quarta-feira, agosto 19, 2009

Selecções

A "Reader's Digest" anunciou ontem falência nos Estados Unidos. Ao ver a notícia, fui invadido por uma leve nostalgia.

Aproveito para deixar claro que as memórias que, por vezes, trago para este blogue não representam, necessariamente, qualquer saudade de outros tempos. Com escassas excepções, o presente é bem melhor do que tudo o que ficou do lado de lá da esquina da História, por mais graça que esse tempo tenha então tido, por mais complexa que a vida de hoje seja. Pelo menos, eu penso assim, com sinceridade.

A "Reader's Digest" lembra-me as suas "Selecções" (ou melhor, as "Seleções"). Cresci com elas sempre lá por casa, na sua versão brasileira, espreitando "pin-ups" que a publicidade caseira não comportava ainda nos seus cânones, com propaganda a frigoríficos e automóveis que não havia em Portugal. E tinha sempre, pelas suas páginas de textura sedosa, donas-de-casa loiras e de "permanente", tipo Doris Day, com camisas aos folhos e saias compridas rodadas, ao lado de cavalheiros invariavelmente elegantes, tipo Cary Grant, quase sempre de fato e chapéu ou naquilo que os brasileiros designam por "esporte fino", ao lado de crianças sorridentes e felizes nas suas bicicletas e bonecas (nunca houve muitas bolas por lá), sempre à porta de moradias com relva a descer para as alamedas dos bairros. Sorridentes e sempre brancos, claro. Era a América oficial que exportava a imagem do "way of life" de alguns.

Fui leitor assíduo de rubricas como "Meu tipo inesquecível", "Flagrantes da vida real", "Rir é o melhor remédio", "Piadas de caserna" ou o "Enriqueça o seu vocabulário" - onde, pela primeira vez, devo ter pensado nas vantagens do Acordo Ortográfico. Nunca li, e nunca me arrependi, nenhuma das suas irritantes sínteses de romances, mas algumas vezes fui à procura do volume completo. Devo também às "Selecções" a minha hipocondria, pela reiterada inclusão de artigos sobre doenças, cuja sintomatologia tantas vezes partilhei. Já não cheguei à fase das peças sobre dietas... logo quando mais delas necessitava!

Só tarde me apercebi, ou me fizeram aperceber, da existência, em cada número das "Selecções", de três ou quatro artigos onde, com maior ou menor subtileza, se fazia a apologia de ideologias convenientes aos interesses americanos. Mas, na verdade, que importava isso, no tempo cinzento do salazarismo? Claro que as "Selecções" diziam mal dos comunistas, mas com bem mais sofisticação do que o "Diário da Manhã", o "Novidades" ou o "Diário de Notícias". E também lembravam, numero-sim-número não, belos episódios das glórias aliadas na 2ª Guerra Mundial.

Um dia, as "Selecções" aportuguesaram-se e, pouco a pouco, foram desaparecendo do nosso horizonte de leitura, concorrendo com outras publicações mais apelativas. Às vezes, antes de entrar num comboio, ainda comprava as "Selecções", mais por curiosidade do que por interesse. A "Reader's Digest" passou então a ser mais famosa por livros e discos que editava e que uma inventada "Marta Neves" nos propunha, em regular e personalizada epistolografia - alguns, aliás, de grande qualidade.

Há anos que já não lia as "Selecções". Minto: há poucas semanas, numa casa de campo nortenha, encontrei exemplares das edições brasileiras, dos anos 40 e 50 do século passado, alguns já sem capa, e, confesso, diverti-me bem com algumas historietas, bem de um outro tempo. Será isto nostalgia?

7 comentários:

João Antelmo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
João Antelmo disse...

Devo às “Selecções” um coisa altamente positiva: a minha preocupação com a higiene oral.
Vivíamos o pós-guerra, corriam os anos 50.
As selecções traziam ao aos confins de África os sinais de uma civilização a que não chegávamos, multiplicando por muitas vezes o fascínio que o Embaixador descreve; uma “modernidade” que, além das Selecções”, só a revista “Cruzeiro” e os filmes que, de longe em longe, nos mostrava o cinema ambulante nos permitiam entrever..
As “Selecções” inseriam insistente publicidade a uma pasta dentífrica, a Kolinos, com um slogan tão bem “targeted”, com se viria a dizer muito mais tarde, de que hoje, mesmo com a velhice fazendo das suas à memória (ou por isso mesmo) ainda me lembro: “Duas vezes ao ano, visite o dentista; três vezes ao dia, seja kolinoísta”.
A partir daí, a sujeição à tortura da broca (manual…) do prático canhestro e alvar que me escarafunchava a dentição, só se justificava se tivesse a possibilidade de ser kolinoísta três vezes ao dia. Uma coisa sem a outra não funcionava, não tinha justificação.
Assim, tornado ferro de lança do avassalador imperialismo americano, consegui impor à família a Kolinos, em detrimento de Colgates e quejandas.
Não sei se a Kolinos tinha entrado em Portugal; talvez lhe tenha acontecido o mesmo que à Coca-Cola. Mas em Moçambique, tal com a dita, era vendida.
A embalagem era de uns amarelo e negro agressivos, contrastando com a suavidade rosa do produto; e, sobretudo, vinha acompanhada de uma engenhosa invenção da tecnologia americana, uma peça em plástico e forma de chave, com uma ranhura em que se enfiava a base do tubo e que ia sendo rodada, de forma a espremer a pasta. A chave, um pouco semelhante às usadas para abrir latas de conserva, tinha, depois de cumprir a sua função de aproveitar ao máximo o creme e de manter a parte ainda não espremida cheia e reluzente, inúmeras outras utilidades fascinantes e variadas, verificadas “ad hoc” durante as brincadeiras infantis.
Ao longo da minha vida de adulto, entre as muitas pequenas e irritantes ninharias que me desfeiaram a personalidade, contou-se uma que foi causa de arrufos com algumas senhoras que comigo partilharam a vida e as pastas de dentes: o hábito alheio de apertar a dita cuja pelo meio, deixando no tubo uma depressão inestética e desnecessária.
Uma vez em que a minha reacção foi demasiado intempestiva, procurei, caído em mim e com a generosa ajuda da co-utente da pasta, a raiz profunda de tão estranha idiossincrasia: era a chavezinha da Kolinos, invenção genial duma época ainda não consumista e não contaminada pela cultura do desperdício.
Não voltei a por em perigo a minha convivência quotidiana por causa de dedadas mal aplicadas (embora ainda tenha um mudo acesso de irritação ao constatá-las).
Mas que as “Selecções” me evitaram dramas entomológicos maiores, lá isso evitaram.
Enfim, “flagrantes da vida real”.
Resta dizer uma coisa menos simpática: As “Selecções” foram, durante a Guerra Fria”, um instrumento da ideologia de extrema direita mais obscurantista e belicosa,
uma das manifestações mais reaccionárias da afirmação imperial e anticomunista da América de J. Edgar Hoover e de McCarthy . Nenhum deles se tornou o “meu tipo inesquecível” .

Francisco Seixas da Costa disse...

Nem meu, pode crer...

margarida disse...

Também guardo dezenas destas revistas, uma espécie de herança ternurenta por tanto que 'vi' através delas e o imenso que sonhei. Até hoje a 'imagem' mais fabulosa do mar que me ficou para sempre marcada foi de uma das suas capas.
Teria defeitos, não me importa. Acompanharam-me muito e aprendi a perceber as 'falhas'.
Mesmo assim, é certo que influenciaram.
Mas considero uma boa influência.
;)

Anónimo disse...

Também li as selecções com prazer e entusiasmo...
Isabel Seixas

Anónimo disse...

Não só li, como ainda possuo alguns exemplares que meus avós, quer no Douro, quer na Beira-Alta, recebiam, ou compravam. E meus pais, naturalmente. Nas tais edições brasileiras! Sempre as li nesse “português” de Jorge Amado, que muito apreciava. É desse modo que, ainda hoje, retenho, essas memórias. E lembro-me bem de todas essas rubricas que Francisco Seixas da Costa aqui nos recorda. Que engraçado! É como se tivesse ido a um velho baú, redescobrir esse passado! Curiosamente, quando as “reli”, mais tarde, já um pouco mais velho e mais atento a questões de propaganda política, “descobri” essa faceta reaccionária, que antes, por ser demasiado jovem, me passou ao lado. À parte esses aspectos, a Revista tinha a sua “laracha”. Ainda tenho na minha memória de ver meus avós e tios/tias a lerem, sentados/as nas salas lá das suas casas, na Beira e no Douro, as ditas Revistas. Ler este Post, foi como recuar no tempo. Divertidíssimo!
P.Rufino

CARLOS CRISTO disse...

e a França deve-lhe o restauro da casa e do jardim do Monet,...

Ai Europa!

E se a Europa conseguisse deixar de ser um anão político e desse asas ao gigante económico que é?