sexta-feira, maio 12, 2017

O papa


Sendo nós um país cuja população se assume maioritariamente como católica, é natural que por cá seja sempre acolhido com gosto o chefe da respetiva igreja, cuja relação histórica com Portugal data da fundação da nossa nacionalidade.
Acresce que o atual papa é uma figura simpática, que projeta uma imagem de humanismo que passa muito para além das fronteiras religiosas.
Por tudo isso, e pelo que me toca, seja muito bem vindo a Portugal, papa Francisco!

Informações


Os serviços de informações são indispensáveis para a defesa dos interesses dos países, na ordem interna e externa. Nenhum Estado passa sem eles, porque as ameaças à sua segurança são permanentes e há que habilitar quem tem responsabilidades políticas com dados que permitam tomar decisões para a proteção desses interesses. Pela sua natureza, os serviços – que não são polícias - têm de ser discretos no seu trabalho de pesquisa, o que induz frequentemente suspeições e alimenta teorias conspirativas. E têm de ser independentes, desde logo dos meios económicos e, tanto quanto a razoabilidade e as leis da vida o permitem, dos meios políticos, para que a ciclicidade democrática não comprometa a sua funcionalidade. 

A "intelligence" tem sempre dois problemas a superar. O primeiro é não ter a possibilidade de se louvar publicamente da eficácia da sua ação, o que faria com que os cidadãos os aceitassem melhor. As ameaças evitadas raramente são notícia - na luta contra o terrorismo, a criminalidade organizada ou o extremismo inconstitucional. O segundo problema, é, por tradição, bastante mais complexo de resolver e, por essa razão, regular objeto de um controlo parlamentar, sobre cuja real eficácia entre nós sempre alimentei imensas dúvidas: trata-se da garantia de que os serviços funcionam num rigorosíssimo cumprimento da lei, em particular daquela que protege os direitos e liberdades individuais dos cidadãos.

Tal como em muitos outros países, em Portugal há dois serviços distintos: um para recolha de informações internas e combate à espionagem estrangeira e outro dedicado às questões externas, quase sempre em articulação com serviços “amigos”, que partilham idênticas ameaças. É vulgar esta separação, porque os objetos de pesquisa são diferentes e as culturas comportamentais nem sempre coincidem. Sinto, contudo, que começa a prevalecer uma tendência para a unificação dos serviços, através do reforço da respetiva coordenação. Confesso preferir o modelo dual.

Para a coordenação dos serviços de informação acaba de ser nomeado o embaixador José Júlio Pereira Gomes, uma excelente escolha do governo, avalizada pela oposição. Trata-se de um qualificadíssimo diplomata, do melhor que existe nas Necessidades, sereno, culto, com imensa experiência em matérias de Estado. Os diplomatas estão longe de ter o monopólio da ética pública, mas foram habituados, ao longo da sua vida profissional, a cultivar um sentido de patriotismo e de serviço que os ajuda a evitar a tentação de cair em certas derivas, como aquelas que, por mais de uma vez, atingiram o prestígio dos nossos serviços de informação em tempo democrático, afetando a sua imagem perante os pares.

(Artigo hoje publicado no "Jornal de Notícias")

quinta-feira, maio 11, 2017

Fátima

Como ateu, tenho a minha opinião formada, desde há muito e em definitivo, sobre Fátima - a qual creio ser fácil de presumir. Essa leitura (certa ou errada) tem a montante um esforço de racionalidade, que é natural em quem não foi "tocado pela fé". Não me recordo de alguma vez ter discutido o tema de Fátima com crentes, porque sempre entendi que me situava num plano diverso, e irreconciliável, no tocante à interpretação do fenómeno. Mas que fique claro: respeito sinceramente quem acredita no "milagre" de Fátima, como matéria de fé.

Serve isto para dizer que, sendo embora "de outra freguesia", acho de uma grande insensatez o debate, envolvendo figuras da igreja, sobre se o que se passou há um século, em Fátima, foi uma "visão" ou uma "aparição". São reflexões sobre os factos que, em alguns casos, relevam da procura de uma certa racionalidade. Ora Fátima ou é uma matéria estrita de fé ou não é - e aqui tudo muda de figura. Posso estar enganado, mas ao enveredar por estas "technicalities", a igreja católica abre um caminho fácil à contestação de Fátima. Se segue por esta via, com facilidade podem ser trazidos à colação textos de Tomás da Fonseca, de Mário de Oliveira e até de Fina da Armada, entre muitos outros. É isso que querem? Eu aconselharia a que, quem acredita, continuasse no registo cândido da Virgem que apareceu aos pastorinhos sobre uma azinheira. E ponto.

"Talent de rien faire?"


O infante dom Henrique tinha por lema "talant de bien faire".

As embaixadas e consulados portugueses no estrangeiro vão estar encerradas, por "tolerância de ponto", no dia em que o papa vai a Fátima? O pessoal vai a Fátima, é? Estão a gozar connosco, lá nas Necessidades?

"Talent de rien faire?" Depois queixem-se sobre a imagem que as representações portuguesas no estrangeiro projetam...

quarta-feira, maio 10, 2017

O laço

Com a morte de Baptista-Bastos, o facho do porte do "papillon" passa, entre nós, a ser mais reduzido.

Na primeira linha, estarão João Carlos Espada, Nicolau Santos, Rui Vieira Nery, Francisco George e Miguel Esteves Cardoso (pelo menos, no passado), atendendo a que o professor Fernando Pádua tem sido pouco visto.

No Ministério dos Negócios Estrangeiros, o "papillon" tem uma certa tradição. Usava-o, em permanência, o desaparecido embaixador Humberto Morgado, figura referencial que, por muitos anos, foi diretor-geral da Administração. O ar algo aristocrático de Morgado escondia a sua sabida ligação, durante a ditadura, ao "Socorro Vermelho", uma estrutura dependente do PCP, em especial dedicada a apoiar as famílias dos presos políticos.

Mas Morgado deixou os seus seguidores. João de Vallera, hoje o "Mr. Brexit" das Necessidades, depois de ter deixado a chefia da embaixada em Londres, usa o laço intermitentemente (ontem, num almoço comigo, tinha-o trocado por uma bela gravata). Já o meu sucessor em Paris, José Filipe Moraes Cabral, não dispensa nunca o adereço, que funciona já como a sua "imagem de marca". Resta-me a dúvida sobre outro colega que, no passado, era regular portador de vistosos "papillons": Paulo Tiago Jerónimo da Silva. Já o não vejo há muito, pelo que não sei se ainda segue esse hábito. Ah! E o Luís Barreiros, outro embaixador, também é useiro e vezeiro no laço.

O laço, sejamos claros, nunca ameaçou a preponderância esmagadora da gravata. Porquê? Talvez porque muito o veem como um adereço "light", menos formal, um tanto excêntrico. Nunca esquecerei que o antigo ministro dos Negócios Estrangeiro da Áustria, Wolfgang Schussel, a partir do dia em que passou a ser primeiro-ministro do seu país, largou o laço e engravatou-se para sempre. Sinal de mudança de estatuto? A gravata consagrou o "upgrading".

A verdade é que, no meu caso, sempre que "me deu na veneta" de usar laço, foi em ocasiões bastante "soltas", pouco formais, ciente de que quem me conhece notaria e estranharia a mudança de registo "pescoçal". Daí a minha admiração sincera por quem usa o "papillon" em todas as ocasiões.

terça-feira, maio 09, 2017

Baptista-Bastos


Morreu Armando Baptista-Bastos, um dos mais geniais cronistas do jornalismo português, uma figura marcante da nossa literatura. BB ou "O Bastos", como era conhecido nos meios da imprensa, transportava para os seus livros uma leveza da construção e uma riqueza vocabular que tornavam imperdíveis os seus textos nos jornais. A idade - tinha 83 anos - nunca afetou a frescura da sua escrita, da qual transparecia muita leitura e uma cultura excecional.

Conheci-o pessoalmente há mais de quatro décadas, quando, nos finais de tarde, nos encontrávamos num café e bar no topo da então livraria Opinião, na rua da Trindade - eu saído do meu emprego na Caixa, ao Calhariz, ele acabado o seu trabalho no "Diário Popular", também por ali perto. Esse era então um espaço aberto de conversa onde eu me imiscuíra, por via de amigos comuns. Por lá paravam jornalistas, escritores e outros que, como eu, eram então meros espetadores atentos da vida intelectual de Lisboa. Com a sua voz bem caraterística, não abandonando a marca pessoal que era o seu laço, Baptista Bastos confirmava, em pessoa, a frontalidade opinativa a que sempre nos viria a habituar no futuro e que muitos, mais tarde, vieram a conhecer nas entrevistas que fazia na SIC, onde tinha a pergunta que ficou clássica: "Onde é que você estava no 25 de abril?". 

Li Baptista-Bastos com regularidade e, à distância, apreciei sempre o seu sentido crítico e a sua postura ética, muito em especial a independência com que sempre preservou as amizades, por cima das ideologias a que se mantinha fiel. 

Há uns anos, com um amigo comum, João Paulo Guerra, tive um divertido almoço com Baptista-Bastos, num restaurante popular de Carnide, Foram umas belas horas de conversa, que guardo para sempre. Vai-se um nome grande do nosso jornalismo, uma figura cimeira da nossa literatura e uma respeitável personalidade cívica.

Realismo impopular


“Que negativo! Em lugar de saudares, com júbilo, a vitória de Macron, vi-te numa atitude reticente, augurando males para a sua governação, destacando mais o resultado de Le Pen”. Vários amigos comentaram desta forma o que disse ou escrevi no dia final das eleições presidenciais.

Vamos a ver se nos entendemos. Para a esmagadora maioria dos franceses, o candidato Emmanuel Macron, de que alguns nunca tinham ouvido falar até há muito pouco tempo, representou o escudo de proteção para um assalto ao poder de uma candidata que personalizava uma política de ódio, discriminação e autoritarismo, cavalgando medos e inseguranças, na base de um programa cheio de mentiras, simplificações da realidade e caricatura de soluções.

O voto “efetivo” em Macron foi o da primeira volta: 24,1%. Foi um resultado que beneficiou, desde logo, do candidato socialista ser Benoît Hamon e não Manuel Valls (que teria deslocado muito voto socialista moderado que foi para Macron) e da circunstância conjuntural, muito particular, que foram as “trapalhadas” de François Fillon, o candidato da direita clássica.

Convém que não nos esqueçamos de uma realidade muito evidente: se o “Canard Enchainé” não tivesse revelado as improbidades do casal Fillon, no dia de ontem a sua cara estaria em todos os jornais do mundo como novo ocupante do Eliseu. Sem a mais leve das dúvidas.

Desses 24,1%, Macron passou, no domingo, para 66,1%. Recebeu assim 42% a mais de “voto útil” de pessoas que, na primeira volta, tinham votado noutros candidatos e que, postos perante uma opção entre ele e Le Pen, não hesitaram em escolhê-lo. 

Mas Macron não tem mérito? Claro que tem e muito. Soube aproveitar o “nicho de mercado” político que se abriu com a exaustão dos partidos clássicos, em especial o fracasso rotundo dos socialistas, propondo uma ansiada e sempre adiada modernização da França, sem deixar cair esta ideia numa agenda puramente conservadora. Foi uma cara nova, num mundo de rostos desgastados por aquilo a que os franceses chamam a “politique politicienne” (que poderíamos traduzir por “política politiqueira”).

Macron tinha contra si o facto de, enquanto Ministro da Economia, ter proposto medidas fortemente liberais, que o alienaram de muitos setores socialistas. Mas essa mesma postura foi, no polo oposto, aquilo que o credibilizou junto de uma certa direita. Os seus 24,1% nascem assim de uma conjugação favorável de fatores, que soube aproveitar com um ambíguo discurso, nem-de-esquerda-nem-de-direita, fórmula que a História sempre revelou ser insustentável no tempo, mas que já alimentou no passado algumas outras aventuras políticas. Mas “a sorte protege os audazes” e Macron soube ousar e é premiado por isso.

O novo presidente tem, perante si, um imenso desafio, que começa com a necessidade de organizar uma nova maioria que lhe permita governar. A História mostra que um presidente que não tenha atrás de si uma maioria coerente, num país onde as coligações não são habituais, tem grande dificuldade em dar expressão prática ao seu programa.

Nas próximas eleições legislativas, a grande maioria dos 42% de votos a mais, face à primeira volta, que deram a vitória a Macron, regressarão com naturalidade aos candidatos a deputados que representam as forças políticas em quem esses eleitores tinham votado nesse primeiro turno. O mesmo acontecerá, com toda a certeza, com os cerca de três milhões de votos a mais que Marine Le Pen recolheu nesta segunda volta. É claro que não deveremos descontar que alguns dos “novos” eleitores de Macron, pelas sinergias que uma dinâmica presidencial não deixará de induzir, poderão ser tentados a confortá-lo com um crédito de confiança, votando agora  “En Marche!”. Mas eu aposto, singelo contra dobrado, em como, no final do dia 11 de junho, esse partido não irá ter muitos mais votos do que aqueles que o seu inspirador obteve na primeira volta das presidenciais. 

A grande dificuldade com que Macron se vai defrontar, nas seis semanas que se seguem, é transformar um movimento de apoio a uma candidatura num partido capaz de apresentar candidatos, credíveis e com hipóteses de serem eleitos, num número significativo de circunscrições, dentre as 577 existentes. O “efeito PRD” que experimentámos em Portugal em 1987, é reproduzível na França da V República? Tenho dúvidas.

A ingovernabiidade, ainda que relativa, da França de Macron nunca será uma boa notícia para Portugal. Com a expectável saída do Reino Unido da UE, Paris tem uma oportunidade soberana para recuperar algum terreno perdido no plano europeu, como contraponto cooperativo a Berlim. Uma França forte seria um importante fator de equilíbrio na Europa do futuro. Por isso, o êxito de Macron é desejável e só nos poderemos vir a regozijar se ele vier a ter lugar. O que não nos impede de dever ter a responsabilidade de afirmar que as condições para tal vir a ocorrer são ainda muito questionáveis.

segunda-feira, maio 08, 2017

De trincheira em trincheira


Em 2000, a Europa chocou-se com a ascenção minoritária ao poder, na Áustria, de um partido de extrema-direita. Viena foi posta de “quarentena” e o episódio parecia ter funcionado como uma vacina para garantir que essa sombra negra não mais regressaria.

Dois anos mais tarde, Jean-Marie Le Pen, o negacionista desculpabilizador do colaboracionismo, chegou à segunda volta presidencial em França. A “frente republicana” ergueu-se, chocada, e votou Chirac. A Europa regressou ao “business as usual”.

Ontem, um candidato atípico, com o pé e a gravata dentro do sistema, mas contestando os representantes tradicionais deste, derrotou um “remake” edulcorado do pai Le Pen, em quem bem mais do que um em cada três franceses já hoje confiam.

Vamos recuando, de vitória em vitória, até à trincheira da derrota final? Ou alguém tem dúvidas de que, se tudo continuar na mesma, a agenda populista mantem todas as condições para crescer, tendo mesmo como farol os EUA, onde uma política de extrema-direita (não tenhamos medo às palavras) faz o seu imperial caminho?

Derrotar Le Pen ou Wilders, travar o AfD e fazer frente a Orbán, contestar Trump ou denunciar o primarismo por detrás do Brexit, tudo são passos necessários mas insuficientes. Se a Europa - porque as respostas ou são europeias ou não serão verdadeiras soluções – não for capaz de apaziguar o mal-estar das pessoas, acalmar os seus medos, atenuar as suas múltiplas inseguranças, gerando confiança no futuro e nas lideranças de turno, daqui a meses regressaremos a uma nova trincheira.

Será Macron capaz de impulsionar diferentes políticas europeias? Mas que autoridade externa pode vir a ter alguém que passa a liderar um país em evidente perda de velocidade competitiva, um dos “doentes” mais notórios da Europa, atravessado gravemente pela “malaise” que aduba os extremismos, de esquerda ou de direita? Até que ponto Angela Merkel estará disposta, na iminência do abismo europeu, a ajudar a França a com ela pilotar soluções diferentes para o futuro imediato?

Dentro de seis semanas, ver-se-á com que maioria parlamentar Emmanuel Macron poderá vir a governar. Se o seu movimento “En marche” não vier a ter um espetacular e pouco provável sucesso maioritário no sufrágio, terá que constituir uma coligação heteróclita que dificultará a colocação em prática do seu programa. Na oposição, terá um Front National que tem condições de sair desse mesmo sufrágio como o maior partido de França e uma esquerda que pode vir a ter mais força nas ruas do que no parlamento.

Macron terá assim meses difíceis à sua frente. Por um lado, procurará potenciar as hipóteses do “En Marche”, dramatizando a crise de governabilidade que pode aí vir. Contudo, terá de fazê-lo não hostilizando demasiado o “Les Republicains” de Sarkozy, bem como alguma esquerda mais moderada, de cuja boa vontade pode vir a necessitar para não ficar refém exclusivo da direita. É um caminho muito estreito que não se pode excluir que venha a conduzir, no fim de contas, a uma maioria pouco coerente, titulada por um primeiro ministro que, dependendo do sentido ideológico prevalecente, poderia ser (da direita para a esquerda) François Baroin, François Bayrou ou Gérard Collomb.

Mas tudo isto não passa de especulações de um analista que só tem uma certeza: um fracasso de Macron e uma crise política em França, a curto prazo, seria uma péssima notícia para a Europa. E, claro, para Portugal

domingo, maio 07, 2017

Rui Moreira

Terminou o namoro entre Rui Moreira e o PS, no Porto. Nada que não fosse expectável e que, a meu ver, só tinha sido evitado, até hoje, graças ao génio do relacionamento que se chama Manuel Pizarro, um "gentleman" e um homem de bem que os socialistas têm a sorte de ter no Porto.

Rui Moreira, pessoa por quem tenho simpatia, fez da Câmara uma via de afirmação muito pessoal, que se liga mal com a lógica das formações partidárias tradicionais que, goste-se ou não, constituem o eixo central da representação cívica em Portugal. Não há vida política para além dos partidos? Há, no microcosmo das pequenas autarquias ou por uma conjuntura temporalmente limitada, que pode suportar uma certa fulanização.

Os partidos tentam, pela normalidade das coisas, aproveitar em seu favor aquilo com que se comprometem. O PS, que colocou os seus simpatizantes ao lado de Moreira, considerou necessário tirar vantagens disso. Rui Moreira não gostou? É uma opção. A meu ver, deveria ter compreendido uma coisa que, a prazo, lhe pode ser fatal: é muito difícil, na "alta política" em Portugal, sobreviver de forma sustentada sem uma aliança, expressa ou subliminar, com um dos dois grandes partidos portugueses. Ora, ao alienar agora o PS, estando de costas voltadas para o PSD que existe, Moreira pode acabar por ficar sozinho na praia... da Foz.

O Nuno e o MAR

O Nuno Brederode dos Santos foi militante do MAR, o Movimento de Ação Revolucionária.

O MAR nasceu no início dos anos 60, tempo de grande agitação política e académica, muito marcado pela experiência cubana e por várias outras vivências revolucionárias. Não se confundia com o PCP, nem tão pouco com a extrema-esquerda maoísta que então borbulhava. Tanto quanto julgo saber, o MAR reuniu apenas algumas figuras da intelectualidade, em especial lisboeta. Nuno de Bragança, Manuel de Lucena, João Cravinho, Bénard da Costa e alguns outros integraram essa estrutura clandestina de cuja ação prática e concreta a História acabou por não recolher grandes notas. O MAR, contudo, viria a integrar a FPLN (Frente Patriótica de Libertação Nacional), criada em Argel. 

Ouvi uma história (terá sido ao Nuno?) segundo a qual, numa ocasião de alarme por iminente repressão policial, João Bénard da Costa terá enterrado umas caixas metálicas, contendo documentação sensível do MAR, numa certa zona da serra de Sintra. A precipitação com que essa ocultação foi feita, durante a noite, fez com que, tempos mais tarde, ao procurar esses arquivos, nunca mais tivesse conseguido descortinar o local do esconderijo. Assim, só o futuro trará um dia ao mundo essa prova documental sobre a robusta ação do MAR.

Um dia, o Nuno contou-me que foi destacado pelo Movimento para ir a Roma para um encontro clandestino com uma pessoa, uma mulher, que ele devia procurar numa determinada direção. Ela chamava-se "Raquel" - nome da clandestinidade, claro - e ele devia identificar-se como "Norberto" (inventei agora estes nomes, porque não fixei os que o Nuno me disse).

O Nuno bateu à porta, surgiu uma mulher muito bonita a quem perguntou: "É a Raquel?" Ela disse que sim, inquirindo: "Você é o Norberto". Estabelecido o contacto, passaram a uma sala, para tratar dos graves assuntos políticos que tinham motivado a deslocação.

E agora ficam as palavras do Nuno: "Ao final de cinco minutos de conversa, usando o "Raquel" e o "Norberto", demo-nos conta do ridículo da situação. Ali estávamos nós, sozinhos numa sala de Roma, a utilizar pseudónimos revolucionários, quando ambos nos conhecíamos de Lisboa. Ela era a Maria Bello... Acabámos numa risada!"

(Uma explicação. Este texto já teve um parágrafo final diferente. Nele se dizia que a pessoa que o Nuno tinha encontrado em Roma tinha sido, não Maria Bello, mas Maria Carrilho. Seguramente por lapso meu, ao ouvir, do Nuno, a história, fiz essa confusão. E ela iria ter consequências. Por ocasião da morte do Nuno telefonei à Maria Carrilho, dizendo-lhe que ia publicar este episódio, que me parecia inócuo mas interessante, para explicar “l’air du temps”. A Maria tinha acabado de desembarcar de um avião, chegada de Nova Iorque. A reação que me transmitiu, além da surpresa e tristeza pela morte do Nuno, foi bastante vaga quanto ao episódio, que lhe referi em termos largos: não o negou mas, manifestamente, não lhe dizia muito. Mesmo assim, dei por boa a sua associação ao evento e assim o publiquei. Como nunca me disse nada, acreditei ter sido fiel aos factos. Alguém, anónimo, num comentário, fez-me ver que era eu quem estava errado. Quis dar esta explicação por uma circunstância importante para mim: eu não deturpo deliberadamente factos.)

sábado, maio 06, 2017

Trocos

"Não acredito!" A jovem da loja dos sumos da rua Nova do Almada olhou para mim, incrédula.

Duas horas antes, eu tinha entrado (não muito, porque aquilo é esconso) pela porta dentro, com uma nota na mão, a pedir trocos, para estacionamento. Não obstante a situação da caixa registadora, neste domínio, não ser brilhante, a jovem havia sido de uma grande simpatia e lá me arranjou um par de moedas.

Agora, duas horas e tal passadas, aí estava eu, com o dobro dos trocos na mão, a "devolver-lhe" a gentileza, pedindo uma nota "em troca". A jovem estava siderada com o meu gesto. Sorrimos - e ela era bonita - e eu fui à minha vida.

O meu carro, parcado em frente, lá estava, dentro da hora do estacionamento, naquele dia em que a app da Emel "não dava". Tudo perfeito!

Foi então que vi o pequeno envelope vermelho no pára-brisas, Dentro, a fatídica multa. Era uma zona para residentes! 60 euros a pagar! Afinal não eram trocos...

sexta-feira, maio 05, 2017

Grau zero


“O senhor não tem o monopólio do coração”, lançou Giscard d’Estaing a François Mitterrand, com maestria, no debate presidencial de 1974. Qualificado de “candidato do passado”, Mitterrand retorquiria a Giscard, em 1981, que ele era “o candidato do passivo”. Mais um septanato decorrido, o mesmo Mitterrand, presidente recandidato, calaria o seu “challenger”, o primeiro ministro da maioria hostil, Jacques Chirac, quando este sublinhou que ali não estavam um presidente e... um primeiro-ministro, mas apenas duas pessoas com estatuto idêntico, com o soberbo: “Tem toda a razão, senhor primeiro-ministro”. Chirac começaria a cair aqui.

Alguns desengravatados na linguagem argumentarão que os tempos já não estão para “punhos de renda”, que a linguagem franca é a regra do jogo, que os dias que correm convocam outro tipo de discurso. Imagino que sejam as mesmas pessoas que não se escandalizam com as javardices insultuosas ditas pelo presidentes dos clubes, que assim ditam o tom à turbamulta alarve das claques, com as violências consequentes.

Pode ser que sim, e as ruas da amargura em que se transforma, em certas tardes, o nosso debate parlamentar parece dar-lhes razão. É claro que o tempo do “olhe que não, olhe que não”, entre Soares e Cunhal, já lá vai há muito, que a elegância do confronto político parece francamente perdida.

Mas o bom senso, e até o sentido prático de deixar abertas algumas portas para o diálogo, talvez recomendasse que se preservasse uma reserva de urbanidade. É que a política também se faz à porta fechada e o que se diz em público, se passar determinados limiares, pode condicionar certas pontes que o futuro pode revelar necessárias.

Tenho vindo a pensar mais nisto desde que testemunhei, um pouco atónito, o nível verbal das trocas entre Donald Trump e Hillary Clinton. E, na passada quarta-feira, ao constatar o “grau zero” a que chegou o confronto de Marine Le Pen com Emmanuel Macron, interroguei-me sobre o efeito que este tipo de linguagem poderá vir a ter junto dos respetivos eleitorados.

Mas depois, pensando melhor, cheguei a conclusão de que estamos perante um fenómeno bi-unívoco, isto é, os líderes cada vez mais refletem o nível do eleitorado que os apoia e o seu êxito parece ser proporcional à simbiose que demonstram com essa base. Só assim se explica que passem impunes atentados flagrantes à verdade dos factos – como Trump ousa todos os dias e Le Pen deixou patentes no debate.

Este é um tempo político perigoso, feito de caricaturas, de simplismos, de linguagem primária, que subordina a razão à emoção. Se a isto somarmos a dispensa da ética, a legitimação dos egoísmos e da discriminação e a ausência de respeito pelos outros, está criado um caldo de cultura que, no passado, deu no que deu.

Cri de coeur


Uma vitória de Marine Le Pen "significaria o fim da União Europeia porque a UE, sem a França, não faz sentido. E significaria o colapso do euro e a crise financeira, com consequências através do mundo". Quem disse isto não foi uma pessoa qualquer, foi Gérard Araud, embaixador francês em Washington. Acabo de ler na Newsletter diária do Washington Post. 

Pode um embaixador ter propósitos destes, hostilizando abertamente uma candidata que a vontade popular francesa poderá conduzir à chefia do seu país? 

Araud, um excelente profissional, que conheço bem (era diretor político do Quai d'Orsay quando eu era embaixador em Paris), tem, com certeza, a plena consciência de que está a ultrapassar a "linha vermelha" da neutralidade que aos servidores públicos incumbe ter perante as escolhas democráticas. As eleições em França decorrem em total liberdade, sem o menor condicionamento, pelo que não há a menor dúvida de que a resultante final do sufrágio, qualquer que ela seja, corresponderá à livre vontade do povo francês. Por isso, Araud prevaricou, de acordo com as regras estabelecidas e que lhe cumpria cumprir.

Mas eu percebo Gérard Araud. Um diplomata não é um eunuco político, é um cidadão que sente os problemas do seu país e, provavelmente, tem mesmo uma leitura mais qualificada do efeito externo das escolhas internas. E ele pressente que, se a França viesse a escolher Le Pen, isso teria um impacto muito negativo para a imagem e prestígio do seu país. E escolhe dizê-lo.

Ao tomar esta atitude, Araud sabe que, em caso de vitória de Le Pen, a sua "cabeça" rolaria e, muito provavelmente, teria de deixar o serviço diplomático. Por isso, pelo facto de um dos mais prestigiados diplomatas franceses ter ousado abandonar a neutralidade a que a função o obriga, dando este "cri de coeur", pondo em risco a sua carreira, pode ter-se uma ideia mais clara da gravidade da escolha que os franceses serão chamados a fazer no domingo.

Segunda-feira


Emmanuel Macron ganhou o debate televisivo contra Marine le Pen? Confesso que, depois do Brexit e de Trump, sou bem mais cuidadoso nas opiniões que emito sobre realidades estrangeiras e, em especial, nas avaliações prospetivas sobre o sentido desses eleitorados. Porquê? É muito simples: o referencial de análise que cada um de nós utiliza é sempre desenhado à luz daquilo que pensamos ser o eleitor comum, do qual, implicitamente, tendemos a não nos afastar muito em termos pessoais (embora possamos fazer um esforço interior para tal). Ora isso não leva suficientemente em conta a circunstância desse mesmo eleitor "médio" poder ter, entretanto, mudado bastante, fruto de situações conjunturais que podemos não conseguir medir convenientemente, de ele ser hoje menos sensível a sentimentos e realidades que, no passado, sabíamos que estavam mais presentes nas suas escolhas. Quero com isto dizer que fatores emocionais, que somos levados a considerar como primários e simplistas, podem afinal ter um papel central na decisão de cada um. Por exemplo, o rigor factual nas propostas ou comentários dos candidatos, que sempre tendemos a considerar qualificadores do seu discurso, podem dizer muito pouco a eleitores que se deixem tentar pelo "vale tudo" e que considerem isso um preciosismo dispensável. Viu-se nos os debates entre Clinton e Trump.

Repito: Macron ganhou o debate? Para mim, ganhou, mas tenho a certeza de que um "enragé" (para utilizar a clássica expressão do maio de 1968), que deteste um tipo engravatado com ar "certinho", a lembrar a alta finança e o "sistema" que ele acha que lhe põe em causa o seu emprego, que lhe abriu as fronteiras por onde entra a “diferença” que ameaça a imagem que tem da sua identidade nacional, que o não protege dos terroristas e dos "voyous" que lhe assombram a segurança das ruas no HLM onde vive, que, para ele, representa tudo aquilo que mobiliza a sua raiva, essa pessoa não pensa exatamente como eu. E pode, afinal, sentir-se representada pelo escárnio (que eu acho alarve, mas ele talvez não) presente nas atitudes de Le Pen durante o debate, indiferente ao facto de ela não saber quando foi introduzido o euro ou o seu visível desconhecimento da máquina europeia. O eleitorado, dirá o leitor, não são só "enragés"? Claro que não. Mas o eleitor "médio" sereno, que oscilava entre o centro-direita e a social-democracia, por muitos anos o fiel da balança do sistema, por onde andará hoje, com as estruturas políticas da direita clássica e dos socialistas destroçadas? Hoje, está visto, é tão “enragé” o operário vítima das deslocalizações como o é o estudante sem emprego à vista que votou Mélenchon ou o idoso burguês do XVIème que se assusta ao cruzar-se nas ruas com as “burkas” e que até tinha perdoado os pecadilhos a Fillon para ter um “genérico” de Sarkozy no Eliseu.

Logo veremos. Mas, seja qual for o resultado, o mundo irá mudar com esta eleição francesa.

Se, numa hipótese que não espero, Marine le Pen entrasse no Eliseu, a disrupção e a instabilidade que isso provocaria no projeto europeu seriam imensos e imediatos. Se for Macron a ganhar, como me parece mais provável, será sempre mais um presidente “by default” do que uma escolha pela positiva.

Em qualquer dos cenários, vai ser necessário esperar pelas eleições legislativas de junho, de cujo resultado dependerão as condições de governabilidade de qualquer presidente. Uma coisa é clara: uma forte “onda” Le Pen trará impactos determinantes sobre esse mesmo sufrágio, atenta a “balcanização” do voto dos seus múltiplos opositores.

A França será muito diferente a partir de segunda-feira. A outra má notícia é que, muito provavelmente, a Europa também, e para pior.

quinta-feira, maio 04, 2017

O adeus de Philip


Foi hoje anunciado que o príncipe Philip, duqie de Edimburgo, vai deixar de surgir em cerimónias públicas. A sua fragilidade física justificará que deixemos de o ver ao lado da raínha Isabel II. Enfim, ao lado não, porque há uma arte que ninguém como ele domina: estar sempre dois passos atrás da soberana, garantindo, não obstante, um lugar com suficiente proeminência na cena, a que a sua estatura também ajudava. Do príncipe, a História não reteve grandes tiradas e, bem pelo contrário, fixou mesmo algumas "gaffes". Não deve ser fácil ser príncipe consorte, mas, jogando o trocadilho, ele tem, no entanto, a sorte de sê-lo de uma raínha que é uma excelente profissional na função que exerce.

Há já uns bons anos, na Noruega, tive uma simpática amiga, diplomata equatoriana, de seu nome Marta Dueñas. Era casada com um norueguês "muito norueguês", daqueles que construíam (não sei se ainda constroem) as próprias casas familiares de madeira, ao longo de vários meses ou mesmo anos. Chamava-se Erik e recordo-me que tinha um humor já algo "sulista", por virtude do convívio com os colegas da mulher, como era o nosso caso.

Um dia, o Erik contou-me uma troca de palavras que teve com o príncipe Philip, durante uma visita de Estado da soberana britânica à Noruega. Como era de regra, após o jantar oficial, o protocolo ia convidando os diplomatas, por uma ordem vagamente próxima da respetiva antiguidade, para se aproximarem do rei norueguês - à época Olav V - e da sua convidada. Numa linha mais atrás, o príncipe Philip exibia o seu sorriso e deixava cair alguns comentários.

Quando a diplomata equatoriana e o seu marido foram apresentados aos reis, o duque de Edimburgo acercou-se de Erik e, num aparte só ouvido pelo dois, comentou: "você e eu temos uma coisa em comum: são as nossas mulheres que trabalham!" Erik não sabia o que dizer: ele próprio tinha uma exigente profissão e vir a ser toda a vida "consorte" da mulher era a última coisa que lhe passava pela cabeça. Mas não quis desiludir o príncipe e deixou escapar: "De facto, é um privilégio estar na nossa posição..." Não contava com a reação de Philip: "Privilégio?! Isto às vezes é muito aborrecido, pode crer! Para si não é?". O norueguês, que detestava cocktails e jantares oficiais, a que só assistia por virtude da profissão da mulher, achou que tinha ganho espaço para uma graça: "Ao menos, bebemos uns copos!" Ao que Philip, sorrindo, respondeu: "Pois hoje, a mim, de nada me valeu ainda ser marido da raínha! Ainda não consegui que me servissem um scotch..."   

quarta-feira, maio 03, 2017

Refugiados

A tradicional auto-flagelação lusitana, essa endémica mania de desqualificar o que alguém faz em nome do país, tem vindo a "desfazer" no acolhimento dado aos refugiados, destacando que muitos "fogem" de Portugal, após precariamente instalados.

A ver se nos entendemos: cumprindo bem a sua história como país recetor de deserdados da sorte, Portugal foi dos primeiros Estados a abrir portas, à sua medida, à recente vaga de refugiados do Médio Oriente. Fê-lo através de uma notável mobilização do Estado e da sociedade civil, da igreja e dos municípios. Como cidadão, fiquei orgulhoso com o modo generoso como o nosso país se mobilizou.

Portugal fez a sua obrigação, fê-la bem e à medida das suas possibilidades - que são as do país mais pobre da Europa ocidental, como alguns teimam em esquecer que há muito somos. Houve, com certeza, falhas, mas, genericamente, as avaliações feitas são muito positivas e reconfortantes.

Arguir com a posterior saída dos refugiados é não entender que, na sua condição, é de todo natural que procurem ir em busca das melhores oportunidades, que essas são as que países mais ricos proporcionam, onde as possibilidades são em maior número, em que os apoios sociais são mais amplos, onde porventura há comunidades da mesma origem, mesmo familiares e amigos já integrados.

Há que ser rigoroso na avaliação do que eventualmente possa ter corrido mal, aprendendo todas as lições daí decorrentes. Mas não deixemos que a árvore nos tape a floresta e que a acidez agrave as úlceras alimentadas pelo eterno discurso da verrina. 

Isabel Mota

(fotografia de João Paulo Dias)

Isabel Mota assume hoje as funções de presidente da Fundação Calouste Gulbenkian. É a primeira mulher à frente dos destinos da Gulbenkian e isso não pode deixar de ser especialmente assinalado. 

Conheço Isabel Mota há muitos anos, desde que foi trabalhar para a Representação Permanente em Bruxelas, pouco após a nossa entrada para as então Comunidades Europeias, em 1986, ao tempo em que eu próprio integrava a estrutura central de coordenação da nossa integração europeia, em Lisboa. Depois, Isabel Mota foi secretária de Estado do Planeamento durante vários anos, durante os quais adquiriu uma vasta experiência nos dossiês comunitários.

Com o fim do "cavaquismo" (a Isabel não gosta muito da expressão...), Isabel Mota passou a assessorar o então líder do PSD, Marcelo Rebelo de Sousa, nas questões europeias. Eu era então o secretário de Estado dessa área. Um dia, no gabinete do então primeiro-ministro António Guterres, este combinou com Marcelo Rebelo de Sousa, na nossa presença, que seria criada uma "miniestrutura de relação permanente" entre o governo e o PSD, que "monitorizava o acompanhamento da política europeia passo-a-passo" (para utilizar as expressões usadas pelo agora presidente numa entrevista ao "Expresso", em dezembro de 2015). Essa "miniestrutura" era a Isabel e eu, que passámos a almoçar e a encontrarmo-nos com alguma regularidade. 

Embora com algumas "nuances", as posições dos dois principais partidos tinham largas similitudes no plano europeu e, muito em especial, ambas eram bem distintas, à direita, das do então muito eurocético CDS e, à esquerda, das do PCP (o Bloco estava ainda para nascer). Ficou claro que o PSD não teria um "droit de regard" sobre as posições do governo socialista mas, nas principais questões, este procuraria consensualizar com ele, na medida do possível, aquilo que viesse a apresentar em Bruxelas. E assim se fez, creio que com proveito para o país. Com a "oposicionista" Isabel Mota, que me recorde, só tive uma troca pública de argumentos, aliás bem civilizada, no "Expresso", em torno da questão da regionalização, tema que ela combatia e em que eu defendia a posição governamental, com toda a convicção pessoal que consegui mobilizar na altura para o assunto - e que, confesso, não era imensa... Às vezes, ainda nos rimos com essa polémica.

Os nossos encontros eram sempre com muito "boa onda", porque Isabel Mota é uma pessoa extremamente agradável e divertida. Julgo que conseguimos levar a bom porto aquilo de que os dois líderes políticos nos encarregaram. Anos mais tarde, em 2003, quando eu estava como embaixador na OSCE em Viena, viria a encontrar de novo Isabel Mota numa "task force" que o governo de Durão Barroso criou para acompanhar as negociações do malogrado Tratado Constitucional europeu.

Nos últimos anos, tendo eu passado a exercer as funções de presidente do Conselho Consultivo para a Delegação de Paris da Fundação, regressámos a um contacto mais regular. Sendo Isabel Mota a administradora responsável por aquela área, revelo aqui que passei a tratá-la por "chefe". Agora com a sua ascensão à presidência, vou ter de descobrir um qualificativo que possa representar um "upgrade" a esse título!

Só posso desejar à minha querida amiga Isabel Mota os maiores sucessos na presidência dessa notável instituição "do bem" que tem o nome de Fundação Calouste Gulbenkian. E aproveito também para, neste momento, deixar um abraço de grande amizade a Artur Santos Silva, que abandona a chefia da instituição, depois de um exigente mas muito bem sucedido mandato, num período que, como é sabido, não terá sido nada fácil para a gestão dos recursos que sustentam a atividade daquela casa.

terça-feira, maio 02, 2017

Uma história do Nuno


Era àquela hora despovoada em que o Procópio tem escassas almas, imediatamente antes do jantar. Às vezes, há por lá uns canastrões a "fazer a folha" a secretárias em busca de ascensão, ou um tête-à-tête de negócios. O Nuno Brederode Santos tinha chegado, depois das seis, fazia horas para ir jantar ao "Mãe de Água". Eu estava por lá por um mero acaso, muito longe do meu turno. 

Vimo-lo entrar e sentar-se ao balcão. Trazia a marca indelével dos chatos. Saudou-nos na "mesa dois", à distância. O Nuno sabia quem era. A certo passo, com o resto da sala deserta, copo na mão, o cavalheiro aproximou-se da "dois", perguntou se se podia sentar. Saí um pouco da conversa, com ele a inquirir do Nuno sobre umas coisas que não me diziam o menor respeito. Com generosidade inclusiva, o tipo voltou-se então para mim: "Sabe, eu e o Nuno conhecemo-nos do tempo do Ertilas, aquele café de Campo de Ourique. Grandes noitadas por lá, não era, Nuno?". O Nuno, complacente, dizia que sim. Comentei então que o Luís, o magnífico empregado do Procópio que nos aguenta nas últimas décadas, havia trabalhado nesse café. O "Ah! Sim?" (versão lusa do anglo-saxónico "really?!") foi a única coisa que lhe saiu.

Esgotados os minutos em que nos encharcou de conversa, o cavalheiro preparou-se para sair. Nostálgico, comentou, de novo íntimo, com o Nuno: "Grande Ertilas! Belo café! Grandes tempos! O nome do café é grego, não é?". O Nuno, grave, acenando que sim com a cabeça, confirmou. Era um nome grego, da mitologia, claro.

O tipo saiu. Eu tinha de fazer o mesmo. O Nuno ia para o restaurante. Perguntei: "Conhecias bem o tipo?". "Mais ou menos, mas nunca o vi no Ertilas..." Riamo-nos, já fora, pelas escadas, quando comentei: "Não fazia ideia de que Ertilas era um nome grego!" "Grego?" O Nuno deu uma gargalhada das dele: "Ertilas é Salitre ao contrário"...

Ontem, não pude ir aos Prazeres, despedir-me do Nuno. Lá por Campo de Ourique, como o Ertilas, o bairro onde o Nuno nasceu.

segunda-feira, maio 01, 2017

A hora do aeroporto



O cavalheiro estava bem disposto, não obstante já ter passado mais de meia hora, sem que as bagagens surgissem na passadeira, depois do voo que nos trouxe de Paris.

A mulher, cansada, acabara de dizer que estavam ali a "perder tempo". Ele não se mostrou de acordo:

- Estás enganada! Quando vimos de Paris para Lisboa, chegamos com uma hora de diferença, não é? Ora muito bem: essa hora existe precisamente para compensar os atrasos da TAP e para permitir que haja tempo para entregar as malas.

Bem visto!

Primeiro de maio

Tinha uma "Légion d'Honneur", discreta, gasta, como deve ser. Quase 90 anos. Estava sentado ao nosso lado, nas mesas do fundo da sala de baixo, hoje, no almoço do Stella. "Cabillaud" e uma "carafe" de vinho da casa. De repente, a língua diferente aproximou-nos. Ao saber-nos portugueses, do "cabillaud" passou-se ao bacalhau. E depois a Salazar ("un homme remarquable") e aos "oeillets rouges" dos comunistas. Quando enveredou pelas "concierges portugaises", concentrei-me de vez no "fillet de boeuf saignant, sauce bernaise". Intervalo. A certa altura, entre nós, falou-se do Trocadéro, ali perto. Ouvida a palavra, não resistiu: "J'y étais, l'autre jour, avec Fillon", esclareceu, sem necessidade, para o nativo do "XVIème" que era. Claro que estivera no comício de Fillon, onde Juppé foi tido como "le candidat de la gauche". Tentei, por uma última vez, evitar a atualidade, fugir à controvérsia. Falei-lhe, admirativo, da condecoração que tinha ao peito: "Le Général! C'est lui qui me l'a donnée." Mas derivou, de novo, para a política dos dias. "Tout ça c'est la faute de Mitterrand". Animado pelo Bourgogne, lancei: "Quand même, avec lui, les chars soviètiques n'ont pas descendu à la Concorde!", recordando o que dizia a direita assustada, nesses anos 80. Não topou. "Hollande c'était un imense désastre! Un salaud! Et l'autre, ce Macron c'est bonnet blanc, blanc bonnet". Lembrei-lhe que Macron vinha do Banco Rothschild... como Pompidou. O imenso Baba au Rhum que comia ("soyez généreux" com o rum vertido, havia ele pedido ao empregado, rindo) tremeu com a pequena provocação. "Il faut le stopper, Monsieur!" Disse-lhe que era turista, que não tinha nada a ver com o que se passava, mas que tinha uma curiosidade: "Et le Géneral? Qu'est-ce qu'il penserait de la possibilité de voir une Le Pen à l'Elysée?". "Cher Monsieur, tout ça c'est trop serieux pour des plaisanteries". "Mes hommages, madame", disse ele para o outro lado da minha mesa. E saiu, com a bengala cheia de tentações. Que raio de 1° de maio em Paris!

O Hubert

Ao final de uns minutos, eu já estava arrependido de ter puxado conversa. Ele era do Haiti, negro, vivia em França desde os anos 90, tinha aquele francês caribenho macarrónico. Comecei por perguntar-lhe pelo seu país, pelo terramoto, pelas vagas migratórias para a América, Canadá e França. Vieram também os Duvalier à baila - do pai ao "baby Doc" e aos "tonton macoute" -, falámos da desilusão que foi o Aristide. Ele era democrata, contra a ditadura, falou do desvio de verbas para a reconstrução, da escassa esperança na nova solução governativa. A certo passo, dei comigo a cometer o lapso de lhe perguntar quem é que ele achava que ia ganhar a eleição francesa do dia 7. O homem começou a responder relativamente sereno, equilibrado, quase diplomático. Depois, subitamente, confessou, excitado, que ia votar Marine Le Pen. Não contestei, não disse nada, ouvi a sua litania sobre a necessidade da França sair do euro, regressar ao franco, travar a entrada de estrangeiros (!). "Com um franco comprava-se uma baguette, agora é preciso o equivalente a seis francos", sem que eu lhe perguntasse quanto ganhava então. E, de um momento para o outro, Macron passou a ser o objeto de todas as críticas. Ainda estive para perguntar-lhe se, por acaso, já tinha refletido no que poderia vir a acontecer, em caso de vitória de Le Pen, aos estrangeiros, mesmo aos que, como ele, já estavam há muito em França. Contive-me, para não atiçar ainda mais a conversa que ele empolgara. E, praticamente, "desliguei". A certa altura ouvi-o denunciar a aliança de Macron e com o Hubert. Conheço relativamente bem as figuras políticas, e outras, francesas, mas não consegui chegar à personagem a quem ele se referia. O tal Hubert surgir-lhe-ia umas vezes mais no discurso, que agora era contra a "globalização", o "neo-liberalismo" e clichés assim. Eu já tinha deixado para trás a conversa. Saí do carro. Paguei. E, um segundo depois, como dizem os brasileiros, "caiu a ficha": o Hubert, esse maroto conluiado com Macron, que eu não identificava, era afinal o Uber. Muito por causa dele, o taxista haitiano de Paris vai votar Le Pen. Que lhe faça bom proveito, é o que não lhe desejo.

domingo, abril 30, 2017

Viver com Trump


Por muitos anos, Donald Trump foi, na imagem exportada pela América, a caricatura arrogante do dinheiro, mulheres espampanantes à ilharga e abundância de notas pitorescas em páginas sociais. As suas incursões discursivas no mundo da política eram vistas com alguma sobranceria pelos ocupantes institucionais do espaço. É que, por lá, os milionários que revelam ambições políticas tentam, em regra, concretizá-las a nível local. Talvez por essa razão, a sua vocação presidencial foi inicialmente acolhida com o desdém concedido aos "newcomers", num sistema que parecia blindado à intromissão de intrusos. 

Trump foi mais hábil do que se supunha. Com o tempo, conseguiu explorar um "nicho de mercado" que a arrogância dos aparelhos políticos tradicionais não tinha visto chegar: uma certa América agora triste – branca, insegura, indignada com a sua sorte e em crise de identidade – de há muito sem voz própria com expressão eficaz. Mas não deixa de ser muito irónico que os "losers" se tivessem deixado seduzir eleitoralmente por um dos ganhadores da economia "de casino", neste caso no seu sentido mais literal. Ou talvez não: Trump era a imagem do sucesso de que tinham sido excluídos e falava para eles, com palavras e soluções simples, com que ostensivamente contestava o sistema que esses setores sentiam como culpado pelo seus azares de vida. E Trump, contra os aparelhos, foi eleito.

A administração Trump comemora agora os clássicos 100 dias, que costumam convocar balanços. A maioria dos americanos não parece partilhar, de forma entusiástica, de qualquer euforia. E, de facto, poucas razões teria para tal. Este seu atípico presidente, que para o comum da comunicação social bem-pensante é um embaraço para a imagem dos EUA, pouco provou naquilo que dele se esperaria como líder da maior potência mundial. Pelo contrário, mostrou um chocante nível de impreparação que causa angústias em muitos setores.

Na política interna, a forte ascendência republicana no Congresso não tem conseguido produzir, necessariamente, uma coerência na resultante decisória correspondente ao seu expressivo poder quantitativo. Esperar-se-ia que a autoridade do presidente fornecesse uma linha orientadora e unificadora, mas Trump e a sua equipa já mostraram não serem os "brokers" ideais desses diferenciados interesses. Isso leva a um espetáculo de medidas erráticas, na obsessão de concretizar o desmantelamento do período Obama. E o saldo de realizações, ao final destes 100 dias é mais magro do que nunca.

A agenda externa proposta foi aquela que, compreensivelmente, mais agitou o mundo. Mas, curiosamente, foi aquela em que algumas reversões de percurso foram mais evidentes. A expressão do poder externo parece, por ora, entregue a militares, o que sossega os setores patrióticos e dá a Trump a possibilidade de exibir fogachos de poder bélico. A grande questão que o mundo se coloca é saber se a política de “espetáculo” seguida pelo presidente americano terá, ou não, expressões de desregulação, em quadros geopolíticos de forte tensão, que esse próprio mundo tenha de vir a pagar.

(Artigo publicado no dia 28 de abril no "Jornal de Notícias", a propósito dos "100 dias" de Trump)

Foi-se o Nuno


Morreu Nuno Brederode Santos. Se, na vida, me cruzei com alguma gente brilhante, o Nuno estava, sem favor, nos melhores. Mas era mais, era um amigo certo, um amigo único. Numa noite da vida em que tudo parecia desfazer-se, foi o Nuno que chamei para junto de mim, para relativizar essa dor.

Nuno Brederode Santos teria a graça dos iluminados, se acaso eles existissem. Tinha uma fascinante rapidez de raciocínio, uma memória arrasante para o interlocutor, aliada a uma cultura multifacetada e maturada, nos livros, nos filmes, nas tertúlias. Era dono de uma palavra ágil, oportuna, capaz de golpes de génio verbal como raramente testemunhei em alguém. Num grupo, animava todos, era atento a quem sentisse isolado, cuidadoso ao extremo com os problemas dos outros. Era um pessoa solidária, sempre ao lado das coisas da vida que valem a pena, das causas pelas quais era importante travar as batalhas, por mais perdidas que elas se anunciassem. Escrevia como poucos o sabem fazer, num português de lei, com uma riqueza vocabular que só muito episodicamente atravessou o jornalismo português. Da "Seara Nova" ao "Expresso", passando por outras colunas onde nunca cuidou em ser excessivamente assíduo, deixou páginas únicas. O seu "Rumor Civil", o livro que recolhe algumas dessas peças, fica-nos como um retrato raro de um certo período político, que ele dissecou com o certeiro bisturi da ironia. 

Nuno Brederode Santos, diz-me quem sabe, era uma mente jurídica brilhante, inventiva, desconcertante, de uma qualidade rara. Neste domínio, não foi, com toda a certeza, tão longe como, com facilidade, poderia ter ambicionado. Mas o Nuno fez escolhas, escolheu a vida. E a vida, essa vida, acabou agora. Cedo demais, mas cheia, rica, única, recheada de amigos. Deixo um beijo sentido para a Maria do Céu, mulher-coragem, que lhe alegrou a existência, numa cumplicidade brilhante que o completou, de uma forma dificilmente substituível. E outro beijo aqui fica para a Maria Emília, o fraterno e eterno sorriso bom que sofre, em pouco tempo, outra perda sem remissão.

Foi-se o Nuno. Nasceu no dia da batalha das Ardenas, deixa-nos num dia glorioso da solidariedade e da esperança. Quem o conheceu sabe que, com a sua partida, é uma certa geração que, definitivamente, sai agora de cena.

(Artigo hoje no "Público")

sábado, abril 29, 2017

"Diplomacia de Defesa"

Há mais de um ano, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidafe Nova de Lisboa, fui arguente da tese de mestrado de Maria do Rosário Penedos, dedicada ao tema da Diplomacia de Defesa.

Foi uma prova brilhante, finda a qual sugeri a publicação da tese, por se tratar de uma abordagem muito criativa a um tema em que Portugal tem tido grande destaque na ordem externa.

No dia 27, tive o gosto de apresentar a obra, editada pela Chiado Editora, que também prefaciei.

sexta-feira, abril 28, 2017

Brincar com o fogo


Em 1986, no auge da luta eleitoral que opôs Mário Soares e Freitas do Amaral, o país ouviu Álvaro Cunhal recomendar aos militantes comunistas que votassem Soares no segundo turno. Para os que tivessem maior relutância em fazê-lo, conhecida a aversão tida a Soares por muita gente desse setor, o líder do PCP recomendava que “tapassem com a mão” a sua fotografia, quando colocassem a cruz no boletim de voto.

Freitas do Amaral não era um fascista, não era de extrema-direita, embora não houvesse nenhum saudoso do “ancien régime” em Portugal que não se tivesse acolhido à sombra do candidato dos “loden” e dos palhinhas, o que assustava muita gente, a começar pelo autor deste texto. Mas foi assim que o “povo de esquerda” (bela expressão de António Barreto, pedida de empréstimo a Mitterrand) conseguiu colocar Soares em Belém, por uma década.

Le Pen está muito próxima de Trump, esse sim, portador de uma agenda claramente de extrema-direita – designação que, se acaso fosse europeu, há muito a imprensa já lhe teria colado à pele. E, no entanto, sendo ela indiscutivelmente muito mais perigosa do que Freitas do Amaral era em 1986, há, pelos vistos, quem não veja as coisas dessa forma, equivalendo-a a candidatos indiscutivelmente mais inócuos. E isto ocorre na mesma França que, em 2002, se mobilizou maciçamente por Jacques Chirac contra o pai Le Pen, cuja agenda programática não era substancialmente muito diferente.

Por isso, ouvir um homem com um passado de  esquerda, como Jean-Luc Mélenchon, na sua intervenção no final da primeira volta, afirmar que não ia dar, uma indicação imediata de voto ao expressivo número dos que nele confiaram, optando entre os dois candidatos apurados para o escrutínio final, um dos quais de extrema-direita, foi, a grande distância, o que mais me impressionou naquela noite.

O “defeito” é, com certeza, meu: ainda vivia num mundo que se havia habituado à regra “republicana” de que, contra um candidato de extrema-direita, o voto era “cego” em quem quer que se lhe opusesse. E isso, afinal, acabou. Até nalguma esquerda.

É claro que, em 2012, já se assistira ao famoso “ni-ni” – nem Front National, nem socialistas – lançado por Sarkozy, antes da segunda volta das eleições legislativas. Curiosamente, Fillon não o seguiu, nem nessa altura nem nestas eleições, em que logo afirmou que era necessário votar em Macron. Porém, Sarkozy e a “nomenklatura” do “Les Républicains” o máximo que conseguiram ir foi apelar a um voto “contra Marine Le Pen”. A direita francesa parece ter iniciado uma deriva sem retorno para as profundezas radicais. Mas a esquerda populista, talvez numa inconsciente procura do “quanto pior melhor”, não lhe fica atrás. Estão a brincar com o fogo. E podemo-nos queimar todos.

quinta-feira, abril 27, 2017

Os dias de Orbán


Embora fria, lembro-me de que estava uma bela e límpida noite. À varanda central do majestoso parlamento húngaro, nesse mês de Março de 1999, os presidentes Jorge Sampaio e Árpád Göncz trocavam impressões sobre a paisagem frente ao Danúbio.

Horas antes, eu havia acompanhado Jorge Sampaio num encontro com o primeiro-ministro Viktor Orbán.

Os primeiros bombardeamentos da NATO sobre as tropas sérvias no Kosovo anunciavam-se iminentes. A guerra ia explodir, em breve, ali ao lado. Os aviões iriam sobrevoar a Hungria, que era candidata a integrar a organização. Orbán mostrava-se tenso, deixando clara a sua preocupação pelas populações de origem húngara da Vojvodina, uma região da Sérvia dotada de alguma autonomia. Quando reagi, politicamente, ao conceito de "futuras populações NATO", que o primeiro-ministro utilizou para caraterizar essas pessoas e a obrigatoriedade da sua proteção prioritária, pareceu-me ver acentuar-se o olhar duro e fechado que mostrou durante todo esse encontro. Não esqueci mais esse olhar.

Sabia-se que as relações entre o presidente Göncz e Orbán não eram nada fáceis, essencialmente por razões de política interna húngara, mas, igualmente, por diferenças notórias de personalidade e de história política.

Por contraste com Orbán, Göncz era uma figura suave, um homem cheio de bom senso, com uma vida difícil nos tempos comunistas, da qual, contudo, falava com a superioridade de quem já colocara uma distância entre os traumas e o presente, olhando esse passado apenas na linha do futuro do seu país. Resistente na II Guerra Mundial, havia estado preso durante seis anos, depois da invasão soviética de 1956. Homem de cultura, Göncz seduziu Jorge Sampaio, com quem falou longamente e estabeleceu uma relação pessoal fácil e calorosa.

A certa altura, o presidente húngaro voltou-se para mim e inquiriu:

- Está a ver aquela luz amarela, lá ao fundo, do outro lado do rio?

Ao meu assentimento, acrescentou, num tom algo que me pareceu sombrio e triste:

- Era uma prisão. Uma das piores de Budapeste. Estive lá alguns anos. Foram tempos muito duros. Espero que não voltem, nunca mais. A Europa tem de servir para isso. O seu governo tem de ajudar-nos.

Depois da conversa com Orbán, e de ter ouvido outros interlocutores húngaros, percebemos bem o que significava esse recado.

A Hungria, que entretanto entrou para a União Europeia. Göncz deixou a presidência há muito e morreu em 2015. Viktor Órban é, de novo, primeiro-ministro e o que se tem passado nos últimos anos na Hungria, em matéria de abusos que infringem as liberdades fundamentais, as regras do Estado de direito e o respeito pela separação de poderes, envergonha a Europa. Orbán, como ainda hoje se observou no Parlamento Europeu, continua a fazer caminhar o seu país para uma "democratura".

Felizmente para ele, tem assessores, até portugueses, à altura do seu prestígio.

quarta-feira, abril 26, 2017

Poesia Alegre


Intervenção feita no dia 25 de abril, nos jardins da residência oficial do primeiro-ministro, a convite de Manuel Alegre e de António Costa, na passagem de meio século sobre a publicação do livro de poesia "O Canto e as Armas".

Caro António Costa
Caro Manuel Alegre

E agora, apetecia-me dizer: "Amigos, companheiros e camaradas". Porque era assim que aquela, que esta voz nos surgia pela noite dentro. Mas já lá vamos.

Há dias, na iminência desta ocasião, perguntei a mim mesmo quando terei ouvido falar, pela primeira vez, em Manuel Alegre. Foi num aparelho de rádio lá de casa, em Vila Real, que o meu pai, uma noite, numa espécie de iniciação, assegurando-se que as portadas das janelas estavam bem fechadas, partilhou comigo, pela primeira vez, a escuta da Rádio Voz da Liberdade. Imagino que, nessa noite da minha adolescência, eu deva ter crescido um pouco com essa partilha de cumplicidade, por parte de alguém com quem, anos antes, tinha ido ver Humberto Delgado, na sua passagem pela capital transmontana.

A voz que ouvíamos nessas noites, mas que então não sabíamos ter o nome de Manuel Alegre, tinha uma envolvência convocatória de uma natureza que eu nunca experimentara até então. Para o meu pai, mais do que a proclamação anti-colonial, sobre a qual tinha sentimentos divididos, como ao tempo acontecia com muita gente que se sentia próxima da oposição democrática, era na denúncia aberta do ditador, das patifarias do regime e na revelação daquilo que a imprensa nos escondia que residia toda a virtualidade daquela mensagem.

Com o tempo, já não sei bem como e quando, coloquei o nome de Manuel Alegre naquela voz que nos chegava da "rue Auber, nº 13, Alger, Argélia" - endereço que, no fim da emissão, nos era recomendado que usássemos para eventual correspondência. Nunca ousei escrever para lá, mas, há uns anos, fui a Argel e passei pela porta. Como curiosidade, a rua já não se chama Auber, chama-se Mohamed Chabani. Sem saudades mas com alguma nostalgia, lembrei-me então dessas noites em que colávamos o ouvido ao "Telefunken", embalados pelo "Vozes ao alto" de Lopes Graça.

Passou algum tempo até uma outra noite, também em Vila Real, em que um amigo, então sacerdote católico, me leu pela primeira vez alguns poemas de Manuel Alegre, a tal voz que vinha da Argélia. Esse amigo chamava-se António Cabral e era, ele próprio, poeta.

Fomos muitos, a partir de então, os que conheceram, partilharam e cantaram a poesia de Manuel Alegre - da "Praça da Canção" a "O Canto e as Armas". Para nós, para a minha geração, aquela poesia era muito mais do que literatura. Era a expressão escrita da revolta, era a trova que alimentava a luta anti-fascista, era a vocalização rimada que educou muito dos que vieram a fazer o 25 de abril.

Foi nessa poesia empolgante e empolgada, adjetivada de vigor revolucionário, saudavelmente subversiva face ao estado de coisas que se vivia no país, que então assentávamos, com ou sem música, a nossa esperança na chegada do dia em que por aí viria essa coisa, dificil de obter mas afinal muito agradável de viver, que é a liberdade.

Há 43 anos, o país viu chegar Manuel Alegre, olhou pela primeira vez a sua cara. Lembro-me de o ver com Fernando Piteira Santos a anunciar a criação dos Centros Populares 25 de abril. Uma estrutura efémera, como efémeras foram muitas das iniciativas que brotaram do entusiasmo da Revolução. Para trás tinha ficado Argel e o complexo microcosmos de tentativa de coordenação da luta contra o Estado Novo, aí criado nos anos 60.

Depois, Manuel Alegre, com a naturalidade dos lutadores, enveredou pela política, pelo PS. Foi algumas vezes polémico, divisivo, nunca acomodado, com voz própria. Teve as suas vitórias e as suas derrotas - confortáveis vitórias e honrosas derrotas - porque é essa a essência do regime democrático e é esse o destino de quem se propõe servi-lo. Passaram todos estes anos. Manuel Alegre é hoje, no país cuja liberdade a sua poesia ajudou a construir, um dos rostos mais simbólicos da nossa democracia. Neste primeiro 25 de abril que passamos sem Mário Soares, Manuel Alegre permanece, para todos nós, como um expoente da Revolução e da liberdade que ela nos trouxe.

Mas hoje estamos aqui também - ou essencialmente - para falar e ouvir poesia. E, em matéria de poesia, deixem-me que lhes diga, este é um país feliz. Foi uma excelente ideia, meu caro António Costa, ter um poeta na Cultura. É um "luxo" que só prestigia Portugal.

O livro que hoje aqui evocamos - "O Canto e as Armas", ao lado da "Praça da Canção" - foi uma bela ferramenta literária para a Revolução de abril. Mas eu imagino que Manuel Alegre, nos dias de hoje, olhe para esses dois livros com um sentimento ambivalente. Por um lado, claro que não os renega, não apenas por serem as suas primeiras obras, mas também pelo facto de terem sido aquelas que o fixaram no nosso imaginário. Mas, do mesmo modo, posso crer que, em algum momento, tenha sentido a tentação de "ver-se livre" deles. Porquê? Porque, com toda a certeza, tem o justo sentimento de que muito daquilo que, a partir de então, publicou é, no plano puramente literário, bem superior a essa histórica produção "de juventude".

A vida, contudo, pode ser algo injusta: não conheço quem saiba de cor algum dos seus belos poemas mais recentes. E, no entanto, muitos de nós - a começar por mim - somos capazes de declamar (mal ou bem, logo se verá) os mais antigos dos seus poemas, porventura menos valiosos como literatura, mas seguramente bem mais importantes para a nossa memória afetiva.

Ainda há dias, ao reler com atenção "O Canto e as Armas", me comovi com alguma dessa trova. É que, ao lê-la, eu estava a recordar-me, também um pouco, desses "bons amargos tempos", como uma amiga minha os qualificou ainda esta manhã, em que eu tinha todo o futuro à minha espera. O futuro, esse futuro, aqui está, agora, no Portugal democrático em que vivemos, conquistado pelas armas, há 43 anos, habitado pela palavra dos poetas que souberam fazer rimar abril com liberdade.

Muito obrigado, Manuel Alegre.

25 de abril sempre!

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