofilia. Posso estar enganado neste meu raciocínio, mas é o que sinceramente penso.

sábado, junho 18, 2016

O olhar dos embaixadores

Desde que, há pouco mais de três anos, regressei a Lisboa, e por um conjunto cumulativo de razōes, tenho contactos frequentes com bastantes embaixadores estrangeiros acreditados em Lisboa. E tem sido muito interessante poder acompanhar a sua evolutiva curiosidade sobre a nossa situação política, muito em especial o modo como procuram recortar o perfil dos nossos atores políticos, as suas interações, as linhas predominantes dentro das formaçōes partidárias e, naturalmente, os cenários mais prováveis para o futuro próximo.

Quando aqui cheguei, em 2013, as grandes interrogações prendiam-se com a solidez da coligação então no poder, em especial sobre o tandem Passos Coelho - Paulo Portas. Vivia-se um tempo posterior às manifestações de 2012, num ambiente exausto dos efeitos das políticas da "troika". A Lisboa diplomática estava cheia de intrigas sobre as "traições" e "desconfianças" entre os líderes do PSD e do CDS, em dias "irrevogáveis".

A coreografia dos consensos promovida por Cavaco Silva obrigava os diplomatas a interrogar-se bastante sobre a personalidade de António José Seguro, sobre a sua eventual abertura a entendimentos com os ocupantes do poder. Iria Seguro ser sensível aos apelos de Cavaco? Convencidos de que eu "bebia do fino", muitos me interrogavam sobre as intenções do líder socialista. Alguns não acreditavam na verdade, isto é, que eu sabia tanto como eles.

Por algum tempo, o papel de Sócrates no tecido da esquerda, em especial depois das suas aparições televisivas, foi fator de interesse para esses olhares estrangeiros. A sua detenção reduziu o foco na personagem, embora mantendo-se a curiosidade (que era também a nossa) sobre o efeito que isso iria ter no futuro dos socialistas. Também a importância das tomadas de posição de Mário Soares suscitava questões sobre o modo como isso se iria repercutir no PS.

Um dia, surgiu a surpresa António Costa. Surpresa? Bom, ele era o chefe da municipalidade lisboeta com cuja bonomia os diplomatas se tinham habituado há muito a lidar. Mas o registo era agora outro. Costa era, de há muito, um potencial candidato a tudo - de S. Bento a Belém - mas o facto de agora surgir a concorrer à liderança, depois da "débacle" eleitoral das Europeias, afrontando Seguro, revelava um perfil algo diferente daquele que dele tinham desenhado. Curiosamente, muitos embaixadores haviam-se habituado, nos "dîners en ville" a ouvir a direita tecer loas a António Costa. Agora, de um momento para o outro, Costa parecia ser o "radical", perante um Seguro que lhes era mostrado, pelo Portugal conservador com que conviviam socialmente, como um socialista finalmente "aceitável".

Vieram as eleições e a grandes dúvidas, suscitadas pela radicalização da campanha. Até onde iria o PS? Romperia com a Europa, "à Siryza"? O que faria Costa se ganhasse? Foi um tempo de muitas conversas especulativas, onde algumas das posições de certos interlocutores revelavam, com ingénuo reflexo, os opinadores que frequentavam. Eles ouviam, "entre la poire et le fromage", aquilo que esses "experts" iriam debitar nas TV, horas depois. Às vezes, isso dizia-me respeito e eu ria-me intimamente.

A montagem da "geringonça" desorientou, de vez, a Lisboa diplomática. Não por uma necessária oposição ao modelo (embora fosse essa a atitude amplamente maioritária) mas porque pretendiam, muito legitimamente, tentar saber o que poderia sair dali, em termos de opções e escolhas políticas, em especial no terreno europeu. Todos nós, portugueses, também queríamos saber isso, convém recordar. Avaliar o grau de influência dos comunistas e do Bloco na orientação do executivo foi uma tarefa em que os diplomatas em posto em Lisboa se entretiveram por muito tempo, até estabilizarem, aparentemente, no dias de hoje, essa sua visão. Políticos, jornalistas e empresários carrearam para os ouvidos dos embaixadores informações que iam de dados concretos a meros "bitaites", tudo misturado com muito "wishful thinking". Tempos interessantes esses, que devem ter dado origem a curiosos telegramas.

As eleições presidenciais que se seguiram nunca mobilizaram muito os embaixadores em Lisboa. Maria de Belém era sobejamente conhecida, Sampaio da Nóvoa era quem suscitava as dúvidas conservadoras e Marcelo Rebelo de Sousa era... Marcelo!

Se surpresa houve, desde então, de que ainda se não refizeram por completo, essa tem sido a "lua-de-mel" do presidente com o primeiro-ministro. Entre o divertido e o espantado, desde logo com a inesperada informalidade inicial do chefe de Estado, os nossos amigos diplomatas estrangeiros em Lisboa olham-nos, nos dias de hoje, com uma pontinha de inveja institucional. Porém, infelizmente, ela logo se esbate quando olham o fio da navalha económico em que Portugal permanece. Mas em muitos deteto alguma amiga simpatia pelas nossas dificuldades.

Imagino que Lisboa deva ser um posto muito interessante para se estar como diplomata estrangeiro. Embora o sol deste junho só agora dê os devidos créditos ao nosso verão.

sexta-feira, junho 17, 2016

"Com a NATO não se brinca!"



A NATO anunciou que vai reforçar militarmente os contingentes de que dispõe no Leste europeu, junto às fronteiras da Rússia.

Não é popular, no discurso português de segurança e defesa, discutir, ainda que minimamente, as opções americanas que sobredeterminam de forma decisiva as políticas da Aliança. No nosso país, o obsessivo interesse em sermos "bem vistos" do outro lado do Atlântico tem-nos conduzido a um acrítico seguidismo, teorizado por uma escola que faz do ultra-atlanticismo o seu "fond de commerce". No limite, lembremos, foi o que nos levou à vergonha da « cimeira das Lajes ».

Penso, com a maior sinceridade, que a NATO – esse heterónimo dos EUA - continua a justificar-se e que o nosso país tem um interesse estratégico em dela continuar a fazer parte. A Aliança mudou de natureza com o fim da Guerra Fria, mas persistem cenários de risco que a continuam a justificar.

A Rússia, não sendo um inimigo, não é um poder qualificável de plenamente democrático, por não oferecer garantias de se subordinar a um quadro de respeito estrito pelo Direito Internacional, pelo necessita de conhecer, com clareza, as "linhas vermelhas" que não deve ultrapassar, na observância do equilíbrio de poderes posterior à Guerra Fria. E só a NATO as pode definir.

O que escrevi levar-me-ia a louvar a NATO e o seu trabalho, não fora o facto da organização ter sido visivelmente "raptada", nos últimos anos, por uma agenda de pendor radical, que soma algumas tentações de proselitismo político-militar dos EUA com a paranóia de alguns países que o alargamento da NATO colocou junto às fronteiras da Rússia - a tal "nova Europa" que Donald Rumsfelt se gabava de pôr em choque com o resto do continente. O que se passou na Ucrânia, a reboque de uma União Europeia que teve a insensatez de se deixar arrastar para políticas claramente provocatórias, que de modo irresponsável se permitiram abalar equilíbrios geopolíticos que haviam provado ser marcos da segurança coletiva, mostrou que "brincar" com a História pode ter um elevado preço.

Portugal é um país frágil, nomeadamente em matéria de segurança e defesa. Depende bastante da NATO, pelo não quer ser visto nesse contexto, ainda que minimamente, como um "trouble-maker". Além disso, um governo como o atual, que é olhado com elevada suspeição pelos meios atlanticistas, está talvez mais condicionado do que qualquer outro, pelo que será sensível ao senso comum, prevalecente nos corredores das Necessidades e do Restelo, de que "com a NATO não se brinca".

Até posso estar de acordo com isso. Mas espero que Lisboa, no âmbito de uma NATO que parece embalada por um perigoso tropismo jingoísta, que olha Moscovo como se tratasse da capital da URSS, saiba ter coragem para dizer, alto e bom som, que com a paz também não se brinca.

quinta-feira, junho 16, 2016

A diligência


Àquele diplomata português, que exercia as funções de encarregado de negócios, na ausência do seu embaixador, fora pedido que executasse uma diligência "ao nível mais elevado possível" junto do ministério dos Negócios Estrangeiros do país onde estava colocado. Pedia-se-lhe que tentasse saber, a montante da informação pública que se aguardava para breve, qual a atitude que o governo desse país iria tomar numa determinada questão. Com toda a certeza, Lisboa estaria a definir a sua posição e importava-lhe conhecer a que esse país ia tomar.

É sempre difícil a um encarregado de negócios, isto é, a alguém que não chefia a missão diplomática, conseguir uma interlocução a um nível alto numa hierarquia diplomática local. Normalmente, o máximo que consegue é ter um contacto com o "desk" geográfico que cobre o país e, muitas vezes, até isso demora algum tempo. Às vezes, uma visão fácil e caricatural sobre a vida diplomática despreza a importância dos contactos pessoais, as relações de proximidade que os convites para almoço ou jantar proporcionam, o interesse em conseguir ter "oleados" canais de acesso a funcionários que nos podem ser úteis. É uma arte, não acessível a todos, conseguir uma "network" de conhecidos nas estruturas dos ministérios estrangeiros, saber trabalhá-las e cultivá-las por longos meses em que a sua utilidade é pouco mais do que nula, para as poder acionar nos momentos importantes.

Não sei se foi através desses seus contactos que o diplomata, ainda jovem, conseguiu a proeza de ser recebido a nível de um diretor-geral. Para Lisboa, tratava-se da prova da sua capacidade de "furar" na máquina diplomática local e, com toda a certeza, o "bem elaborado telegrama" (expressão clássica na "casa") iria ser apreciado. Desde que a informação pedida por Lisboa fosse obtida, claro.

A conversa não iria ser fácil, contudo. O diretor-geral recebeu o jovem diplomata com alguma sobranceria, ouviu a questão colocada e, desde logo, "fez-se" caro. Explicou que o assunto, se bem que decidido já internamente, não era ainda do domínio público.

O nosso diplomata, com elegância, retorquiu que, se o fosse, não tinha vindo ali incomodá-lo. Era precisamente por sabermos que a decisão estava já tomada e prestes a ser anunciada que pedíamos, à luz das excelentes relações bilaterais que tínhamos, que no-la dessem por antecipação, com o óbvio compromisso de a não divulgarmos a terceiros.

O diretor-geral manteve-se "em copas" e adiantou: "Olhe, meu caro. Posso dizer-lhe que, dentro de dois dias, a decisão será comunicada à imprensa. Aí ficará logo a saber. São só 48 horas!"

O jovem diplomata, com garbo, terá respondido: "Fico muito grato e, pode crer, vou mesmo recomendar ao meu governo para fazer uma assinatura dos jornais do seu país. É que, como está em curso uma reavaliação dos postos a fechar, por razões orçamentais, no âmbito da nossa rede diplomática, sair-nos-á bem mais barato deixar de ter aqui embaixada e fazer essa assinatura. Pelos vistos, a utilidade de termos diplomatas cá acreditados é muito escassa, por não quererem ter connosco um gesto mínimo de simpatia e amizade. Passaremos assim a seguir a vossa atividade pela imprensa".

Dos anais da "casa", reproduzido mesmo em livros publicados, consta que o diretor-geral terá entendido a mensagem e facultado a informação pedida.

quarta-feira, junho 15, 2016

Dois pontos perdidos

O meu dia não acabou bem. Olhando para trás, para os erros cometidos, é agora relativamente fácil pensar o que se não fez para evitar o que aconteceu. Mas é como "chover no molhado". Precipitação, avaliação incorreta dos riscos, nervosismo e, claro, cai-se na ratoeira. E houve um custo a pagar, claro, não tão pequeno como isso. Agora tudo vai ser mais difícil, sem esses dois pontos. Não se podem cometer muitos mais deslizes. Alguns dirão mesmo: "Se calhar até foi bom! Aprende-se a ter mais cuidado". Talvez. Aprende-se a não avançar no terreno sem prudência, a medir melhor o ritmo a imprimir no futuro. Foi uma lição.

Perdi dois pontos. Na carta de condução. Faz amanhã oito dias. Na A8.

Já 5000 !


Pois é, este é post nº 5000, desde que este blogue começou a ser editado, no dia 2 de fevereiro de 2009, sem nenhuma interrupção diária, creio eu.

Achei que valia a pena assinalar este número "redondo".

As armas da Venezuela


Mário Soares não tinha por hábito pernoitar nas embaixadas, preferindo quase sempre os hotéis. Apenas em Brasília, numa das vezes que por lá passou, o convenci a dar-me o gosto de algumas conversas pela noite dentro, que eu aproveitava para saciar a minha curiosidade em torno das suas inesgotáveis memórias, sempre marcadas por um rigor dos factos, datas e nomes. Muito aprendi sobre a história da oposição democrática e os bastidores da política doméstica no pós-1974.

Numa dessas visitas, juntei à sua volta, num jantar, o antigo presidente da República, José Sarney e o então vice-presidente da República, José Alencar. Sarney era um velho conhecido de Mário Soares, que as voltas da política tornara um aliado de Lula, e Alencar era um querido amigo pessoal meu, que achei que Soares gostaria de conhecer melhor.

O jantar começou muito bem, com a bonomia e as histórias mineiras do vice-presidente a deliciarem o nosso antigo presidente. Este tinha vindo, na véspera, da Venezuela, onde entrevistara o presidente Hugo Chavez para um programa televisivo. Estava visivelmente entusiasmado com o líder venezuelano, sentimento que eu sabia longe de ser partilhado pelos dois convivas brasileiros. Porém, Alencar mostrava-se mais parcimonioso do que José Sarney, que tempos mais tarde acabaria por assumir no Senado brasileiro uma oposição forte à entrada da Venezuela para o Mercosul.

A certo passo do repasto, sempre em torno da figura de Chavez, comecei a notar que o diálogo entre Soares e Sarney se estava a tornar um tanto tenso. Entre outras discordâncias, Sarney explicava a Soares que havia setores brasileiros muito preocupados com as aquisições de material militar que Chavez tinha recentemente feito, chamando em apoio das suas teses o vice-presidente da República, José Alencar, que, até meses antes, tinha acumulado o cargo com o de ministro da Defesa. Este, porém, pela sua solidariedade com Lula, mantinha-se discreto.

Soares, contudo, acreditava piamente na boa vontade de Hugo Chavez, creditava-o de boas intenções e de um real interesse em manter um relacionamento positivo com o Brasil. Num determinado momento, voltando-se para Sarney, disse-lhe: "Ó José Sarney! Eu conheço muito melhor o Chavez do que você! E, por isso, posso assegurar-lhe que nunca uma arma venezuelana que ele controle se voltará contra um interesse do Brasil".

Sarney fechou aquela cara de brasileiro que, do bigode ao cabelo negro com brilhantina, refletia uma imagem caricatural do brasileiro da sua idade a que o mundo dos anos 50 e 60 se habituara, e, longe de convencido, voltando-se para Soares, disse-lhe: "Ó Mário! Nem você nem eu já temos idade para acreditar nessas coisas! Não seja ingénuo!".

Mário Soares não gostou, retorquiu firme, mas com procurada elegância. Eu fiz um sinal a Alencar para me ajudar a amenizar a conversa. Isso foi conseguido, sem dificuldade, mas pode dizer-se que aquele que seria o último encontro entre os dois antigos presidentes não acabou em ambiente de grande euforia.

terça-feira, junho 14, 2016

Rua Direita


Na minha terra, em Vila Real, há uma rua que funciona como uma espécie de "eixo" da cidade antiga. De facto, chama-se Rua Dr. Roque da Silveira, mas, na prática, todos lhe chamam Rua Direita, designação que aliás é comum a artérias do mesmo género existentes em outras das nossas cidades.

Há bem mais de uma década, o meu saudoso amigo Álvaro Magalhães dos Santos escreveu uma memória afetiva sobre aquela rua, historiando-a casa a casa, a que deu o nome "A Rua Direita - uma janela sobre Vila Real".

A Rua Direita, como todo o vilarrealense sabe, vai da Capela Nova, que também não se chama assim, até ao Cabo da Vila (leia-se "bila"), que obviamente não tem, em termos toponímicos, essa designação. Já foi a grande artéria comercial da cidade e, ainda hoje, restam por ali algumas poucas casas com merecido prestígio. Mas é, em termos económicos, uma sombra do que já foi e, ao que me dizem, contam-se pelos dedos de escassas mãos as pessoas que ainda por lá habitam. 

Ao encontrar esta imagem há pouco na net, lembrei-me, sei lá porquê, da Rua Direita.

A tragédia americana

O recente ato terrorista na América pode vir a ter consequências bastante mais graves do que as significativas perdas humanas que causou. A emergência deste tipo específico de violência, ideologicamente motivada, induz insegurança e vontade de retaliação. A resultante política destes sentimentos não é por ora clara, mas tudo indica que não deixará de projetar-se sobre o momento eleitoral que os EUA atravessam, influenciando os compromissos securitários dos candidatos, quer na ordem interna, ao estimular efeitos sobre a cultura cívica e de liberdades, quer no comportamento externo do país, onde facilitará uma atitude favorável à afirmação autónoma do interesse nacional americano, com condições para forçar novas clivagens e agravar riscos que podem afetar todo o mundo. Uma América provocada a sob tensão é tudo quanto não precisamos nos tempos que correm.

segunda-feira, junho 13, 2016

Privilégios

Aquele ministro e eu entrámos no avião, de regresso a Lisboa, ambos vindos de uma conferência numa determinada capital. A lotaria dos lugares tinha-o colocado duas ou três filas atrás da minha.

Nesse tempo dos anos 90, eu era secretário de Estado. Ao meu lado, por um azar das arábias, acabou por me calhar aquilo que os brasileiros designam por "um chato de galocha". Era uma figura portuguesa conhecida, palrador incessante, do género muito inquisitivo, dos que nos não deixam ler ou trabalhar. Por simpatia, lá fui aturando a personagem, que não "despegava" um minuto da conversa.

A certo passo, olhando para trás, descortinei o sorriso gozão do meu colega de governo, que, conhecendo-me e conhecendo a figura que o destino colocara como meu vizinho, devia pressentir o esforço que eu estava a fazer para aturar aquela imensa "seca".

Mais de metade do voo já era passada quando um assessor do ministro passou perto da minha fila e me estendeu um envelope: "o ministro manda-lhe isto".

Abri discretamente o envelope, não fosse a curiosidade do vizinho estender-se ao seu conteúdo. Dizia mais ou menos o seguinte: "Sabes qual é a diferença entre um ministro e um secretário de Estado? É que os ministros conseguem não ter de aturar chatos como o que vai ao teu lado..."

Contive a custo a gargalhada!

domingo, junho 12, 2016

We'll always have Paris!


Ocidente


A comunidade muçulmana de Marselha deve estar a sorrir. A cidade mostrou ao mundo os hábitos, costumes e valores da civilização ocidental.

"Blague"


Foi preciso Marcelo ir a Paris para que Hollande ressurgisse com o seu conhecido lado "blagueur".

Pena é que os franceses achem cada vez menos graça ao seu presidente.

Notas (bem dispostas) de um domingo de sol


- É chocante a força que o Bloco de Esquerda e o PCP impõem nas decisōes salariais tomadas pelo governo socialista. O caso mais recente foi o escandaloso aumento que conseguiram para os administradores da Caixa Geral de Depósitos.

- Espero que o "Prós e Contras" de amanhã nos traga Assunção Cristas e Mário Nogueira a discutir os méritos do ensino público na formação dos "holligans" britânicos que ontem se ilustraram na Côte d'Azur, onde duvido que a toponímia local preserve a Promenade des Anglais.

- Se Marcelo não surgir hoje de arco-e-balão nas ruas de Alfama, vão começar os rumores de que a sua presidência entrou em declínio.

- Ao preço a que anda a sardinha, mais de uma dúzia por família vai ser lido pelo fisco como sinal exterior de riqueza.

- A Justiça passou agora a mau-da-fita ao acusar jornalistas de quebra de segredo de justiça (uma evidente calúnia!) no caso Sócrates.

- Cavaco começa a ficar vingado. Há cada vez mais consensos: sobre o que o país pensa dele, sobre a recusa das sanções europeias e sobre o facto do Europeu serem "favas contadas".

sábado, junho 11, 2016

O acordão

Os aumentativos em "ão" são uma forma brasileira de mostrar uma saudável sem-cerimónia com a língua portuguesa, tornando mais "gráficas" as expressões. 

( Para quem não saiba, as rotundas, no Brasil, designam-se por "balões". Um dia, conduzindo em Minas Gerais, perguntei a alguém se ainda faltava muito para cruzar com uma determinada estrada. A resposta não podia ser mais brasileira: "É logo ali, chegando ao balãozão", para designar uma rotunda bem maior do que as habituais.

Também as pessoas são referenciadas assim, sem o menor embaraço. Numa remota cidade do Amapá, fui apresentado ao Prefeito, um homem imenso, muito largo. Com a imbatível simpatia dos brasileiros, identificou-se: "Meu nome é José Carlos. Mas me chame de "Marmitão". Todo o mundo me conhece assim." )

Ao ouvir falar de que há um "acordão" no Brasil, alguns portugueses podem ser levados a concluir que isso designa a revolta ética da respetiva população, o "acordar" coletivo face à revelação dos escândalos de corrupção e outros graves atropelos às leis, que geraram manifestaçōes, revoltas populares e tensões sociais, com impacto na classe política. 

Mas não é nada disso! O "acordão" que se regista, ou se prepara, no Brasil é, apenas e só, um entendimento entre os titulares de cargos políticos no sentido de criar uma barreira à ação da Justiça, que agora começa a ameaçar setores de topo do sistema que saiu recentemente ganhador da luta pelo poder. 

A Justiça - em especial o Ministério Público e a Polícia Federal - foram os "heróis" do sistema, enquanto a sua ação tinha por alvo o PT e os seus "compagnons de route", isto é, até ao afastamento prático de Dilma Rousseff. Mas agora que a máquina judicial se colocou em movimento e não parou, ameaçando setores dessa hidra política que dá pelo nome de PMDB, já por ali se fala em "acordão".

Olhando em perspetiva este mês de poder de Michel Temer, fica a sensação, porventura injusta mas que ressalta inevitavelmente como tal, de que praticamente só se tem tratado da (re)atribuição de lugares no aparelho político e das empresas públicas, de paralelo com a tentativa esforçada de muitos políticos, de topo e não só, de escaparem à possibilidade de virem a ser transformados em réus. A demissão de ministros que saíram dias depois da posse, por alegadas implicaçōes em improbidades ou práticas puníveis, não contribuiu para dar um crédito de confiança à nova equipa dirigente.

Um estudo ontem divulgado no Brasil, ordenado pelo governo, dá conta da má imagem que o governo Temer, com a exceção do setor financeiro do executivo, continua a manter no exterior do país. Dessa imagem faz também parte a permanência, no imaginário do mundo, de que o afastamento de Dilma Rousseff configurou um "golpe" constitucional, isto é, de que foi um pretexto juridicamente magnificado para, muito simplesmente conseguir colocar a chefe de Estado fora do poder. O novo Brasil oficial pode ter ganho a batalha contra a presidente, mas, por ora, perdeu francamente a guerra da sua imagem e da sua credibilidade.

E o "acordão" para tentar evitar a detenção do presidente do Senado, do antigo presidente Sarney e de outra figura grada do PMDB não irá ajudar a melhorar essa imagem. (Posso agora revelar que era ao anúncio destes mandados de detenção que eu me referia aqui.)

sexta-feira, junho 10, 2016

Vim a pé!

Fiquei gelado, quando ouvi a frase: "Vim a pé!".

Era uma noite de inícios de 2009, em Montfermeil, uma cidade na periferia de Paris, onde há hoje fortes tensões étnicas e em que vive uma significativa comunidade portuguesa, felizmente alheia a essa triste realidade. Vínhamos a sair da "mairie" em direção a um pavilhão gimnodesportivo, onde iria ter lugar uma recolha de fundos para um ação social, organizada por um cidadão português, que eu tinha decidido apoiar com a minha presença.

No trajeto entre os dois espaços, ia casualmente acompanhado de um simpático casal português, já idoso. Como muitas vezes acontece neste tipo de circunstâncias, perguntei-lhes de onde eram e há quanto tempo estavam em França. O marido disse-me ser da Beira, creio que de Sabugal, e que tinha chegado a França em 1967. Comentei a coincidência desse ser precisamente o ano da minha primeira deslocação a este país. Lembrava-me bem que saíra de Lisboa, da "rotunda do relógio", à boleia, no final de julho, chegando a Paris no dia 4 de agosto.

"E o meu amigo como veio?, perguntei.

"A pé. Vim a pé", respondeu-me, com grande serenidade, sem qualquer dramatismo.

"A pé? Desde Portugal? Não apanhou nenhuma boleia? Não fez parte do caminho de comboio ou de autocarro?

"Não, vim a pé, todo o caminho, da minha terra até Champigny, com uns amigos. Demorei algumas semanas a chegar", adiantando-me um número de dias que não fixei, mas que era impressionante. Explicou-me então que dormiam nas bermas das estradas e que cantavam, para se animarem. "Rebentavam-nos os pés, mas tinha de ser", explicou, com um sorriso de total naturalidade.

Intimamente, sem o deixar transparecer, eu estava chocado. Tinha ouvido falar muito das trágicas condições em que os portugueses saíam do país nesses anos 60 e 70, das passagem da fronteira "a salto", dos "passadores", da exploração de que eram objeto por parte de outros seus compatriotas, das condições quase infra-humanas do seu transporte para França e Alemanha, mas - imperdoável desconhecimento meu! - nunca ouvira dizer que alguns haviam palmilhado todo o caminho em direção a um futuro em que colocavam toda a esperança.

(Texto que há quase cinco anos publiquei neste blogue, ao tempo em que era embaixador em França, e que hoje aqui recordo em homenagem aos nossos compatriotas naquele país)

O dia da gratidão e do respeito



A decisão de Marcelo Rebelo de Sousa de partilhar o dia de hoje com cidadãos portugueses residentes no exterior merece ser saudada.

É clássica a frase ficcionada de um português, interrogando-se junto de outro, de forma desencantada, pelo facto de um país de descendentes de quantos «deram novos mundos ao mundo» continuar a ser, nos dias de hoje, a nação mais pobre da Europa ocidental. A resposta do interlocutor é clássica, na sua ironia :  «Não é verdade! Nós não somos descendentes desses portugueses intrépidos que descobriram o Brasil ou o caminho marítimo para a Índia. Nós descendemos dos que não quiseram ir, dos que por cá ficaram...» De certo modo, o mais ousado e ambicioso Portugal foi o que daqui partiu.

O nosso país tem hoje a viver no estrangeiro uma percentagem muito significativa da sua população. Salvo exceções, a maioria desses nossos compatriotas foram obrigados a sair, pela circunstância do país onde nasceram não ter sido capaz de lhes proporcionar  condições para aqui realizarem o seu futuro, como seria da natureza normal das coisas. Esta é uma tragédia nacional, com que vivemos desde há séculos e que nos desqualifica perante o mundo. Não conheço nenhum país que force os seus cidadãos a emigrar e que, simultaneamente, seja visto de forma prestigiada pela comunidade internacional.

No passado, Portugal «exportava» mão-de-obra pouco qualificada, pessoas geralmente com escassa formação, que iam para «os Brasis», depois para a Europa ou para o norte das Américas, à procura de melhor sorte. A partir dos anos 60 do século passado, a ditadura ludibriou muitos milhares de novos «colonos», seduzidos por um futuro em Angola ou Moçambique, a quem foi escondido que estavam destinados a ser «carne para canhão», no mais do que expectável estertor do nosso patético colonialismo. Depois, foi o que se viu, com esses compatriotas a «retornarem» ao solo europeu, ou a espalharem-se da África do Sul à Austrália ou, uma vez mais, pelo continente americano.

Os últimos anos trouxeram uma realidade migratória diferente. Largos milhares de jovens, alguns com excelentes qualificações que o país pagou, na convicção de que neles alicerçaria o futuro, continuam a ser condenados a ir buscar melhor vida algures, cedidos «chave-na-mão» a economias desenvolvidas, que avidamente os aproveitam para o seu desenvolvimento. É frustrante sentir que Portugal perde, em muitos casos de forma definitiva, a sua geração mais qualificada de sempre.

Marcelo Rebelo de Sousa, com este seu gesto, cumpre um dever de gratidão e contribui para tentar preservar o tecido dessa magnífica reserva de portugalidade que são as nossas comunidades.

quinta-feira, junho 09, 2016

Ordens honoríficas

Tomei hoje posse, dada pelo Presidente da República, como membro do Conselho das Ordens Civis. O Conselho tem a seu cargo dar pareceres sobre condecorações a atribuir pelo Estado português, a decidir pelo Presidente da República.

Convirá notar que "as Ordens Honoríficas Portuguesas destinam-se a galardoar ou a distinguir, em vida ou a título póstumo, os cidadãos nacionais que se notabilizem por méritos pessoais, por feitos militares ou cívicos, por atos excecionais ou por serviços relevantes prestados ao país".

O presidente Marcelo Rebelo de Sousa deixou já claro publicamente que tenciona, durante o seu mandato, seguir um critério parcimonioso no tocante à atribuição de condecorações, evitando a banalização das mesmas. Não tenho a menor dúvida de que esta orientação é a que melhor serve a dignidade das Ordens Honoríficas portuguesas.

Bernardo Pires de Lima


Bernardo Pires de Lima é um dos mais lúcidos comentadores de temas internacionais que atualmente escrevem na imprensa portuguesa. Com uma impressionante regularidade, publica, desde há vários anos, uma coluna no "Diário de Notícias" onde, com serenidade, rigor e grande coerência argumentativa, escalpeliza as principais temáticas internacionais da atualidade. Nem sempre estou de acordo a 100% com as suas análises, mas as nossas divergências são ínfimas, se as comparamos com as identidades de pontos de vista que temos.

Recentemente, Bernardo Pires de Lima publicou um pequeno livro na coleção de ensaios da Fundação Francisco Manuel dos Santos, intitulado "Portugal e o Atlântico". Com Luís Amado, tive o gosto de apresentar esta obra no passado sábado, na Feira do Livro de Lisboa.

Deve dizer-se que o título do livro é algo redutor face ao seu real conteúdo. Ele começa por uma análise muito interessante do papel da China no contexto geopolítico global, em especial no Pacífico e no Índico, em contraponto com a posição americana. O livro trabalha as mutações da China como ator global, apresentando dados muito atualizados, nomeadamente de natureza económica e militar, que nos permitem entender melhor as mudanças que afetam todo o Oriente.

Num segundo capítulo, Bernardo Pires de Lima debruça-se sobre o Atlântico, refutando a tese, que considera prematura, sobre a respetiva "morte" como espaço de relevância político-económica. Na análise, o autor revisita algumas das principais identidades entre os EUA e a Europa que ajudam a justificar a sua leitura de que a relação transatlântica não apenas tem futuro como tem mesmo uma relevância crescente. O envolvimento potencial do sul do Atlântico neste contexto, em especial em matéria de segurança e defesa, é aqui tratado de forma muito criativa.

Finalmente, o eventual papel de Portugal em todo este contexto é analisado em termos muito interessantes, com propostas de política, com o autor a destacar algumas vantagens comparativas que, no seu entender, o nosso país deveria melhor explorar, com vista a reforçar a sua relevância no concerto dos equilíbrios estratégicos globais do futuro.

Há uns anos atrás, o antigo secretário-geral do MNE brasileiro, Samuel Pinheiro Guimarães, obrigava os jovens diplomatas a sentarem-se numa sala de espera junto ao seu gabinete, devendo aí ler, em dias seguidos, três livros que ele considerava essenciais para a formação dos novos profissionais das relações externas (um dos livros era uma obra do próprio secretário-geral...). Não vou tão longe! Mas acho que este pequeno trabalho faria muito bem aos diplomatas mais jovens das Necessidades. E muitos outros, já não tão jovens, também não perderiam nada em lê-lo!

quarta-feira, junho 08, 2016

Sermão

As pessoas acreditam naquilo que querem acreditar. Em particular, acreditam no que lhes prolonga as ideias feitas, no que entendem como sendo "lógico" e no que lhes aparece como podendo desenhar-se como "óbvio". E se o que lhes é servido como verdade tem o condão de adubar sentimentos pré-existentes, então o processo de convicção pode dar-se como adquirido. Essa é a glória do criador da crença, para quem o supremo objetivo era construí-la, dá-la como evidência e vê-la partilhada, difundida e aceite como "a verdade". 

Ingenuamente, pode argumentar-se que, para além da crença, há que ter em conta esse pormenor, quiçá marginal, que são os factos. E que, às vezes, os factos apontam, de forma cristalina, no sentido de infirmar, em absoluto, a crença entretanto estabelecida. Neste caso, "tant pis" para os factos. Se acaso eles não acompanham o rumo da crença, esta dispensa-os, por irrelevantes e incómodos. É dos livros. Pirandello dizia que "a cada um a sua verdade". É verdade, cada um fica na sua. Apesar da verdade, na verdade, ser só uma. E, às vezes, a crença nada ter a ver com ela. Mas que importa? As pessoas acreditam naquilo que querem acreditar.    

Indecifrável


Aquele diplomata era um conhecido calaceiro. Entrara para o MNE bem antes do 25 de abril e, com algumas boas proteções, conseguiu ir sobrevivendo, fazendo sempre muito pouco na profissão. A democracia que a Revolução entretanto trouxera não se adaptava ao seu espírito ultra-conservador, "viúvo" que ficara da ditadura. Os governos provisórios desse tempo mereciam-lhe o maior desprezo e davam-lhe um alibi político íntimo para fazer uma espécie de resistência passiva. Assim, em tudo o que fazia seguia sempre a "lei do menor" esforço, furtando-se tanto quanto podia às tarefas trabalhosas.

Este seu caráter preguiçoso era conhecido na "casa" e, a partir de certa altura, conseguira uma espécie de estatuto que quase sempre o isentava de grandes responsabilidades. Ninguém lhe atribuía funções importantes e, com isso, acabava por levar uma rica vida. Claro que a progressão da sua carreira não deixou de sofrer com isso, mas, como era rico, pouco se ralava. Já com uma certa idade, e ainda como reflexo das boas ligações, familiares e sociais, que possuía, acabou por ser-lhe atribuída a chefia de uma embaixada. Era um posto periférico, sem grande movimento, dir-se-ia que bem adequado ao seu perfil. O que ele não queria era que o incomodassem...

Nesse tempo, as comunicações telegráficas ente o Ministério e os postos implicavam um sistema cifrado algo primário que, não raras vezes, falhava. Frequentemente, quando se pretendia ler o que, de Lisboa, chegava às embaixadas e consulados, os textos recebidos apresentavam páginas cheias de letras e algarismos sem sentido, prova de que algo falhara na transmissão. A solução natural era pedir a repetição de tais textos.

Num final de tarde, nessa sinecura onde passava indolentemente os meses, o secretário da embaixada irrompeu no gabinete do embaixador com um "telegrama" acabado de chegar de Lisboa. A embaixada era alertada para a iminente passagem pelo aeroporto dessa capital, em trânsito, de uma missão chefiada por um membro do governo português. A chegada seria na manhã do dia seguinte, quase de madrugada, pedindo o Ministério que o proprio chefe da missão se deslocasse ao aeroporto e desse "todo o possível apoio" à figura em causa, que ficaria umas horas na cidade.

O nosso homem ficou furibundo! A perspetiva de ter de se levantar a horas matutinas, somada à necessidade de ter de conviver, por algum tempo, com um membro desse governo "sinistro" que a soldadesca amotinada tinha colocado no poder, deixava-o fora de si. Que diabo de ideia tivera o secretário de passar pela "sala da cifra", nesse final de tarde! Se o não tivesse feito, não estava agora confrontado com a chatice de ter de ir ao aeroporto a horas impróprias, que ele sempre aproveitava para descansar do trabalho a que se furtava.

O embaixador refletiu. Releu o texto e, sem comentários, disse ao secretário que podia ir para casa. Ele ficaria um tempo mais na embaixada.

No dia seguinte, quando abriu a "sala da cifra", o secretário deparou-se com uma comunicação que o seu chefe enviara entretanto para Lisboa, ainda na tarde da véspera: "Informo Vexa que a comunicação recebida hoje, ao final do período de expediente, chegou indecifrável. Muito agradeceria o seu reenvio amanhã".

Era um belo truque! Lisboa só teria recebido essa comunicação tardíssimo, tudo agravado pela diferença horária, e repetição "legível" ali estava agora. Só que era tarde demais! O governante e a sua gente já deveriam estar prestes a partir do aeroporto.

O secretário entrou no gabinete do embaixador e entregou-lhe o "novo" telegrama. Sem comentários. O chefe da missão não se deu por achado, olhou o texto, como se o visse pela primeira vez, e disse: "Deixe ficar". O secretário deve ter pensado que o seu papel de inocente útil (e calado) naquela peça lhe poderia valer uma boa informação. E "fez de conta"...

Não era sem "mérito" que, em Lisboa, alguém dizia que aquele embaixador tinha feito, para si próprio, uma adaptação criativa e muito pessoal do lema do Infante Dom Henrique: "Talent de rien faire".

terça-feira, junho 07, 2016

Campo Grande

Lembrei-me há pouco de uma frase em "A Capital", de Eça de Queiroz, quando Artur Corvelo, nas vésperas do regresso definitivo a Oliveira de Azeméis, ao procurar uma determinada senhora na Baixa lisboeta, recebe como resposta: "a senhora foi para o Campo Grande!" 

Para os lisboetas de então, ir da Baixa ao Campo Grande, de caleche, era uma aventura, em termos de tempo. Dir-se-ia que hoje seria tudo bem mais fácil.

Pois isso! Com as obras que hoje nos infernizam a vida (por que não se fazem esses trabalhos de madrugada, como é vulgar em terras "normais"?), senti hoje um desalento idêntico ao de Artur Corvelo. Do Campo Grande à Baixa, entre uma tarefa profissional e um almoço de outro trabalho, demorei uma eternidade. No regresso, acabei por chegar tarde a uma outra reunião. Arrependi-me em não ter chamado uma caleche...

segunda-feira, junho 06, 2016

Os dez mais...


De há uns tempos a esta parte, pegou a moda nos "sites" informáticos de destacar "os dez hotéis mais luxuosos do mundo", as "vinte paisagens mais espetaculares", as "cinquenta fotografias mais belas" e coisas deste género, coloridinhas com o "photoshop" profissional.

Ainda sou do tempo de uma célebre coleção de livros, creio que dos anos 60, que apresentava os "dez maiores criminosos da história", as "dez mulheres que mudaram o mundo, os "dez maiores roubos do século" (nessa altura o BES era gente "bem") e outras coletâneas, muito à moda Reader's Digest que então estava a dar.

Confesso que encanito com estas séries informáticas, mas, claro, já dei comigo a fazer o "vêzinho" e a dizer intimamente "só me faltam dois monumentos" ou "três paisagens estonteantes".

Por um lado, elas alimentam a neo-burguesia que obsessivamente quer visitar este mundo e o outro. São os lisboetas que não conhecem os altares de São Roque mas que já foram à ilha da Páscoa. São os portuenses que nunca subiram aos Clérigos, mas já dormiram no Raffles de Singapura ou sonham com o Rambagh de Jaipur.  

Há dias, porém, decifrei o mistério do surgimento destas listas. E é tão simples! Trata-se de enganar os anunciantes desses "sites". Por cada "clic" nesses monumentos ou lugares, o "site" conta um visitante. Assim, em "oitenta qualquer coisas", ao ser cada uma delas "clicada" pelo leitor, o lugar informático conta 80 visitantes. E o anunciante acredita. É simples, é barato e dá (quando dá) milhões... 

domingo, junho 05, 2016

PS

Sem surpresas, o Congresso socialista confirmou António Costa, de forma esmagadora, à frente do partido.

Se as "primárias" de 2014 tinham já revelado que uma larga maioria dos militantes lhe dava a sua confiança como candidato a primeiro-ministro, fica agora muito claro que a máquina partidária está praticamente em plena sintonia com a sua condução da complexa fórmula de governo por que optou. Com a instalação no governo, o partido passou a usufruir de tudo quanto significa a ocupação do espaço do poder, isto é, os lugares no Estado, que sempre alimentam a "bulimia" política alternativa dos aparelhos do PS e do PSD (de que o CDS foi marginal beneficiário nos últimos anos). E a "máquina" gosta...

António Costa provou que, como líder político, é, a uma grande distância, a melhor escolha que os socialistas poderiam ter feito, nesta conjuntura. Tem mostrado autoridade, excecional capacidade de negociação, mostrando grande frieza tática, nomeadamente na relação com o novo presidente da República. Tão importante como isso, revelou habilidade para caminhar no fio da navalha, adotando medidas populares de alívio da brutalidade do ajustamento, sem romper, até ver, com o essencial dos compromissos europeus.

Se as políticas que decorrem do modelo de alianças por que optou vierem a ter sucesso, Costa ganhará um lugar na história política portuguesa, e até europeia. Neste último caso, provará que havia uma alternativa à austeridade estúpida e desumana que havia sido imposta e que, afinal, era possível evitar o extremo sofrimento das pessoas, bastando para tal "esticar a corda" negocial com Bruxelas, dentro de limites de razoabilidade e bom-senso. Tenho vindo a constatar que só acha "radicais" as moderadíssimas reversões feitas pelo governo PS quem está bem na vida e não sofreu excessivamente com os tempos da "troika". Ou, então, quem está ideologicamente cego, estado de espírito por que tenho cada vez menos respeito.

Mas, com honestidade, temos de avaliar o peso do outro prato da balança. Costa não depende apenas do modo como as coisas se passarem no país. Há elementos externos que não controla e que, com facilidade, podem ter efeitos negativos nas suas "contas" internas. Porque as projeções com que arquiteou a estratégia financeira para 2016 assentam em valores que roçam os limites da plausibilidade, qualquer desequilíbrio pode ser fatal. E uma rutura provocada por um dissídio com a Europa, por muito injusta que fosse, teria consequências devastadoras para o país. E, naturalmente, também para o PS e para Costa, que sabe melhor do que ninguém que um novo resgate arrastaria os socialistas para um limbo político muito mais gravoso e prolongado do que aquele em que caiu depois da governação de Sócrates.

Duas notas mais.

A primeira para sublinhar a coragem de Francisco Assis. Pareceram-me despropositadas as entrevistas que deu antes do Congresso, que ele sabia que cairiam como "sopa no mel" na estratégia de desgaste da oposição. Não havia necessidade... Quem está no Parlamento Europeu como cabeça de lista do PS tem mais responsabilidade e não deve converter-se num fator desestabilizador do governo do partido a que pertence. Assis tem o pleno direito a dizer o que disse, porque isso representa um sentimento, embora minoritário, existente no seio dos militantes e simpatizantes. E fez bem em afirmá-lo no lugar próprio, no Congresso, o único lugar onde o deveria ter feito. Mais: tem o direito de o dizer sem ser apupado. Aliás, é irónico pensar que os que o vairam foram, com toda a probabilidade, alguns dos que aclamaram entusiasticamente António Guterres. E alguém sabe se Guterres está tão longe como isso das ideias de Assis?

Há um ponto em que Francisco Assis está, a meu ver, completamente errado. A política contemporânea na Europa aponta numa direção contrária àquela que ele propõe. Hoje, começa a ficar cada vez mais claro que a opção por um "centrão" tem um efeito nefasto sobre o sistema político, fazendo emergir, à esquerda e à direita, formações "enragées", que facilmente cobrem perigosas derivas populistas. Torna-se importante que, no "mainstream" democrático dos sistemas, possa haver lugar a reais opções, polarizadoras do eleitorado. Nos dias que correm, as alianças "ao centro" só se justificariam em cenários de emergência nacional.

A segunda nota é para constatar que a "geringonça" pode, afinal, ter "salvo" o PS. Eu explico. Ao titular, voluntariamente ou a reboque dos seus "compagnons de route", algumas medidas de uma agenda claramente de esquerda, o PS reforçou as suas credenciais nesse domínio face a um eleitorado que, nos últimos anos, se habituara, cada vez mais, a fugir para os partidos da "esquerda da esquerda" - Bloco e PCP. Colar a cara de António Costa a essa mudança ideológica, onde se inserem algumas políticas fraturantes que estavam muito longe de certos setores conservadores dentro do partido (em especial, os meios católicos), pode vir a garantir aos socialistas novos eleitores jovens de que bem precisa para construir o seu percurso de futuro. 

Enfim, um belo Congresso para António Costa. Quem diria, nos turbulento tempos de há seis meses, que tudo se passaria desta forma? Agora, resta ao PS esperar que os factos possam dar razão ao otimismo de Costa. Quando Mário Centeno voltar a usar aquele seu simpático e franco sorriso dos primeiros tempos, dormirei muito mais descansado. Ainda há dias lhe disse isso...

sábado, junho 04, 2016

D'honneur

O franceses orgulham-se muito da sua mais importante condecoração nacional, a "Légion d'honneur". A relativa raridade com que é atribuída e o facto dos respetivos graus mais elevados serem muito difíceis de atingir, tornam-na numa condecoração referencial, mesmo no plano internacional. Em França, garante as melhores mesas nos restaurantes...

A "roseta" (o botão que se usa na lapela dos fatos) da "Légion d'honneur" é idêntica a uma das mais importantes condecorações portuguesas, a Ordem Militar de Cristo, bem como a uma outra similar ordem existente na Santa Sé. Para evitar confusões (note-se que usar uma condecoração indevida é crime, em França), no século XIX os franceses determinaram ser ilegal a utilização pública no seu território daquelas duas condecorações estrangeiras

Contava-se nas Necessidades que, um dia, a um importante diplomata português foi perguntado pelo embaixador francês, numa receção, se a condecoração que ele exibia era a "Ordem Militar de Cristo". O nosso diplomata, "modesto", terá respondido: "Non! Ce n'est que la Légion d'honneur"!" (é apenas a "Légion d'honneur")

sexta-feira, junho 03, 2016

O civismo, o comodismo e o mistério das quintas-feiras

Percebo que este tema possa ser polémico e até desagradável para alguns. Todos os dias, imensos cidadãos lisboetas (não sei o que se passa noutras cidades) são confrontados, de manhã e à tarde, quando se deslocam para as suas ocupações ou delas regressam no final do trabalho, com diversas ruas da cidade atravancadas com o estacionamento, em locais não permitidos para tal, em segunda ou terceira fila, de viaturas privadas que impedem ou dificultam fortemente o trânsito. É bizarro o espetáculo de autocarros e elétricos, usados por quem não tem automóvel ou por quantos não o podem utilizar ou seguem a recomendação para o uso de transportes públicos, parados por largos minutos, com prejuízos incontáveis para quem os utiliza . Isto para já não falar das viaturas privadas, também elas limitadas arbitrariamente no seu direito de circulação. Trata-se de uma quantidade imensa de pessoas prejudicadas, atrasadas nos seus horários de vida, por esta prática diária e persistente.

Refiro-me, naturalmente, ao caótico transporte das crianças para as creches ou para outros estabelecimentos de ensino. Percebo que há uma necessidade imperiosa de se fazer a entrega e a recolha desas crianças. Mas isso tem de ser feito de forma organizada, expedita e sem prejuízo de terceiros.

Tendo todas essas escolas sido autorizadas a funcionar sem se preverem zonas para a receção de alunos que não chegam autonomamente, ou que os familiares decidem acompanhar, não seria possível esses estabelecimentos terem pessoal seu a acolher as crianças junto às viaturas ou mesmo à porta dos estabelecimentos de ensino, trazendo-as de volta à hora de saída? Não é próprio de uma cidade moderna europeia este espetáculo terceiro-mundista, vulgar em países onde a autoridade pública e a capacidade de influência deriva das clivagens económico-sociais, de ver pais e mães (e muitos avós) a mergulharem nos edifícios das escolas por longos minutos (e nós sabemos como os minutos são mais longos quando estamos com pressa), espalhando a confusão pelas ruas. Será legítimo um pai ou uma mãe ou um avô tornarem reféns da sua tarefa familiar dezenas de pessoas que seguem em transportes públicos ou privados? E por que razão a Carris não atua ao ver os seus utentes diariamente prejudicados? E o ACP? Só lhe interessam as velocidades e os parkings? Ou será que os associados (como eu sou) também fazem parte desses prevaricadores diários?

Repito. Sei que este comentário não é consensual. Sei que as autoridades policiais, tratando-se de quem se trata (pais, colégios, interesses), não "mexem uma palha". Mas poderiam fazê-lo, se assim quisessem? Claro que sim e a prova provada é que, às quintas-feiras, junto ao colégio dos Salesianos, perto dos Prazeres, uma das "no-go areas" da Lisboa matinal, o trânsito flui com rapidez. Mistério? Não, é porque, por ali perto, há, nesse dia, Conselho de Ministros...

Jorge Cabral

Por deliberada opção, este blogue muito raramente assinala nomeações feitas dentro da nossa carreira diplomática. Porquê? Porque sendo isso uma rotina constante do Ministério dos Negócios Estrangeiros, se acaso fosse esse o caminho, e conhecendo eu ainda muita gente por aquela casa, este espaço tornar-se ia numa espécie de "gazeta dos claustros". Tempos houve em que o Carlos Albino, no "Notas Verbais", fazia isso, no seu inconfundível estilo. No meu caso, não fui por aí.

Abro hoje uma exceção para assinalar o que me parece ser a excelente escolha feita pelo ministro Santos Silva, como novo representante português no Brasil. Por razões afetivas, o Brasil interessa-me bastante. Ainda ontem estive, com o embaixador brasileiro em Lisboa, Mário Vilalva, a falar sobre as relações luso-brasileiras, quando ambos apresentámos um livro de Leonor Xavier que tem esse tema no seu centro. 

Jorge Cabral, o nome indicado, é um diplomata da nova geração que tem vindo a fazer uma sólida carreira, tendo desempenhado sucessivamente, com grande qualidade profissional, o cargo de embaixador em dois postos difíceis e delicados - Teerão e Ancara. Conheço-o desde que entrou para o MNE e sempre apreciei nele a seriedade e o rigor profissionais, servidos por um grande bom-senso, indispensável qualidade num diplomata. Espero que tenha a sorte que merece, num tempo brasileiro muito exigente, de mudança mas também naturalmente de esperança. Jorge Cabral vai substituir aquele que foi, segundo todos os testemunhos que me chegam, um dos melhores embaixadores que Portugal teve em Brasília, Francisco Ribeiro Telles. É mais um desafio que tem perante si.

Tenho muita pena que António Pinto da França não esteja vivo nos dias de hoje. Posso imaginar o divertido que seria uma inevitável conversa nossa com o Jorge sobre esse país fascinante que, como disse um dia António Carlos Jobim, "não é para principiantes".

... e logo se vai ver!

Ver aqui .