A primeira vez que ouvi falar na hipótese de Mário Soares voltar a concorrer a umas eleições presidenciais foi pela boca de José Medeiros Ferreira, na tertúlia que o seu cunhado e meu amigo Nuno Brederode Santos, animava na Mesa Dois do bar Procópio. A conversa terá sido no início de 2005, um ano antes do sufrágio.
O Zé Medeiros era um homem de ideias ousadas, mas aquela parecia-me francamente excessiva. Lembro-me de ter colocado muitas dúvidas sobre a possibilidade de Mário Soares poder estar interessado em meter-se nessa nova aventura. O Nuno, confrontado com ela, foi dizendo, prudente, que "com o Soares, nunca se sabe...".
Talvez eu tivesse a obrigação de não ficar surpreendido com os acessos de vontade de Soares de regressar à política ativa, depois dos dois mandatos cumpridos em Belém. Anos antes, eu tinha sido confrontado com a sua inesperada disponibilidade para concorrer ao Parlamento Europeu. Aliás, tinha-me mesmo cabido a missão, de se provou impossível, de tentar "enquadrá-lo" na linha europeia do governo. Mais tarde, já depois de Soares eleito, fui também encarregado de fazer discretamente, junto fe instâncias europeias, o "damage controle" das consequências de uma sua inopinada, e falhada, tentativa de ser eleito presidente daquela instituição, rompendo imprudentemente com equilíbrios europeus consagrados. Mas isso são outras histórias.
Nesse ano de 2005, logo após essa conversa no Procópio, parti como embaixador para o Brasil. Um dia, Mário Soares telefonou a convidar-me a acompanhá-lo e a intervir num colóquio organizado no Recife, em que ia ser recordada a aventura do assalto ao paquete Santa Maria, que, em 1961, ali tinha aportado, capitaneado por Henrique Galvão, no mais ousado desafio que a oposição democrática fizera a Salazar.
Por todas as razões, mas acima de tudo pelo imenso respeito que tinha por Mário Soares, desloquei-me de Brasília ao Recife para o evento. Fui buscá-lo ao aeroporto do Recife e, na conversa até ao hotel onde ambos nos hospedávamos, contou-me que, na véspera, tinha tido um longo encontro com o primeiro-ministro José Sócrates, na residência oficial de São Bento. Não referiu o objeto desse encontro, mas o modo deliberadamente vago como mencionou o assunto intrigou-me. Confesso que, naquele momento, eu estava longe de ligar aquilo à candidatura presidencial. Mas, na realidade, esse tinha sido o motivo da conversa.
(Soares disse-me que, enquanto esperava para ser recebido por Sócrates, tinha surgido na sala um empregado da residência oficial, a oferecer-lhe um café. Era uma cara dele conhecida: já ali trabalhava quando Soares fora primeiro-ministro. Ficaram por uns minutos à conversa. Curioso, Soares perguntou-lhe se era verdade o que corria, à boca pequena, sobre a "agitação" das noites na residência oficial, ao tempo do anterior titular do cargo. "Contou-me umas histórias deliciosas", disse-me Soares. Mas, discreto, não entrou em pormenores sobre tais revelações.)
Tempos mais tarde, iria surgir a público o anúncio da recandidatura de Mário Soares à presidência da República. Do outro lado do espetro político, viria a aparecer Cavaco Silva, há muito pressentido como candidato, depois da clamorosa derrota que Jorge Sampaio lhe tinha infligido quase uma década antes. Mais tarde, emergiu Manuel Alegre, ficando o campo socialista dramaticamente dividido.
O PS oficial apoiou Soares. À minha medida, também o fiz, integrando a sua comissão de honra, embora, muitas vezes, no passado, tivesse estado bem distante do "soarismo". Entendi, contudo, não dever furtar-me a estar, naquele momento, ao lado da última luta de uma pessoa cujo nome se confundia com o nosso regime democrático. As possibilidades de sucesso da candidatura de Soares pareceram-me sempre muito escassas, mas para mim isso era o que menos importava.
Soares foi copiosamente derrotado nessa eleição, com Cavaco Silva a ser eleito logo à primeira volta e Manuel Alegre a obter um resultado bem mais simpático. Seria, aliás, a única derrota de Mário Soares, em eleições livres em Portugal. Na memória política portuguesa, essa campanha não deixou grande marca.
Há semanas, na Feira do Livro, a um preço quase simbólico, deparei com um volume assinado pelo jornalista (que falta nos faz ler o meu homónimo de sigla FSC, com regularidade!) Filipe Santos Costa, precisamente intitulado "A Última Campanha". Bem escrito, num tom ritmado, o livro é como que o "script" de um filme da campanha, com algumas revelações que nos ajudam a perceber melhor "os mundos de Mário Soares" (e aqui recupero o título de um livro de Hubert Védrine, "Les Mondes de François Mitterrand").
Estava eu longe de pensar que, quase duas décadas depois, iria passar umas horas a ler, com interesse, sobre a última e menos saliente aventura política de Mário Soares.