sábado, agosto 03, 2019

O novo tabu

É minha impressão ou caiu uma espécie de tabu sobre a decisão do “Expresso” de limitar a possibilidade dos seus jornalistas manterem atividade nas redes sociais? Parece haver algum incómodo em tratar de um assunto que se liga à liberdade de expressão. 

Nada fazer



Nestes dias de férias, lembrei-me de alguém que tem a sorte de estar quase permanentemente nelas. É uma pessoa com uma profissão prestigiada e invejada, cuja capacidade para conseguir escapar ao peso do trabalho se tornou já lendária, em quem o conhece bem. Algo que exige, note-se, uma apurada técnica.

Ele procura, em primeiro lugar, não ter nunca nada para fazer, que nada lhe seja atribuído como tarefa, escapulindo-se das atividades que o azar lhe pode colocar à frente, pretextando algo ou inventando razões para que o não incomodem. Entre essas razões pode estar a consciência, em outros, da inutilidade de lhe dar algo para realizar.

Se isso se torna em absoluto impossível, porque a sorte nem sempre é justa com quem porfia, tenta ir fazendo apenas o que lhe apetece e, mesmo assim, efetuá-lo no tempo e ritmo que lhe aprazem. Até que, por vezes, os outros percebam da inutilidade de lhe ir bater à porta.

Como é bastante inteligente, tem já um quase insuperável "know-how" na matéria, uma soma de truques que confundem os não iniciados, pouco aptos a detetar, à vista desarmada, essa imparável deriva lúdica em que ele consegue transformar o seu quotidiano profissional. Dessa arte faz parte essencial a procrastinação, esse adiar eterno da execução das tarefas, esperando que o tempo lhes dilua a pertinência: “deixar para depois de amanhã aquilo que parecia urgente ontem, mas já o não deve ser agora”.

Mas não julguem que a vida dessa pessoa configura uma atitude fácil: ele tem imenso "trabalho" em lutar e conseguir que lhe atribuam funções que, na prática, o isentem de trabalhos, em que os horários possam ser detalhes despiciendos, onde sejam viáveis exercícios criativos de ubiquidade administrativa, mas também onde sempre possa, a olhos desprevenidos, fazer passar um sopro de actividade virtual, dando permanentemente a ideia de ter alguma coisa em curso de execução.

Ah! e queixa-se, queixa-se sempre, dos outros, dos azares da vida, das horas (acreditem!), do peso das episódicas tarefas que lhe cabem. Enfim, trata-se de um génio na gestão do seu tempo, que, cheguei a aconselhar-lhe, deveria mesmo escrever um manual sobre o tema. Mas isso daria algum trabalho...

Como o mundo é o que é, como ele sabe mexer-se junto de alguma gente, porque até não é mau rapaz, lá vai (não) fazendo pela vida, nesse seu anti-stakhanovismo endémico, o qual, a meu ver, por obrigar a exercícios de imaginação, o deve fatigar imenso. É que o bluff, na profissão dele, já teve melhores dias.

Tenho há muito uma ideia para quando um dia ele vier a ter um epitáfio - e não será "morto de cansaço", podem crer! O infante dom Henrique tinha um lema: “Talant de bien faire” (vontade de bem fazer). A ele bastava mudar uma letra: "Talant de rien faire" (vontade de nada fazer).

sexta-feira, agosto 02, 2019

Dúvida de fim de semana

Se Vitor Gaspar e Maria Luís Albuquerque foram tão espetaculares ministros das Finanças, no entender unânime das instituições internacionais, por que diabo (a palavra “diabo” é adequada) nunca o seu nome surgiu lembrado para DG do FMI? Gaspar até lá trabalha...

Mundos & fundos


Uma verdade que sei incómoda para muitos que me leem: só seremos um país em equilíbrio quando os agentes económicos e sociais não tiverem, como regra regular para se desenvolverem, o tropismo de recorrerem a fundos comunitários ou a outros tipos de discriminação positiva de origem estatal, quando, para realizarem qualquer coisa que deva obedecer simplesmente às regras de funcionamento do mercado e da concorrência, não se pense logo “deixa lá ver se se consegue sacar alguma coisa para isto do 2020, a fundo perdido ou bonificado”, quando, para investir em qualquer setor, a lógica passe a ser, muito simplesmente, ir pedir um empréstimo a um banco, pagando-o depois com os lucros do que investiu.

Caçadores Cinco


Ninguém bate os amantes da pesca em exageros. Ou melhor, talvez só os caçadores. Aquele meu colega, um embaixador cordial e sempre bem-humorado, hoje reformado, era, de facto, e ao que se sabia, um excelente caçador. Mas, como todos os seus pares, "pintava" imenso as histórias.

Diplomata em Cuba, há algumas décadas, chegou mesmo a ir à caça com Fidel de Castro, de quem dizia, com alguma sobranceria: "O Fidel disparava muito mal. Até eu lhe emprestar a minha Purdey, nunca conseguiu caçar coisa de jeito...". Mas acrescentava: "Já o Raul, era bem melhorzinho".

A conversa que vou relatar, teve-a esse meu colega com um seu colaborador, que o conhecia há pouco tempo e que, por um acaso, não estava familiarizado com as qualidades de caçador do seu novo chefe.

Um dia, veio à baila, num diálogo entre os dois, o tema da caça e interlocutor inquiriu: "O senhor embaixador caça?!". O nosso homem abriu os olhos, como que escandalizado com o indesculpável desconhecimento que a pergunta revelava, e esclareceu, impante: "Se eu caço?! Essa agora?! Eu sou um dos três melhores caçadores da Europa!".

Porém, meio segundo depois, o embaixador teve uma hesitação: "Espera aí!" O tratamento por "tu" é a sua regra normal de relacionamento, logo que conhece alguém, o que o torna ainda mais simpático. 

O interlocutor, por um instante, achou que ele ia retratar-se do exagero, que a frase lhe saíra precipitada e que iria moderar a dimensão da sua importância como caçador.

E tinha toda a razão. O embaixador logo rectificou: "Eh! pá, três não, "põe" cinco. É que há dois gajos que não são federados".

A modéstia, quando sincera, mesmo que tardia, é sempre uma enorme qualidade...

quinta-feira, agosto 01, 2019

As “escadinhas”


Estou aqui na praia, de iPhone na mão, a teclar e a olhar o mar, pensando que a temperatura da água é, de facto, um excelente pretexto para hoje não ir nadar. 

“Nadar”, aliás, no que me toca, foi sempre uma força de expressão. Nado pessimamente, nunca tive o menor jeito nem fôlego para me aguentar muito na água. E como só gosto dela morna, sou pouco dado a banhos “revigorantes” em mares menos cálidos, que sempre vi como coisa de gente masoquista, prenúncio mesmo de possíveis constipações.

Na minha terra, em Vila Real, na infância e juventude, não havia nenhuma piscina. Aprendia-se a nadar no rio, no lugar do Codeçais. Mas o “se” não me era reflexo: nunca me deixaram ir dar banhos por lá, naquela proteção dada a filho único que, bem vistas as coisas, sendo algo chatota, não deixou de ter o seu quê de confortável, no saldo final.

A minha instrução de natação, por muito limitada que tenha sido, foi assim toda feita em Viana do Castelo, onde, nos agostos, íamos passar quase um mês de férias. Nesse tempo, acreditem!, Viana também não tinha nenhuma piscina, salvo a do hotel de Santa Luzia, onde, por 2$50, eu ia a banhos com pé, rodeado de ingleses rosados e sardentos, comigo com escasso dinheiro no bolso que, para além de pagar o funicular, apenas dava para comprar um mazagran (já ninguém sabe o que isso é). Não sendo factível aprender por ali a nadar, muito menos o era nas ondas bravas do Cabedelo ou nas poças rochosas da Praia Norte, mesmo com a maré a jeito. Por isso, era na doca comercial que, naquele tempo, se davam as primeiras braçadas.

Joaquim Baptista, um dos mais antigos amigos do meu pai, acompanhado por uma figura muito conhecida da cidade, Amadeu Costa, assegurou ali, por muitos anos, uma improvisada escola benévola de natação, que funcionava no Verão e na qual, um dia, decidiram inscrever-me. Nunca foi coisa que me entusiasmasse muito, mas o que tinha de ser tinha a muita força da determinação paterna. Despiamo-nos num barracão de madeira e, em fila indiana, lá descíamos, a medo, umas lodosas “escadinhas”, para uma meia-hora que recordo de relativo tormento.

Nos dias de hoje, o navio Gil Eanes, fundeado em permanência na doca de Viana, quase que esconde essas “escadinhas”. Trata-se de degraus de pedra que baixam do alto da doca para a água. São simétricas, uma em frente à outra. Se a maré que entra do mar está baixa, a distância entre os últimos degraus fora de água é pequena, aí uns dois metros. Mas se está alta, esses metros alargam-se. Nunca muito, claro, mas era então uma distância que parecia imensa para quem era testado a fazê-la numa atabalhoada tentativa de nadar de bruços ou no crawl precipitado, que chamávamos, “à cão”. 

De início usávamos uma prancha, depois éramos “pescados” com (creio) umas cordas, enquanto fazíamos os movimentos e, finalmente, quando já mais práticos, éramos largados à nossa sorte. A água em que tentávamos nadar estava cheia de lixo dos barcos, que íamos afastando com a mão, evitando que certas “peças” se nos acercassem da cara. Imagino que, nos dias de hoje, deva até haver diretivas europeias que desaconselhem semelhantes imundícies, mas então era assim e, ao que julgo, ninguém terá ficado doente por virtude desse insólito “ecosistemema” aquático. A glória das glórias era conseguirmos chegar ao outro lado da doca, o que era saudado por palmas da molhada de pais e familiares que assistiam à proeza dos seus rapazes e raparigas. Fi-lo uma vez, que me lembre. Devo-me ter cansado para sempre...

As lições nas “escadinhas” eram ao final da tarde e porque a casa da minha avó (hoje sede da Fundação Maestro José Pedro, lá por Viana) era em frente à doca, recordo-me de, nos primeiros dias, passar por lá, um pouco antes, para ver em que paravam as modas em termos da “enorme” distância entre as “escadinhas”, por via dos humores das marés.

Com todos esses medos e, seguramente, algumas oportunas baldas, a verdade é que fiquei, até hoje, num registo bem sofrível de nadador. Já não vou a tempo para corrigir esta falha na minha formação, a qual, aliás, nunca me preocupou por aí além (quem me conhece sabe que sou pouco dado a preocupações eternas). Para o que interessa: sou hoje um comodista “nadador” de piscinas, mergulho pouco e mal, no mar quase só “passeio” e dou umas braçadas, sempre que possível em lugares “com pé”. Enfim, um “desportista” pouco ambicioso, como já perceberam.

E como hoje a água está (de facto) fria, tenho um excelente pretexto para ficar aqui sentado, a esturricar as banhas pela tarde, neste belo sol amaciado pelo vento, até que o João toque a corneta, anunciando, daí a pouco, a chegada da caixa com as bolas de Berlim da praxe. Com creme, porque as minhas últimas análises estavam excelentes e só se vive uma vez.

Bom verão, para quem aqui me lê!

Bolas!


Gostaria de ser simpático para o surgimento do novo canal de televisão da Federação Portuguesa de Futebol. 

Mas constando que Portugal é já dos países do mundo onde há mais futebol nas televisões, não sei se esta é mesmo uma boa notícia.

Honra à liberdade!


Início de Novembro de 2016. Na véspera, Trump tinha acabado de ganhar as eleições presidenciais americanas. Eu estava em Berlim, numa iniciativa organizada pela Fundação Calouste Gukbenkian com contrapartes alemães. Os membros do governo alemão com que falávamos estavam visivelmente traumatizados com o que acabara de suceder nos Estados Unidos. 

Eu estava um tanto surpreendido com esse estado de espírito, que abeirava o desespero. Afinal, pronto!, as coisas eram o que eram, mas, com toda a certeza, o bom senso da máquina republicana acabaria por se impor em Washington, em particular nas relações transatlânticas, que eram a principal preocupação alemã. Vistas as coisas hoje, eles é que tinham razão, eu é que estava a ser ingénuo.

A reunião acabou e eu decidi ficar uns dias mais por Berlim, no mesmo hotel onde fora a conferência e nos alojáramos. No fim do encontro, um amigo alemão, que me conhecia bem e vivera muitos anos em Lisboa, disse-me: “Não deixe de visitar o museu quase em frente ao hotel. Tem poucos visitantes, mas tenho a certeza de que vai apreciar”.

Fui lá no dia seguinte. Era um discreto museu da resistência ao nazismo, instalado numa caserna militar, ainda operacional. O lugar era histórico. O pátio tinha uma placa a assinalar o local onde foi fuzilado o oficial alemão Claus von Stauffenberg, responsável pela “Operação Valquíria”, o gorado atentado contra Hitler. 

Neste tempo em que alguma Alemanha parece querer esquecer ou reinterpretar os anos negros do seu passado, estimulada pela extrema-direita trumpista, é reconfortante ver Angela Merkel associar-se, naquele lugar, à celebração do 75° aniversário desse atentado. Procurar liquidar um ditador é um ato de heroísmo patriótico, como a chanceler alemã sublinhou.

quarta-feira, julho 31, 2019

Ainda a ética política


O Estado tem de ser sério, se quer ser levado a sério. Não é admissível, num tempo de forte escrutínio sobre a gestão dos bens públicos, em que se pede aos cidadãos um esforço fiscal tremendo, assistir a dispêndios cuja afetação possa suscitar fundadas dúvidas, em termos de transparência ou de rigor nos gastos. Quem não perceber que o mundo mudou muito, neste domínio, terá um destino político breve ou muito conturbado.

Todos sabemos que metade do ruído mediático que qualquer incidente nos gastos do Estado suscita é fruto da chicana política – da política politiqueira – e da consabida apetência para explorar as dificuldades do exercício do poder. Meia mentira e meia verdade fazem um título ou um “soundbite”. Também isso, habituem-se!, é parte da democracia contemporânea. 

Mas falta ainda a outra metade. E essa, para além dos muitos casos em que há um objetivo dolo nas ações praticadas, é feita de facilitismo, de leviandade, diria mesmo, de amoralidade cívica.

Servir o Estado tem regras, obedece a princípios que decorrem, não apenas da lei, mas da ética comportamental exigível a quem cuida da coisa pública. É algo que só se aprende com o tempo, muito embora os tempos que se vivem, em que a diabolização do Estado está na boca de alguns a quem o cabe dirigir, não ajude muito a essa pedagogia cívica. 

Ser eleito ou nomeado para um cargo público não confere a ninguém, necessariamente, um “template” de servidor do Estado. Sair de uma “jota” e entrar num gabinete governamental não dá a ninguém um diploma de competência para gerir a coisa pública. 

Concedo que o “amiguismo” político, essa imensa escola de recrutamento que quatro décadas de “bloco central” inocularam na nossa máquina pública, é talvez um efeito colateral inevitável do nosso modelo político, que tem os partidos no seu centro de gravidade institucional. Mas é imperativo democrático conseguir moderá-lo. E isso passa pelo sancionamento imediato de um qualquer comportamento que afete o bom nome do Estado. 

Em política, por muito que isso custe a muitos, só raramente se aplica o princípio básico da justiça comum: “in dubio pro reo” (na dúvida, dá-se o benefício da dúvida ao réu).

terça-feira, julho 30, 2019

Na lua


Como é sabido, há ainda por aí alguns cromos que não acreditam que o homem tenha ido à lua, em 1969. Isso recordou-me um episódio anedótico anterior, passado em Portugal.

Estávamos em 1957 e a União Soviética anunciara a colocação em órbita do seu primeiro satélite, o Sputnik. 

Este primeiro passo na aventura espacial, hoje considerado decisivo para tudo o que se lhe seguiu, não foi muito bem visto pelos sectores oficiais portugueses. Qualquer êxito comunista era um engulho para o regime salazarista.

Ora dava-se o caso de que, nesse ano de 1957, uma voz da “ciência” portuguesa, o astrofísico professor Varela Cid, haver concluído uma “teoria” sobre o tema que muito agradou ao regime. 

E assim, na nascente RTP, num programa em direto, com direito a um quadro negro de explicações a giz, desenrolou-se a demonstração, feita pelo “sábio” luso, da "impossibilidade" prática de um satélite poder ser posto em órbita... sem cair por aí abaixo! Não há limites para o ridículo.

Pê-ésse

Farto-me de dizer que sempre subestimamos a (estava para escrever “notável”) capacidade dos governos socialistas para darem tiros nos pés (ou para terem no seu seio quem o faça a seu débito, com arte e pontaria). 

Perguntarão: e os outros, não dão? Claro que sim, mas cada um sabe dos seus...

segunda-feira, julho 29, 2019

Purga


Por estas alturas, há quem vá “de águas” para as termas. Alivia os males do fígado e da vesícula, de quem, em geral, digere mal algumas coisas. Dou-me conta de que, nos comentários a este blogue, estão a (re)surgir, sob a heróica coragem do anonimato e com heterónimos para parecerem mais do que são, alguns saudosistas do tempo “da outra senhora”, que padecem de tais maleitas do foro estomacal ou biliar. É uma onda cíclica, soprada agora por ventos políticos que lhes não vão de feição. Acho que merecem uma vilegiatura. Tê-la-ão, a partir de agora.

O chapéu



Uma das rotinas mais interessantes dentro do Ministério dos Negócios Estrangeiros foi, durante muitos anos, a função do chamado "correio de gabinete". Tratava-se de transportar uma “mala diplomática”, portadora de documentos de elevada confidencialidade, função de que eram quase sempre encarregados os diplomatas mais jovens. 

Todas as semanas, um funcionário circulava entre várias capitais, levando consigo uma pasta, fechada com selos de chumbo. Era normalmente pequena, mas também podia acontecer ter dimensões bem maiores, sendo nesse caso complicado (embora sempre obrigatório) assegurar o seu transporte na cabine dos aviões, nunca perdendo o volume de vista.

O roteiro de quem ia "de mala" foi variando, em função de diversos fatores e conjunturas. Na Europa, recordo ter-me deslocado, por mais de uma vez, a Londres, Bruxelas, Viena e até a Belgrado. Madrid, Paris e Estocolmo, se bem me lembro, também foram abrangidas pelo circuito deste tipo de "malas acompanhadas". Viena era o centro de contacto com as nossas embaixadas das capitais "comunistas" e os colegas nelas colocados estavam sempre ansiosos para dar um salto à capital austríaca, para buscar ou trazer essa correspondência. Fora da Europa, ia-se a Nova Iorque e a Washington.

Há que confessar que era uma tarefa bastante agradável: uma semana de dispensa de serviço e uma viagem, com ajudas de custo, por cidades simpáticas, embora um pouco numa correria (em Londres ficava-se um dia mais e eramos alojados num pequeno quarto, no edifício da chancelaria). 

Embora houvesse como que uma escala na atribuição deste encargo, existiram sempre, no Ministério, os chamados "papa-malas", que tinham meios de obter informação prioritária sobre a indisponibilidade pontual dos funcionários escalados e, de imediato, se voluntariavam para os substituir. Às vezes, chegado o bom tempo, até diplomatas bem mais velhos, já mesmo conselheiros de embaixada, faziam um pouco discreto lóbi para "irem de mala", pela vontade de efetuarem uma bela viagem à custa do erário.

Hoje, vistas as coisas à distância, tendo a concordar que uma das vantagens concretas desta instituição dos "correios de gabinete", num tempo em que se viajava muito menos, era ajudar a aculturar os jovens diplomatas com o mundo exterior, ainda antes de serem colocados no seu primeiro posto.

A história que vou contar, verídica e clássica nas Necessidades, passa-se em Lisboa, numa determinada repartição, creio que nos anos 60.

Um velho e prestigiado embaixador está à conversa numa sala onde trabalham diversos diplomatas. A certo momento, fica a saber-se que um dos jovens secretários presentes vai "de mala", na semana seguinte. O rumo da conversa, por uma qualquer razão, deriva para a questão dos trajes e fala-se de usar ou não chapéu. O embaixador volta-se, então para o jovem secretário que irá "de mala" e inquire: "E o colega, usa chapéu?".

Ser tratado por "colega" por um embaixador "chevronné" era uma distinção que, à época, deixava os mais novos orgulhosos e, desde logo, quase obsequiosos. O rapaz, um tanto aturdido, responde que ainda não, que nunca tinha usado chapéu. O embaixador, experiente, adiantou: "Meu caro amigo, usar chapéu, na Carreira, não é obrigatório. Mas é um hábito que fica sempre bem, que dá muita classe. Se o meu amigo quer um conselho, compre um chapéu. Vai ver que, em algumas ocasiões, isso lhe dará uma grande elegância".

Seduzido pela atenção que lhe era dispensada por tão alta figura da "Casa", o jovem diplomata deixa escapar que, pensando bem, vai acabar por comprar um chapéu. Aliás, recordava-se que até já tinha pensado nisso, mas nunca se tinha decidido, em definitivo. Mas agora, "já que o senhor embaixador recomenda", irá mesmo comprar um.

Nesse instante, o embaixador exclama: "Olhe lá! Lembrei-me agora: você vai a Londres! Não há melhor cidade do mundo para chapéus. Mais do que isso: estamos na época dos saldos! E, em Londres, onde você encontra estupendos chapéus é no Bates, ali na Jermyn Street. São magníficos! Porque não aproveita? Você vai estar lá dois dias, dá uma saltada ao Bates e compra um chapéu".

O jovem secretário sente-se impulsionado, entre o rápido convencimento e uma subliminar intimidação, e concede: "De facto, é uma boa ideia. Vou passar por lá e compro um chapéu.". "Faça isso, homem, faça isso, é uma bela oportunidade!", diz o embaixador, dando ares de se encaminhar para a porta de saída da sala.

De repente, porém, o embaixador estaca. E, voltando-se para o jovem colega, inquire: "Então você vai mesmo comprar o chapéu?". "Vou, vou" diz o outro, já num tom entre o decidido e o resignado, começando a estranhar a insistência. Aí, o velho diplomata lança-lhe: "E vai ao Bates? Excelente! É, de facto, a melhor opção! Aliás, dá-se uma coincidência curiosa, de que agora me recordo: eu tenho um chapéu encomendado, precisamente no Bates. Se o colega lá vai comprar o seu, podia levantar o meu chapéu e trazer-mo. Já está pago. Tem aqui talão. Fico-lhe muito grato...."

(Na memória dos claustros das Necessidades, o embaixador da historieta terá sido o histórico António de Faria e o jovem secretário foi o (mais tarde também) embaixador Melo Gouveia).

domingo, julho 28, 2019

Colômbia


Vim de lá, há dois dias. A Colômbia está muito longe de ser um país perfeito. Mas é uma democracia estável, com alternância política, um dos poucos Estados da América Latina que nunca esteve sob ditadura militar. Durante bastantes anos, uma espécie de guerra civil manteve zonas do país a ferro e fogo, até que a paz negociada se impôs. O tráfico de droga marcou, por muito tempo, a imagem de um país de gente simpática que, no dia de hoje, com forte razão, deve estar bem feliz pela vitória de um compatriota na Volta à França. Fico muito satisfeito pelos meus amigos colombianos.

Special relationship


sábado, julho 27, 2019

Quase meio século


Era um dia de intenso calor. Tinha acabado de desembarcar na estação da Régua, vindo de Vila Real, pela velha linha do Corgo. Aguardava o comboio que, a chegar de Barca d'Alva, me levaria ao Porto. Aí apanharia a ligação para Lisboa, onde deveria chegar depois de uma viagem de cerca de 10 horas. 

Era assim o Portugal de 1970. "A rádio está a anunciar que morreu o Salazar", disse-me um amigo, que tinha ido tentar apanhar, na tabacaria, o "Diário de Lisboa" do dia anterior, que não tinha chegado a Vila Real. Embora sob censura, a leitura do “Lisboa” era então, para muitos de nós, "obrigatória".

Recordo-me bem de não ter tido qualquer sentimento particular perante a notícia. Salazar tinha morrido politicamente quase dois anos antes, em Setembro de 1968, quando adoecera e fora substituído por Marcelo Caetano. Desde então, a decadência física do antigo ditador havia sido exposta algumas vezes à mórbida curiosidade pública, com estranhas aparições cuja mediatização quase que parecia destinada a sublinhar o deperecimento político do próprio salazarismo. Alguns, mais bem informados, conheciam o episódio caricato da entrevista ao "L'Aurore", que revelava a existência de um cenário de ilusão em S. Bento, que dava a Salazar a ideia de que ainda era chefe do governo, com a participação teatral de alguns ministros. Agora, a tragicomédia chegara ao fim.

No que aos portugueses verdadeiramente interessava, o “caetanismo” mostrara, nesse período, ter atingido o seu limite da credibilidade, em termos de abertura política. Uma crise académica séria atravessara o país. As eleições de 1969 haviam constituído uma enorme farsa, a política colonial mostrava-se, definitivamente, como o eixo cristalizador de um regime em que a repressão e a censura se acentuavam de novo. Sá Carneiro e a "ala liberal" iam perdendo as esperanças nas virtudes da propalada "primavera política".

Menos de quatro anos depois daquele dia da morte física de Salazar, os militares de 1974, diferentes dos que, depois de 1926, o haviam erigido em ditador, iriam pôr termo ao que restava do salazarismo.

Desde então, Salazar transformou-se numa simples curiosidade histórica. Revindicado hoje por patéticos saudosistas, talvez venha a propósito lembrar que a única vez que se sujeitou a sufrágio - e foi eleito - havia sido durante a vilipendiada Primeira República. 

Hoje, o “Expresso” anuncia que vão fazer um museu a Salazar, em Santa Comba Dão, perto do Vimieiro, onde nasceu. Que isso faça bom proveito aos tristes admiradores de um regime que censurou, perseguiu, prendeu, torturou e matou, durante décadas, para quantos não sabem ou não querem saber. As “fake news” bem podem tentar transformá-lo num santo, mas a verdade ninguém a pode apagar da História.

Alguém poder hoje fazer um mostruário público sobre essa sinistra personagem é um gesto de tolerância que a democracia se pode dar ao luxo de permitir.

sexta-feira, julho 26, 2019

Companheiros de jornada


Em conversa com um amigo, durante um longo voo intercontinental, veio ontem a baila a hipótese, aparentemente gorada, de, em Espanha, o PSOE poder abrir a porta do governo ao Podemos, através de uma coligação. E, claro!, veio logo à colação a questão do Bloco ou do PCP poderem vir a ter responsabilidades governativas, em futura aliança com o PS, depois do “estágio” que foi a Geringonça.

Para aquele meu amigo, é impensável, em Portugal, que um chefe de Estado possa admitir que partidos que se opõem à União Europeia e à Nato, e que manifestam uma constante hostilidade à propriedade privada, possam ser consagrados em soluções governativas. E lembrou os “limites” que Cavaco Silva colocou, aquando da formação do atual governo, há quatro anos. Condicionantes essas com que ele então concordou.

Não sou da mesma opinião daquele meu amigo. Simplificando: se um partido pode eleger deputados, pode formar governos. Onde é que a lei - e eu faço parte de quantos acham que a lei é o quadro definidor dos limites no funcionamento das sociedades - diz o contrário? Por isso, no plano normativo, nada impede que comunistas e bloquistas venham a ser governantes. 

Eu diria mesmo mais: se, um dia, numa eleição, o país decidisse dar a esses dois partidos uma maioria qualificada que lhes permitisse mudar a Constituição, forçar a saída da União Europeia, voltar as costas às alianças tradicionais do país e alterar o regime social vigente, que poderia eu fazer, senão aceitar essa escolha? Eu acredito na democracia, mais do que na minha vontade.

O meu amigo olhou para mim, com ar espantado, pensando que o que eu dizia era efeito dos dois copos do Rioja (o Ribera que nos fora oferecido, embora com bom nariz, era um pouco ácido, e tinha um fim de boca agressivo): “Mas então você acha bem que o Bloco ou o PCP entrem para o governo?”

A minha resposta desarmou-o: “Eu? Nem pensar! Sou 1000% contra uma entrada do PCP ou do Bloco num governo com o PS! O que quis dizer é que, por princípio, eles não têm um qualquer “capitis diminutio” constitucional e que, por isso, temos de respeitar em pleno os seus direitos. Eu é que me reservo o meu direito de, como cidadão, ter as minhas escolhas sobre os “companheiros de jornada”. E enquanto esses partidos continuarem a defender opções que conflituam com as minhas, não os quero como parceiros num governo, embora não me choque vê-los numa maioria política parlamentar, apoiando, pontualmente, medidas específicas. Apenas isto!”

As “Selecciones”


Há pouco, a fazer horas neste aeroporto de Bogotá, no “deserto” de leitura que por aqui (não) há, decidi comprar as “Selecciones” da ”Reader's Digest". O número de agosto. Achei graça adquirir este número da edição para a América Latina, feito no México.

Cresci com as “Seleções” por muitos anos lá por casa, na sua versão brasileira (por isso, eram “Seleções” e não “Selecções”, como então se escrevia em Portugal), espreitando "pin-ups" que a publicidade caseira não comportava ainda nos seus cânones, com propaganda a frigoríficos e automóveis que não havia em Portugal. E tinha sempre, pelas suas páginas de textura sedosa, donas-de-casa loiras e de "permanente", tipo Doris Day, com camisas aos folhos e saias compridas rodadas, ao lado de cavalheiros invariavelmente elegantes, tipo Cary Grant, quase sempre de fato e chapéu ou naquilo que os brasileiros designam por "esporte fino", ao lado de crianças sorridentes e felizes nas suas bicicletas e bonecas (nunca houve muitas bolas por lá), sempre à porta de moradias com relva a descer para as alamedas dos bairros. Sorridentes e sempre brancos, claro. Era a América oficial que exportava a imagem do "way of life" de alguns.

Fui leitor assíduo de rubricas como "Meu tipo inesquecível", "Flagrantes da vida real", "Rir é o melhor remédio" (em espanhol “La risa, remedio infalible”), “Piadas de caserna" ou o "Enriqueça o seu vocabulário" - onde, pela primeira vez, devo ter pensado nas vantagens do Acordo Ortográfico. 

Nunca li, e nunca me arrependi, nenhuma das suas irritantes sínteses de romances (nesta edição que hoje comprei deapareceram), mas algumas vezes fui à procura do volume completo. 

Devo também às "Seleções" a minha hipocondria, pela reiterada inclusão de artigos sobre doenças, cuja sintomatologia tantas vezes partilhei. Já não cheguei à fase das peças sobre dietas... logo quando mais delas necessitava!

Só tarde me apercebi, ou me fizeram aperceber, da existência, em cada número das "Seleções", de três ou quatro artigos onde, com maior ou menor subtileza, se fazia a apologia de ideologias convenientes aos interesses americanos. Mas, na verdade, que importava isso, no tempo cinzento do salazarismo? Claro que as "Seleções" diziam mal dos comunistas, mas com bem maior sofisticação do que o "Diário da Manhã", o "Novidades" ou o "Diário de Notícias". E também lembravam, numero-sim-número não, belos episódios das glórias aliadas na 2ª Guerra Mundial.

Um dia, as "Seleções" aportuguesaram-se (e passaram a “Selecções”) e, pouco a pouco, foram desaparecendo do nosso horizonte de leitura, concorrendo com outras publicações mais apelativas. Às vezes, antes de entrar num comboio, ainda comprava a revista, mais por curiosidade do que por interesse. A "Reader's Digest" passou então a ser mais famosa por livros e discos que editava e que uma inventada "Marta Neves" nos propunha, em regular e personalizada epistolografia - alguns, aliás, de grande qualidade.

Há anos que já não lia as "Seleções". Minto: há tempos, numa casa de campo nortenha, encontrei exemplares das edições brasileiras, dos anos 40 e 50 do século passado, alguns já sem capa, e, confesso, diverti-me bem com algumas historietas, bem de um outro tempo. Será isto nostalgia?

quinta-feira, julho 25, 2019

Boris

Com um pouco de inteligência e sorte, Boris Johnson pode vir a fazer um brilharete. As expetativas a seu respeito são hoje tão baixas que bastará que não venha a ser o mau primeiro-ministro que muitos esperam para que logo se ouçam suspiros de alívio.

Espanha(s)

Sem me querer alongar (nada): é uma excelente notícia a quebra do possível acordo de governo entre o PSOE e o Podemos, lá por Espanha.

Rockwell