segunda-feira, dezembro 28, 2009

Tentações


O ambiente era, de facto, fantástico. Uma noite num belíssimo bar, à beira-mar, figuras femininas disponíveis, em quantidade e qualidade, aquela cultura comportamental de relativa impunidade que as reuniões internacionais, em especial se realizadas "a Sul", tendem a proporcionar, a partir do momento em que álcool flui e aflui.

Notei que o ministro que chefiava a nossa delegação, começava a enveredar por uma atitude demasiado "solta". Muito em especial, preocuparam-me olhares distantes, embora distraidamente atentos, de diversos compatriotas presentes. Longe de mim ser puritano, mas desagradam-me escândalos com efeitos de Estado.

A certo passo da noite, pressenti que as coisas se podiam precipitar. O ministro encaminhava-se, com uma companhia que, durante a última hora, se estava a tornar insistente a seu lado, para zonas mais recatadas da varanda, num caminho que facilmente podia conduzir aos quartos. Ia num estado de pouco controlada euforia, que já não passava despercebida a muitos dos circunstantes. Dei uma palavra de aviso ao respectivo chefe de gabinete, mas encontrei-o num "mood" similar, sem vontade de atrapalhar os planos do chefe, talvez preparando-se para enveredar por terrenos idênticos.

Propositadamente, decidi passar por perto do ministro e da sua companhia. Não havia uma grande confiança entre nós, mas o facto de eu ser "dos Estrangeiros" conferia-me como que uma leve autoridade cosmopolita, de alguma habituação àquelas andanças, que ele manifestamente não tinha. Talvez por isso, sem ser demasiado explícito, deitou-me, à passagem, com um largo sorriso, a pergunta cúmplice: "Você acha que há algum problema?". Subentendia-se bem o que pretendia significar... Devo ter feito um carão fechado, quando lhe respondi, seco: "Há dois problemas: a Sida e o "Expresso" de sábado. Mas o senhor ministro é que sabe!".

Senti-o logo inseguro, talvez mais com o segundo problema do que com o primeiro. A "Gente" era uma secção onde se podiam comprar grandes chatices e que havia já feito obituários políticos sumários. Dei meia volta e regressei ao bar. Apareceu por lá, só, minutos depois. Não me falou. Já com ar deliberadamente sério, juntou-se a outros membros da nossa delegação e, volvido pouco tempo, deu as boas noites e subiu para o quarto. Julgo que sozinho, até porque a anterior companhia regressou ao "mercado" da noite.

No dia seguinte, no avião, evitou-me. Ainda hoje o faz, nos restaurantes lisboetas, décadas depois.

19 comentários:

Anónimo disse...

Hum, hum...quem terá sido o "melro"?? Dá-se alvíssaras!
Adido de Embaixada
PS: Já passei por algo semelhante...só que a companheira do Ministro era do...seu próprio gabinete.

Anónimo disse...

Pois essa faceta da diplomacia...
Sensatez,embora...
Desmancha prazeres.

No mínimo... Interessante...

Isabel Seixas

José Torcato disse...

Só duas palavras para descrever como são interessantes os seus temas.É a primeira vez que faço um comentário. Espero repetir. Muito obrigado.

Helena Oneto disse...

Ah!!! agora percebo muito melhor as razões de Estado que conduzem à 'necessidade' de multiplicar reuniões multilaterais e ao facto de estas se soldarem raramente em consenso 'au premier tour'.

Não me admira nada que o Ministro ainda hoje o evite:):):)!

ARD disse...

O canto das sereias dos mares do Sul é demasiadamente encantatório para alguns neófitos nessas andanças.
E depois, como dizia o outro, o alcool é bom mas a carne é fraca.
Cala-te, boca...

margarida disse...

Este é um tema…muito interessante, porque visceralmente humano.
As vacilações deste calibre interessam-me sobremaneira; afiro melhor a absoluta ‘normalidade’ dos que se alcantilam a certos pedestais.
É, também, muito interessante o olhar do narrador; que se declara não puritano mas que, de mansinho, o é. Não se trata de reparo - somos todos exactamente assim, balançamos entre o austero e o licencioso de acordo com as circunstâncias e os protagonistas. E as consequências dos delírios.
São os ministros, os diplomatas, todos os altos servidores do Estado, menos homens ou mulheres que o comum dos mortais? Não, mas têm outras obrigações comportamentais. Mesmo que iludam a sua natureza e bloqueiem os seus desejos. Faz parte do estatuto, e daquilo que sobretudo deles esperamos: exemplo.
As tentações são tão frívolas…, mas eles (vós) são (sois) escolhidos para serem distintos.
Mas, porque permitem a circulação de certas ninfas nesses salões festivos, se pretendem especial recato e decoro nos eventos em curso?
É que ‘não há santo que aguente’…
Na verdade, simpatizei com a ‘fraqueza’ do ministro que, de enfeitiçado, nem se preocupava em camuflar o feito (se bem que não fora ele o conquistador, mas a ilusão é sempre terna) e foi chamado à atenção com uma sobriedade gelada.
‘Noblesse oblige’, é claro; mas que grande balde de água fria não terá sido para o pobre…

margarida disse...

(nota esdrúxula: tenho mesmo de começar a reler previamente o que escrevo, por razões gramaticais, de parataxe e outras…;tanta repetição de ‘interesse’! que pobreza verbal…)

Maria Climénia Rodrigues disse...

Não há duvida que os tempos mudaram muito, e ainda bem, no meu tempo de MNE, então na flor dos 20anitos, secretária de um dos mais altos dignatários da altura, tudo era mais low profile...enfim...(isto é só uma muito pequenina intervenção, neste blogue, que sigo com bastante interesse...

Helena Sacadura Cabral disse...

Senhor Embaixador,
Como pode calcular, com as missões que desempenhei na já longa vida profissional que levo, este tipo de "tentações" se não foi o pão nosso de cada dia, terá sido, pelo menos, o pão de muitas noites...
A "estória" é deliciosa e o comentário da Margarida não lhe fica atrás.
Mas o que me fez intervir neste curioso post, foi a sua magnífica expressão "desagradam-me escândalos com efeitos de Estado".
É que esse tema, que me é particularmente caro, deve dar-lhe... frequentíssimos desagrados.
Sorte sua, Senhor Embaixador, a de viver aí!

José Barros disse...

Um dos grandes problemas das nossas sociedades é o de só raras vezes haver, no interior do próprio corpo, vozes que se levantem, ainda que discretamente, para alertarem sobre os desvios da corporação... Com a sua repetição estas práticas, em vez de nos enviarem para noções de prevaricação passam mesmo a ser consideradas como tempos de lazer necessários ao bom funcionamento e já ninguém, ou raras vezes, se apercebe do desvio da função. Um Ministro é pago, e bem pago, para defender os interesses do seu país, que não deveriam ser diferentes dos interesses do seu povo, e não para gozar os seus próprios prazeres. Pelo menos que haja respeito para a função! Ainda bem que aquele ministro guardou algumas onças de vergonha que lhe podem servir no futuro.

estouparaaquivirada disse...

Gostei muito. Como sempre!
A CULPA e a VERGONHA.....:)
Pode ser que esse Senhor tenha aprendido alguma coisa...

Anónimo disse...

Ó Embaixador! Então isso fazia-se ao homem? Ainda por cima ele deixou de ser ministro pouco tempo depois, não foi? Não o voltou a encontrar em outras episódicas funções de Estado que ele desempenhou? E o chefe de gabinete? Ele também foi Secretário de Estado

TDF

Anónimo disse...

Presenciei um outro caso, nos idos de 80. Um, à época, importante assessor de um Alto-Dignatário, por ocasião de uma visita preparatória que esse A-D iria efectuar àquele país onde me encontrava, uma vez concluídos os “trabalhos” solicitou umas garotas ao porteiro do Hotel onde ficara instalado. E lá apareceram. No dia seguinte perguntei-lhe se tudo “tinha corrido bem”. A resposta: “Uma maravilha! Ambiente das Mil e Uma Noites!”. Uns anos depois, já Ministro, quando nos cruzámos num Posto onde me encontrava colocado, ele, ali em visita de trabalho, ignorou-me (ou quase). Um dia, reencontrámo-nos, ele, então, já dedicado ao mundo empresarial. Como eu estava acompanhado de alguém cujo contacto lhe interessava, engendrou uma forma de falarmos, em virtude de eu ter fingido que o não tinha visto. E não encontrou melhor forma para início de conversa do que recordar “aquela noite deliciosa, na companhia de tão deslumbrantes ninfas!”.
António do Rilvas

Helena Sacadura Cabral disse...

Caro TDF
Só mesmo em Portugal é que se pegam de caras os "faltosos"...
Gargalhei ao imaginá-los na situação descrita pelo nosso Embaixador!

Jose Martins disse...

ciasSenhor Embaixador,
Esta vem mesmo a propósito!
Bem é que eu, em Banguecoque, durante 24 anos tive suportar várias delegações ministeriais, presidenciais e daquelas de rotina.
Ora essa gente ( mui honrada e de fidelidade a suas esposas), entrava em órbita na “Cidade dos Anjos” e acontecia a infidelidade (tranquilos os que me lerem que não abro pio) e uma carga de trabalhos para “enfiar” a mercadoria nocturna nos hotéis de 5 estrelas.
As escapadelas sempre correram pelo melhor.
Mas a tragédia aconteceu numa noite depois de um jantar, numa esplanada aprazível na margem do rio Chão Praia.
A mercadoria nocturna era da primeira colheita e bonitinha.
Mas mas o ilustre e pessoa grada de um ministério (não haja pranto porque não era do MNE) caiu de amores por uma pérola levemente tostada.
Aquilo foi mesmo amor à primeira vista...
Saímos do restaurante e transportei a ilustre companhia ao seu hotel.
Junto a mim uma pérola, no assento de trás o ilustre mais a sua.
Pelo espelho retrovisor olha os dois enleados de amor...
E disse-lhe: Sr................ a sua pérola gosta de si...
Retorquiu: é muito meiguinha...
Fui deixar as pérolas ao local que me indicaram.
Mas acto contínuo quando esperava o ilustre sentar-se junto a mim, seguiu a sua pérola que bem se rebolava, para mais a outra de imediato se meterem num táxi.
Para os meus botões: “o raio do homem parece que nunca viu pérolas...!!!
Era tarde e havia que dormir.
Chegou junto a mim a gritar estou roubado, estou roubado!
Levou-me o dinheiro e os cartões de crédito e os documentos!
Voltei o carro, disparei a toda a velocidade atrás do táxi que nunca mais o encontrei...
E digo-lhe: “mas eu avisei-o que levasse consigo 200 dólares na carteira...
Foi essa importância que de facto meti...
Mas a p........ levou-me o resto...
Ao outro dia cancelou-se o Américan Express , o Visa e Master Card.
Já lá vãon 18 anos...
José Martins

Santiago Macias disse...

É sembre assim, nos blogues. Bem se podem publicar poemas e fotografias, crónicas e árias de ópera. Os comentários contam-se pelos dedos de uma mão. Basta surgir um tema mais picante - cheguei a contar cinco dezenas de opiniões no meu blogue, a propósito de uma questão de política local - para choverem as participações.
A história que conta é particularmente divertida (tento, sem conseguir, imaginar a cara do ministro quando referiu os "dois problemas"). De qualquer maneira, e considerando diversas variáveis, as opções em relação ao protagonista são bem poucas, valha a verdade.

Helena Sacadura Cabral disse...

Ó Senhor Embaixador, depois de ter lido o post sobre os negócios funerários, vim aqui. E estalei de riso com as "estórias" da vida publico privada aqui relatadas e com o comentário de Santiago Macias.
Pela foto, ele parece bem jovem. Quando avançar pelos cinquentas vai-se rir ao lembrar o que agora escreveu.
Também eu diria o mesmo. Até ler o Eça e perceber como funciona a cabeça nacional. Mas anime-se: tenho dois blogues de prosa poética - julgo eu que são - e um quinto dos seguidores daquele em que escrevo diariamente...

Anónimo disse...

Nos finais de 70, num determinado Posto algures na Ásia, um Chefe de Missão quando ia, discretamente, a um cabaret, saciar a carne, um dia caiu ao rio. Ia e voltava sempre junto ao muro em frente ao rio, para não ser apanhado (visto) pela mulher. Naquela malfadada noite, talvez por ter bebido um pouco demais do que devia, desiquilibrou-se e zás-catrapáz lá foi malhar com os ossos ao rio. E foi uma chatice, por a mulher ter vindo a descobrir. Coisas da vida diplomática!
Pirilampo do Rilvas (já que existe um António)

C.Falcão disse...

Livro: Recordações dum Embaixador Transmontano. Capitulo ???

«O ambiente era, de facto, fantástico. Uma noite num belíssimo ( mais que lindo...) bar, à beira-mar, figuras femininas disponíveis » sem falar da convidativa fotografia, nem da belissima figura femenina que imaginamos "une belle jeune femme plutôt canon". Tudo reunido...


Comentário em periodo de Fêstas.
Não sou um "ás" da semântica nem da prosa. Lá consigo «alinhar umas letras.». Então vamos lá.
Ao ler o seu texto, nesta ''realidade de interpretações'' que construiu, fechei por vezes os olhos, e imaginei os vários cenários do filme...

Imaginei o Francisco, de copo na mão, a cabeça "no ar" - ,demasiado "solta..."- mais preocupado com "os negócios" do ministro chefe que, com a ordem do dia e a comunicação analógica da reunião... Diplomacias, direi.

Francamente, Francisco, nem parece seu. Estragou a "barraca" ao homem. Um ministro, antes de o ser, é um homem. "Pobre" diplomata, falto-lhe a coragem necessaria... «Haja coragem de assumir o que somos, sem vergonhas», como já aqui foi escrito.

Talvez lhe faltasse experiência naquele tipo de andanças... O primeiro milho é dos pardais.

Com a devida e respeitosa vénia.
Joyeuses fêtes de fin d'année... Para todos.
Carlos Falcão

25 de novembro