A história do Partido Socialista, como a de outras formações democráticas. fez-se sempre de conflitualidades, umas assumidas outras surdas, de choque de personalidades, que só raramente tem sido um confronto de verdadeiros programas alternativos. O que hoje por lá se passa não é, assim, nada de verdadeiramente novo. E nada que não fosse expectável, devo dizê-lo.
O PS vive ainda na ressaca do período Sócrates, da derrota profunda que sofreu em 2011 e da culpabilização que foi passada para a opinião pública de que parte importante dos sacrifícios por que os portugueses foram obrigados a passar desde então, mesmo se potenciados por um governo que decidiu agravá-los com uma receita ideológica radical, assentam na crise financeira criada ao país, derivada de opções políticas tidas por erradas.
Desde as eleições de 2011, dentro do PS, firmaram-se claramente duas linhas.
Uma que, de certo modo, partilha sem o dizer uma leitura crítica sobre a anterior gestão socialista, procurando reconstituir, com propostas e algum pessoal político novo, um regresso ao que entende ser a credibilidade perdida junto do eleitorado. Essa linha nunca se mostrou muito ativa na recuperação do património positivo do período Sócrates e, de forma aparentemente deliberada, marginalizou figuras que achou demasiado marcadas por esse tempo.
A segunda linha considerou, desde o início, que a distanciação pretendida face ao tempo de José Sócrates estava a ser exagerada ou era mesmo injusta, e que, com essa postura, o PS acabava por ajudar "à festa" dos outros. Verdadeiramente, essa linha sujeitou-se mas nunca respeitou a nova liderança, de cuja orientação estratégica quase sempre discordou.
O fim relativamente mais suave do que o previsto do processo de ajustamento, bem como uma vitória do PS nas eleições europeias que ficou muito aquém daquilo que alguns consideravam exigível, depois de três anos de ambiente de forte austeridade, criou um clima propício ao reacender da confrontação entre as duas linhas. Com efeito, para os setores críticos da atual gestão socialista, existe hoje o claro perigo de que o governo, depois de ter sido "dado como morto" várias vezes, venha ainda a "ressuscitar" a tempo das eleições legislativas de 2015. E esses setores não vislumbraram na atual liderança do PS a capacidade de reverter essa potencial tendência.
A reação de António José Seguro a este "challenge" não surpreendeu. Ele considerou a sua liderança suficientemente legitimada por duas vitórias eleitorais consecutivas, independentemente da leitura que outros faziam da respetiva dimensão. Entendeu, por isso, ter todas as condições para prosseguir no lugar que ocupava.
O surgimento de António Costa a contestar a liderança também não foi uma surpresa. De há muito que ele aparecia como a alternativa a Seguro, alimentada pelos vários setores críticos da atual liderança. De certo modo, o discurso triunfalista de Seguro na noite eleitoral, onde vislumbrou uma "grande vitória" naquilo que muitos consideraram uma vitória pouco expressiva, pode ter criado o "caldo" político que ajudou a decidir António Costa a avançar.
O impasse criado pelos estatutos, que formalmente não permitem um Congresso eletivo antes do termo do mandato, poderia ter sido ultrapassado se Seguro tivesse querido relegitimar de imediato a sua liderança interna, indo de novo a votos. Ao sentir-se "ferido" pela contestação, que entendeu injusta e oportunista, ao decidir identificar a sua indiscutível legitimidade formal com plena legitimidade política, Seguro assumiu um forte risco. E logo sentiu que tinha de reagir. Optou então por procurar sair dessa dualidade através da solução alternativa das "eleições primárias", atitude que, a seu ver, demonstrava a disponibilidade para ser julgado politicamente - ironicamente, oferecendo a António Costa um "eleitorado" para além do universo partidário, onde, aparentemente, o sentimento generalizado parece ser favorável ao presidente da municipalidade lisboeta.
A meu ver, o gesto de Seguro, ao avançar para as "primárias", tem a virtualidade de o ver assumir a coragem de se submeter a um novo voto, num quadro de modernidade democrática, sem entretanto beliscar a legitimidade formal que ciosamente quer preservar. Mas o facto dessas eleições demorarem compreensivelmente a organizar, coloca o PS num incómodo período de "limbo" político, que será detrimental para os seus interesses se acaso esse tempo vier a ser marcado por um debate fratricida, que dê ao país uma imagem menos responsável da alternativa ao governo que por aí anda. E esse risco legitima, de certo modo, a atitude de Jorge Sampaio e de outros socialistas, quando se interrogaram sobre se não seria então mais avisado avançar para uma clarificação imediata, através de eleições "diretas" internas, que poupassem esses meses de confronto.
António José Seguro assim não entendeu e, para o bem e para o mal, assumirá as consequências dessa decisão. A meu ver, é ocioso estar agora a especular muito mais sobre isto, já não interessa fazer "chover no molhado". O PS e os seus simpatizantes terão o ensejo, em 28 de setembro, de escolherem quem entendem melhor preparado para o conduzir até às eleições de 2015. Só podemos desejar um debate com elevação, sem insultos e acusações, que o país julgaria severamente na imagem do PS. E seria interessante se pudéssemos ter, como pano de fundo desta escolha de pessoas, o privilégio de assistir a um confronto de ideias para o país.
Temo, porém, que, uma vez mais, as coisas se coloquem em termos de personalidades e bastante menos na análise de programas e propostas. Um dia do século XIX, Miguel de Unamuno escreveu que a "fulanização da política" era uma das caraterísticas portuguesas. Prova-se que tinha imensa razão.