sexta-feira, janeiro 06, 2017

Lições aprendidas


Há anos, mantive longas horas de conversa com um diplomata espanhol, sobre as relações entre os dois países. Confrontámos visões e, como seria expectável, detetámos imensas diferenças.

Ele revelou-me que o nosso país, por muito tempo, após a estabilização do franquismo, era quase um “não assunto” para a Espanha contemporânea. Portugal estava ali, ao lado, mas a sua relevância era muito limitada para um país que lançava a sua mirada externa essencial por cima dos Pirinéus.

Essa conversa teve lugar ainda antes da entrada dos dois Estados nas instituições europeias, mas já depois da democracia estar instalada na península. Esse era um período em que, no nosso lado, se tinha assistido à atenuação de muitas das clássicas desconfianças históricas face à natureza do poder em Madrid. Mas não escondi a esse amigo que, não obstante essa crescente leitura benévola, se mantinha, em setores portugueses – politicos, diplomáticos e económicos - alguma reserva sobre a íntima atitude da Espanha face a Portugal.

Com a passagem dos anos, tive o ensejo de trabalhar mais de perto alguns dos terrenos residuais da nossa tensão bilateral: os comandos militares da NATO, a regulação dos rios comuns, os conflitos da pesca nos limites fronteiriços, o tratamento administrativo dado às empresas portuguesas, as divergências sobre as acessibilidades rodoviárias e ferroviárias, as diferentes posições nas questões institucionais e de gestão de poder dentro da União Europeia, etc.

Das “lições aprendidas”, expressão utilizada em certos meios a propósito do conhecimento que se retira da experiência acumulada, e em jeito de caricatura, eu diria que a Espanha está ao lado de Portugal, nomeadamente no quadro europeu, quando os nossos interesses nacionais lhe são indiferentes ou se somam aos seus, ou quando o eventual reforço da posição portuguesa pode servir a sua leitura “ibérica” de poder.

Mas Madrid assume, com frequente e infeliz facilidade, em ciclos politicos contrastantes, alguma arrogância face ao vizinho peninsular, implicitamente explorando a sua fraqueza relativa, quando interesses seus despontam como minimamente evidentes. Só com muita dificuldade se vê, nesses casos, a Espanha fazer um mínimo esforço de acomodação.

Há uma coisa que me parece óbvia: com este seu regular comportamento, a Espanha revela alguma imaturidade para afirmar um estatuto de país “grande”, por raramente conseguir assumir uma flexibilidade estratégica em face de dossiês bilaterais complexos. E não só com Portugal.

Um dia, escrevi no “El País” um artigo sobre as relações peninsulares, que intitulei “Uma cultura de vizinhança”, que então parecia estarmos em vias de criar, assente na progressiva geração de uma confiança mútua. Sinto que essa confiança continua a existir, mas, tal como nas relações entre as pessoas, é algo que, quando se erode custa bastante a recuperar. Estou a falar de Almaraz? Estou.

quinta-feira, janeiro 05, 2017

Brexit news

Ao longo de quase quatro décadas como diplomata, tendo passado alguns anos em Londres e alguns mais a discutir à mesa negocial com os britânicos, ganhei um profundo respeito técnico pela capacidade diplomática do Reino Unido. Por muito indefensável que as suas posições fossem, por muito embaraçados que os funcionários britânicos parecessem ao assumi-las, a verdade é que a máquina do "Foreign and Commonweath Office" (as mais das vezes, dizemos simplesmente "Foreign Office" e o nome completo do MNE britânico tem algo de politicamente relevante) me deu sempre a ideia de interiorizar uma linha de orientação clara, transmitida e cumprida de alto-a-baixo de toda a sua estrutura de funcionários.

Quem passou por Bruxelas recorda-se de discussões intermináveis, com os britânicos frequentemente isolados, mas a serem teimosos até ao fim, às vezes por uma vantagem negocial residual, na maioria dos casos explorando a regra da unanimidade para baterem o pé - podendo fazê-lo graças ao peso político que o seu país tinha no contexto comunitário. Mas, sempre, com excelente conhecimento dos dossiês, em "trade-off" permanente entre vários assuntos, roçando às vezes um insuportável cinismo. A minha admiração profissional pela diplomacia londrina não se estende, necessariamente, a uma automática leitura positiva sobre a legitimidade daquilo que defendem como seus interesses. Nem sequer à lisura de meios utilizada para os defender.

Vem isto a propósito da demissão do embaixador britânico junto da União Europeia, ocorrida há dois dias. Talvez mais importante do que o facto em si é a circunstância de ter ficado claro que o gesto se deve ao reconhecimento de que um excessivo voluntarismo político, que não tem em devida conta a realidade no terreno negocial, pode estar a conduzir o Reino Unido a um sério impasse no futuro do seu processo de abandono das instituições de Bruxelas. Dir-se-á que isso é um problema deles e que nós, do lado de cá da Mancha, até nos devemos congratular com estes dissídios intrabritânicos.

Não estou nada de acordo. Se a futura separação do Reino Unido com a Europa vier a tornar-se litigiosa, a probabilidade da questão vir a correr mal para os dois lados é imensa. Em termos negociais, a experiência mostrou-me que ter um dos lados fragilizado internamente está longe de ser uma vantagem, cumula em geral radicalismos e reduz fortemente a capacidade de compromissos e recuos.

quarta-feira, janeiro 04, 2017

"Digo eu, não sei..."


A convite do seu diretor, José Carlos de Vasconcelos, ocupo hoje a última página do "JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias" com um diário a que dei o título de "Digo eu, não sei..."

Os leitores deste blogue e da minha página de Facebook não devem estranhar se por lá encontrarem, eventualmente noutras formas, retalhos de coisas já lidas. Cada suporte tem leitores diferentes e a imaginação tem limites.

De toda a forma, quem tiver curiosidade, pode ler o texto aqui.

"Olhar o Mundo" ou não?

Desde há vários anos que a RTP mantém no ar o programa "Olhar o Mundo", um espaço semanal de informação dedicado a temas internacionais, sobre cuja qualidade não tenho - e julgo que também ninguém tem - a menor das dúvidas. Cada programa tem um convidado, que dialoga durante cerca de 45 minutos com o apresentador, que nos últimos anos é o jornalista António Mateus. Há convidados esporádicos e um grupo de "residentes", de que tenho vindo a fazer parte. Em todos os casos, trata-se de pessoas ligadas às relações internacionais, por via profissional ou académica.

O programa aborda, semanalmente, dois ou três grandes temas da atualidade internacional, fazendo uma retrospetiva sobre os principais acontecimentos ocorridos semana anterior e tentando olhar, em prospetiva, o futuro imediato, nas várias geografias. Nenhum dos convidados recebe - nem nunca pediu - a menor retribuição financeira por aquela tarefa, a qual, obviamente, ocupa algumas horas de trabalho, a montante da gravação do programa, que também obriga a uma deslocação aos estúdios da RTP, que faz perder tempo e envolve custos pessoais. 

O prazer de poder contribuir para uma divulgação das temáticas internacionais em Portugal é, contudo, a retribuição desejada. Falo por mim. Duvido, aliás, que em qualquer outra parte do mundo seja possível fazer um programa "pro bono" desta natureza. E aposto em como quem trata dos mesmos temas noutros canais portugueses é pago por isso. No fundo, trata-se de uma espécie de serviço público prestado a uma televisão que se afirma pública. Pelo tipo de "peças" utilizadas no "Olhar o Mundo" sou também levado à conclusão - mas nunca perguntei - de que este deve ser um dos mais baratos programas produzidos pela RTP. 

Serve este intróito para sublinhar a minha estranheza pelo facto do "Olhar o Mundo" andar sempre "em bolandas" pela programação da RTP, exibido pelas madrugadas, sem ser objeto de uma promoção conveniente, sem projeção no site da estação, sem uma indicação das horas de exibição, substituído sem aviso por um qualquer jogo de uma qualquer ignota modalidade desportiva, onde alguém tenha vislumbrado uma réstea de duvidoso "serviço público". Agora, ao que me chega, o "Olhar o Mundo" até da RTP2 vai sair.

Uma nota curiosa: um elevado responsável pela RTP dizia-me, há escassos dias, que a estação necessitava de tratar melhor a informação internacional...

O "Olhar o Mundo" é, manifestamente, um programa mal-amado no seio da RTP. Esta é a minha opinião pessoal, não tendo perguntado aos meus colegas ou ao António Mateus qual é a deles. Será mesmo assim? No fundo, o objetivo derradeiro é vir a acabar com o programa? Se assim é, é melhor assumi-lo, com frontalidade, em lugar de brincarem com o trabalho das pessoas.

Os protestantes


Na tarde de ontem, passei por um templo (por que não é igreja?) protestante, ao lado da (essa sim, conhecida como tal) igreja da Misericórdia, em Vila Real. E recordei-me do tempo em que, numa rua da cidade onde vivi nos anos 50 e 60 (do século passado, como agora se diz), foi criado um espaço (repito, não sei se se chama igreja) "dos protestantes". Creio que o primeiro na cidade.

A minha família era católica, mas imagino que o facto de eu ser, ao que creio, o único (repito, o único) miúdo da minha geração vila-realense que não fez primeira comunhão deva indiciar que a pressão para a prática religiosa no seu seio não deva ter sido muito forte. Corria uma tese familiar segundo a qual terei ficado doente no ano em que todos os meus colegas de escola primária passaram por essa fase; outra, menos verosímil, apregoava que eu tinha sido expulso da "doutrina" da Maria Vilar, por ter levantado a saia ou puxado um banco, fazendo-a cair, a uma menina. Seja como for, assim se formou um bom ateu. Ateu mesmo, nada agnóstico ou minimamente dubidativo sobre existências celestiais e questões correlativas.

Vem isto a propósito desses protestantes na minha rua. Lembro-me de, à época, ter suscitado perguntas na família sobre quem era "aquela gente" que, ao princípio da noite, com um ar que me parecia algo comprometido, se reunia num baixo alugado na casa do Rodriguinho Araújo, para fazer não sabia eu bem o quê. E tenho ideia do meu pai me ter explicado, no seu eterno respeito agnóstico pelas coisas religiosas (o meu pai usava chapéu e sempre o tirava quando passava frente a uma igreja ou cemitério), que "aquela gente" eram pessoas que seguiam ensinamentos religiosos um pouco diferentes daqueles que eram cultivados nas igrejas onde as pessoas da nossa família iam. Não me recordo de ouvir o menor juízo valorativo sobre qualquer dos credos.

Tenho bem presente que então criei um respeito muito grande por essas pessoas e, nesse tempo de quase unanimidade católica, via com alguma admiração quantos se arriscavam ao olhar desdenhoso (porque era isso mesmo que eu detetava) dos vizinhos e à quase clandestinidade do exercício a que se dedicavam, que rapidamente me apercebi ser fortemente combatido pela igreja católica. Com os anos, a própria designação de "protestantes " - os que protestavam, atitude que identificava a coragem - foi-me seduzindo, talvez por ligá-la a uma contestação do "statu quo". Verdade seja, só anos depois cheguei a Martinho Lutero.

terça-feira, janeiro 03, 2017

O prélio

Hoje, ao final da tarde, apetecia-me estar em Moreira de Cónegos. O Porto disputa por lá, com o Moreirense, uma taça qualquer. Gostava de lá estar, perto do campo, bem sentado e cómodo, com uma bebida na mão, a regalar-me, ao final do dia. E, claro, a deliciar-me com a prestação da equipa do Pedro, para mim uma das melhores do país, a qual, ao longo dos anos, me tem oferecido jornadas de grandes alegrias. Trata-se de um conjunto muito articulado, com opções diversas, belas entradas rápidas, uma elevada capacidade de concretização ao longo de todo o tempo, que desarma muito bem pela sua criatividade e pela constância na "performance". Hoje, apetecia-me ir jantar ao restaurante São Gião, do Pedro Nunes, em Moreira de Cónegos, ao lado do estádio do Moreirense. Mas não dá!

(e não é que o Moreirense ganhou ao Porto?)

segunda-feira, janeiro 02, 2017

Sonhar é fácil


A tradição manda que invistamos esperança no ano que agora se inicia. Mas há que convir que será necessária uma boa dose de otimismo para que possamos, com um mínimo de realismo, colocar todas as fichas de confiança no número 2017. Tentar, porém, não custa.

Vamos imaginar que a presidência de Donald Trump traz um surto de estímulo à economia americana sem, em paralelo, provocar uma guerra comercial internacional, com recuos protecionistas e a indução de sérias tensões políticas com a China. 

Nesse cenário, seria simpático poder vir a concluir que Israel não se sentirá com as “costas quentes” para aventuras regionais estimuladas pelos EUA e que, afinal, são destituídas de fundamento as preocupações quanto a uma eventual regressão no laborioso entendimento obtido entre os países ocidentais e o Irão, no tocante à questão nuclear. 

Imaginemos também que, entre Moscovo e Washington, se estabelece um “gentlemen’s agreement” que coloque um ponto final às ameaças, reais ou potenciais, à soberania dos Estados membros da NATO sitiados mais a Leste, talvez ligado a um acordo operacional, ou um simples “modus vivendi”, que permita uma qualquer estabilização na situação síria, capaz de neutralizar o Estado Islâmico e as suas decorrências em termos de refugiados e disseminação das metástases terroristas. E que a Turquia se retrai de ser um “troublemaker” mais na região, num acordo tático com a Rússia.

Confiemos ainda em que as bravatas de Trump sobre o reforço da capacidade nuclear americana e as ameaças à estabilidade do Tratado de Não-Proliferação não passaram disso mesmo. E, de igual modo, firmemos esperanças em que as proclamações contra o Acordo do Clima acabarão por se atenuar e que os EUA assumem uma atitude responsável em matéria de política energética.

Na Europa, talvez os efeitos da política anti-deflacionista do BCE possam, finalmente, ultrapassar os resultados meramente estabilizadores que têm obtido, apontando para efeitos concretos no crescimento e na criação de postos de trabalho, atenuando assim as tensões sociais e diminuindo a propensão para a exploração populista do mal-estar que atravessa certos setores. 

Quem sabe se, nas eleições presidenciais francesas, a surpresa não será um resultado menos espetacular do que o previsto para Marine Le Pen, com a eleição de um presidente moderado. E que interessante seria se, na Alemanha, o resultado das eleições legislativas apontasse para uma rejeição das linhas radicais, arrastadas por um paralelo insucesso na Holanda e pela reversão, nas eleições italianas, da tendência para que o recente referendo apontava. 

A isso se somaria, nesse cenário ideal, um recuo sensível no tropismo autoritário que ameaça a Hungria e a Polónia. Como cereja em cima deste bolo de harmonia tendencial, as negociações do Brexit apontariam, afinal, para inesperados pontos de compromisso com as instituições de Bruxelas, com efeitos sensíveis numa sustentada acalmia dos mercados. 

E Portugal, neste cenário positivo? António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa continuariam a representar um “duo dinâmico”, com o presidente e o primeiro-ministro a conseguirem desenhar, sem tensões, um equilíbrio inter-institucional sereno e sem surpresas. Marcelo, forte da sua popularidade, talvez venha a conseguir estimular uma propensão para acordos de regime em matéria de Justiça e de estabilidade fiscal, aproveitando uma eventual  fragilidade dos parceiros da ala mais à esquerda da “geringonça”, forçadamente serenos pelo temor da possibilidade dos socialistas poderem obter, por si sós, uma maioria absoluta, em caso de eleições – a acreditar nas sondagens que já apontam nesse sentido. A direita, para quem as autárquicas podem não correr tão bem como tinham previsto, não estaria assim livre de entrar no questionamento de liderança do seu principal partido. E Costa, cuja habilidade é um dom inestimável, poderia resistir aos cantos de sereia de quantos, ao seu lado, anseiam por um teste eleitoral legitimador.

Uma estabilidade induzida por um surto de nova confiança americana, com impactos de acalmia no processo institucional europeu, desaparecidas as núvens francesas, alemãs e italianas, com o referidos estímulos do BCE a funcionarem, criaria um ambiente propício ao prolongamento do processo de “desdramatização” da situação financeira portuguesa, se bem que o peso insuportável da dívida não desapareça por milagre. 

Muitos lerão o que escrevi como um retrato de uma espécie de “terra do nunca”. Talvez tenham razão. Vou mais longe: o mais provável é que venham a ter razão, que nada venha a passar-se como acima referi. Mas sonhar é fácil, não é? 

(Artigo que hoje publico no "Jornal de Negócios")

domingo, janeiro 01, 2017

A minha ONU



Responder ao desafio que me foi lançado pelo “Diário de Notícias”E para falar da “minha ONU” obriga-me a contextualizar Portugal na organização, porquanto a minha relação com as Nações Unidas deriva, essencialmente, dessa leitura política.

Por razões ligadas aos equilíbrios políticos da Guerra Fria, Portugal apenas em 1955 foi admitido nas Nações Unidas, isto é, cerca de dez anos após a criação da organização. Aquilo que essa admissão possa ter tido de sucesso diplomático rapidamente se transformou num pesadelo para o governo de Lisboa, com a ONU a converter-se num palco privilegiado para os ataques à política colonial portuguesa. O nosso país entrou numa crescente confrontação com diversas instâncias da organização, que levaria mesmo, mais tarde, à sua marginalização em algumas das suas agências especializadas.

A ditadura portuguesa conviveu sempre mal com o mundo multilateral, tido como pouco conforme com os jogos de sombras do bilateralismo com que o rendilhado da diplomacia salazarista tinha conseguido passar por entre as pingasna 2ª guerra mundial, e que, aliás, viria a ser a chave para a sua sobrevivência no final desta. O facto da ONU ter passado a incorporar uma imensidão de novos Estados, saídos das descolonizações, e naturalmente solidários com os territórios que ainda lutavam pela sua autodeterminação, só agravava a desconfiança que esse areópago provocava em S. Bento.

Na minha juventude, as Nações Unidas eram apresentadas como um "inimigo", uma instância em que Portugal era sistematicamente atacado. Com uma comunicação social censurada, com o questionamento da guerra colonial visto como traição, a imagem da ONU que a ditadura expunha tinha um tom sempre negativo, marcado pela ação no seu seio dos países do "Terceiro Mundo”, que apoiavam os "terroristas" que atacavam as nossas "possessões", a ser diariamente diabolizada. O facto de frequentemente muitos países ocidentais se “aliarem” na ONU ao mundo comunista no apoio os movimentos independentistas era vendido como um contrasenso: só Portugal defendia o Ocidente, mesmo contra a vontade deste...

O 25 de abril mudou fortemente a perceção de Portugal no plano externo, mas a imagem das Nações Unidas, das suas virtualidades, do fantástico trabalho dos seus diferentes órgãos e agências, ficou ainda longe de ser reconhecido entre nós. Em inícios de 1978, fiz parte de um grupo que criou em Lisboa uma estrutura tendente à promoção da ONU em Portugal. Entre os fundadores da Associação para a Cooperação com as Nações Unidas em Portugal (ACNUP) contavam-se então nomes como D. José Policarpo, Rui Machete, António Costa Lobo, Carlos Eurico da Costa e João Palmeiro.

Quando, muitos anos mais tarde, representei Portugal nas Nações Unidas, o panorama era já bem diferente. Em Genebra e em Nova Iorque, a nossa diplomacia firmara o nome do nosso país no quadro da organização, com duas bem sucedidas presenças no Conselho de Segurança, qualificados quadros nacionais a serem reconhecidos no seu âmbito e, no geral, uma postura coerente e assente num corpus ético, que o caso de Timor-Leste ajudara a consagrar.

Portugal é, nos dias de hoje, visto na ONU como um honest broker”, um país que cumpre o que promete - e a confiança e a previsibilidade são os valores mais importantes na vida internacional. Se pensarmos que muitas dezenas de Estados têm as Nações Unidas como o centro fulcral da sua atividade diplomática, talvez percebamos melhor a relativa “facilidade” com que o nosso país consegue, regularmente, alguns importantes sucessos diplomáticos à escala global.

(Artigo escrito para o número especial do "Noticias Magazine", hoje distribuído com o "Diário de Notícias", a propósito da entrada em funções de António Guterres como secretário-geral da ONU)

sábado, dezembro 31, 2016

Passagem de ano


Perdi-o de vista há mais de 40 anos. Era meu colega na Caixa Geral de Depósitos, no Calhariz, em Lisboa, quando para ali fui trabalhar em 1971. Embora mais velho, mais "graduado" na profissão, tornámo-nos próximos, desde muito cedo.

Era um homem um tanto abrutalhado, tinha sido condutor da Carris e, da natureza da profissão, ficara-lhe uma atitude política que rimava com a minha. Almoçávamos muitas vezes em grupo no antigo 1° de maio, na Casa da Índia ou, mais frequentemente, no Martins, uma tasca a caminho de Santa Catarina. Tinha o discurso um pouco "ajavardado", contava anedotas "pesadas", saiam-lhe graçolas fortes, com efeito amplificado pela sua voz bem sonora. Mas, no fundo, era um tipo excelente.

No dia 31 de dezembro desse mesmo ano de 1971 (45 anos hoje, caramba!), à hora do almoço na tasca do Martins, num grupo de pessoal "dos Títulos", veio à conversa a passagem de ano dessa mesma noite. O Murta, um outro magnífico colega algarvio, senhor de um humor fino e sentido de oportunidade, virou-se para mim e disse: "Você sabe como é que aqui este nosso colega, desde há muito, faz as passagens de ano?" Eu estava ali há pouco tempo, não fazia a mais leve ideia, mas a gargalhada coletiva do grupo fez-me perceber que estava a perder alguma coisa. E o Murta prosseguiu: "Este homem não gasta champanhe no réveillon!" Eu estava cada vez mais baralhado. O tal colega sorria, deliciado com a minha crescente curiosidade. "Ó homem, conte aqui ao Seixas como é que você passa os fins de ano!", rematou o Murta.

E ele contou. Não vou repetir aqui as palavras utilizadas pelo colega, porque o blogue não tem uma bola vermelha para alertar os mais sensíveis. Só revelo que o hábito desse meu amigo era ir para a cama um quarto de hora antes da passagem de ano. E nunca ia sozinho...

Cada um passa o "reveillon" como mais gosta, não é?

Outro Portugal


Estive ontem numa casa de aldeia, propriedade de uns amigos, perto de Vila Real. Enquanto bebia um excelente vinho do Porto com muita idade, fui passeando os olhos pelas estantes. Naquela casa viveu uma figura local já há muito desaparecida, que eu conhecia apenas de vista, das ruas e dos cafés, nas suas visitas à cidade. Nunca falei com essa pessoa, nem nunca me passou pela cabeça saber dos interesses desse homem. Ontem, em breves minutos, finalmente, "conheci-o".

Olhar uma biblioteca "lida" qualifica bem o seu possuidor. (As bibliotecas "a metro" também "qualificam", valha a verdade). Estava por ali quase todo o Eça, algum Camilo essencial, coisas dispersas de Torga. Mas também Manuel Mendes, um Redol pouco comum e certos dicionários que a mim me "faltam". Havia coisas muito interessantes sobre a República, uma bela edição do Dom Quixote (tenho uma idêntica, mas em estado físico deplorável), enciclopédias básicas e outras sofisticadas, bem como certa ficção estrangeira que era muito popular dos anos 50 a 70. Eram largas centenas de livros, repito, lidos, escolhidos por alguém que tinha evidente critério e saber.

O que aprendi naqueles minutos é que tinha vivido, naquela aldeia e naquela casa, um homem bastante culto, atento ao mundo, que seguramente aproveitava as suas saídas para adquirir o que ia considerando essencial para se alimentar intelectualmente. Imagino mesmo que possa ter sido bem feliz assim.

Julgo conhecer algum desse Portugal, sei de gente parecida, normalmente pessoas com algumas posses e não menos interesses culturais, que compensavam o isolamento desses seus locais de vida, por que haviam optado por alguma herança ou nostalgia telúrica, com a manutenção de uma janela de abertura ao mundo por via dos livros. Viviam em aldeias ou vilórias ou cidades pequenas de província, tinham com certeza tertúlias de café ou amigos com quem "batiam a bola", muitas vezes sobre política, outras sobre as coisas do mundo. Às vezes, até escrevinhavam pelos jornais da província, alguns arriscavam mesmo a sua literatura, alguma versalhada.

As coisas mudaram muito, entretanto. A internet e a televisão empreguiçaram o olhar de muitos, a quem o uso dos livros (e até da imprensa escrita) já diz hoje muito pouco. Não sacralizo o papel, embora eu não o dispense, mas percebo que hoje se pode ter acesso a muito boa (e má) informação praticamente sem recurso a ele. O mundo cultural é incomparavelmente melhor nos dias que correm, as nossas fontes de conhecimento são agora imensas, podemos usufruir de um mar de novidades, a que a facilidade de uso de línguas estrangeiras ajuda a aceder instantaneamente. No passado é que era bom? Nem pensar! Só os néscios melancólicos e sem imaginação podem ver as coisas assim.

Porém, para mim, é sempre muito agradável poder revisitar esse mundo e esse tempo que já lá vai, um Portugal de samarra e botas pesadas, de leituras e conversas à lareira, à volta de um livro ou de um jornal, com um copo e um salpicão caseiro a ajudar a dar felicidade aos dias e às noites em família. Outro Portugal, mas igualmente excelente. Que sorte que eu tive de poder viver ambos! 

Bom Ano Novo!


sexta-feira, dezembro 30, 2016

Continuação!


Pensando bem, só há quatro tipos de portugueses, quando se trata de analisar o comportamento deste presidente da República.

O primeiro adora o modo como Marcelo exerce a sua função, acha que a sua quase ubiquidade é uma benesse para o país, tem uma leitura extremamente positiva sobre a sua compulsão para o comentário público, do Orçamento à morte de George Michael. É o mesmo português que, depois de uma década de cera, sente que tem, finalmente, um presidente que está próximo de si, com quem provavelmente já tirou uma “marselfie”, e que, em meia dúzia de meses, ajudou a descrispar o país e deu ao governo todo o espaço para executar a sua política, sem que Costa tenha o menor motivo de queixa, antes pelo contrário.

Há, contudo, outro português que, pelas esquinas, vai encontrando cada vez mais gente que pensa como ele. É o que, fazendo também uma avaliação favorável do mandato presidencial, acha que o presidente pode estar a ir longe demais na banalização da sua figura, que a vulgarização da sua presença e palavra o pode fazer perder espaço para uma intervenção que, um dia, requeira uma maior distância de tudo e de todos, a começar do próprio governo. Para este cidadão, alguma “gravitas” mais seria recomendável, num país como Portugal, onde o saber medir as distâncias é uma qualidade longe de generalizada.

O terceiro português é o “geringonço” militante, a quem Marcelo tem “dado muito jeito”, mas que começa a sentir alguma urticária ao ver o presidente envolver-se em terrenos que ele entende serem do domínio exclusivo do governo. O “geringonço” ficou algo incomodado com a cena da Cornucópia e interpreta a hiperatividade do presidente como um voluntarismo excessivo, um indisfarçável tropismo presidencialista, que pode vir a colocar em causa os equilíbrios de poder com o governo.

E existe, finalmente, o “viúvo”, o que “já perdeu a paciência para o Marcelo”. Detesta a subliminar postura anti-Cavaco do novo presidente e recorda-se bem do dia em que viu Marcelo entrar de rompante num congresso do PSD e "roubar o show" a Passos Coelho. O “viúvo” (coitado!) não teve outra solução senão votar Marcelo, mas cedo acordou do sonho frustrado de o ver puxar o tapete à “geringonça”. Agora acha que começa a chegar o tempo de denunciar o que lhes parece ser um evidente "fazer da cama" a Passos Coelho, a partir de Belém, com ou sem o almocito de ontem. Depois da consoada, vendo-se sem nenhuma prenda política no par de botas em que se meteu, já se deu conta que este ano não vai ter Boas Festas e de que está muito longe de poder vir a ter um Feliz Ano Novo. A este português, ao “viúvo”, apetece-me dizer o que, lá por Vila Real, lançamos àqueles com quem nos cruzamos na rua, entre a missa do galo e os Reis: "Continuação"…

quinta-feira, dezembro 29, 2016

Carneiros


Acho muito estranho que nesta polémica sobre a "feira de gado" ninguém tenha estranhado que alguns "profissionais" de imprensa convidados por um partido para um cocktail de Natal se tenham permitido gravar à sucapa comentários informais feito entre os políticos presentes. Já vale tudo? Temos a certeza (comuns mortais ou ministros) de que todos os nossos ditos ou graças proferidos em privado são passíveis de serem reproduzidos, sem escândalo, em público? Ou a privacidade é coisa que já não existe para os "media"? E também é legítimo ouvir chamadas telefónicas ou conversas de alcova? O "voyeurisme" suplanta toda a ética profissional? Ou é o alibi medíocre e cobarde de "interesse público"?

Guantanamo


Obama aparece hoje como santificado, ao lado daquilo que Trump representa. De facto, não há como compará-los.

Obama foi eleito há quase uma década com a promessa de encerrar Guantanamo, uma prisão na ilha de Cuba (e que não é só mais uma) onde já então jaziam - e ali ficaram também por toda essa quase década de Obama, não o esqueçamos - centenas de detidos (hoje ainda são cerca de 80), acorrentados, em condições de humilhação infra-humana, sem nunca terem sido objeto de qualquer condenação, sem possibilidade de acesso aos mais elementares direitos da Justiça, num limbo judicial vergonhoso, desrespeitador de todas as regras dos Direitos Humanos e do Estado de direito.

Obama vai deixar em Guantanamo muitos prisioneiros que os EUA, por falta de provas, não conseguiram nunca condenar, mas que por ali continuarão sob o peso das suspeitas insubstantivadas, que já foram sujeitos a desumanas torturas, que Obama suspendeu mas que Trump já disse que tinha intenção de reintroduzir. 

Que acontecerá aos prisioneiros de Guantanamo, agora com Trump a chegar à Casa Branca? Ninguém fala disto? Não é popular, por serem muçulmanos? E Obama, dormirá bem?

terça-feira, dezembro 27, 2016

O Tião


Naquelas revisões de fotografias antigas que os encontros de família estimulam, no dia de Natal deste ano dei com uma imagem de mim a falar, em frente à Gomes, com um antigo colega de escola primária, o Tião.

O Tião, Sebastião de seu nome, um pouco mais velho do que eu. Foi jogador do Sport Clube de Vila Real, atuando na ala esquerda. Um dia, o Sporting veio jogar à cidade, não sei se no quadro do negócio da ida do Amaral para Alvalade, numa tarde em que me recordo que o campo do Calvário rebentava pelas costuras. O Tião fez um jogo fantástico, deixando de rastos o Pedro Gomes, lateral-direito leonino. Várias vezes falei com ele sobre essa prestação, que era uma marca de merecida glória pessoal.

Nesse tempo em que o futebol, na província, não dava para viver sem outro emprego, o Tião era funcionário dos Serviços Municipalizados - um pouso profissional muito comum para os jogadores do Sport Clube, uma ajuda indireta da Câmara Municipal ao clube. O Tião já morreu, como constatei, há dois ou três anos, ao abrir a secção de necrologia de "A Voz de Trás-os-Montes", que semanalmente me reporta a cidade de Vila Real que vou perdendo.

Pouco tempo decorrido depois de ter lido a notícia da morte do Tião, na Feira do Livro de Lisboa, numa barraca para editores independentes, vi Pedro Gomes a assinar a sua biografia. Ao seu lado, de pé, um fulano explicava os méritos desportivos do antigo jogador. Fingia que falava para outro amigo que estava perto, mas, na realidade, expressava-se em voz excessivamente alta para ser ouvido pela plateia. E, a certo passo, saiu-lhe: "Nunca vi um extremo esquerdo ultrapassar o Pedro Gomes, que desarmava sempre quem lhe aparecesse pela frente". Não era verdade, claro, e pareceu-me que o próprio Pedro Gomes estava algo constrangido com o exagero gongórico do espontâneo.

Tive então uma tentação não concretizada, que era lançar-lhe à cara: "Ai não?! E o Tião, lá em Vila Real?" Mas pensei: o homem não deve saber nada de futebol, às tantas nem sequer ouviu falar do Tião...

A aletria da consoada


O menu da consoada deste Natal não foi muito diferente do que costuma ser. O bacalhau, talvez por virtude de um truque aprendido quase no próprio dia, estava excelente, lascoso e não afarinhado, como às vezes sucede. Como é de regra, o polvo estava melhor no dia seguinte, na "roupa velha". Era tenro e deu origem às graças de que "o polvo é quem mais ordena" ou, a recordar Pinheiro de Azevedo, de que "o polvo é sereno". A reserva da Quinta do Castro estava no ponto, embora o ano nem sequer fosse o ideal. Ah! E o perú do dia de Natal estava saboroso, com pele crestada, se bem que, para o ano, e para o meu gosto, umas batatas alouradas devam fazer parte do acompanhamento, como mandam as NEP.

Mas isto foi um mero intróito para poder falar dos doces. (Uma nota, em parêntesis, para o bolo-rei da Gomes, plenamente à altura da sua história). Os sonhos marcharam sem grande entusiasmo, porque, de há muito, são os mal-amados da casa e só se apresentam por rotina. Já as rabanadas, o "pain perdu" lusitano, tiveram larga procura, com um molho a preceito. Não me refiz ainda da falta da sopa dourada, que a minha mãe fazia como ninguém. E como, desde há uns anos, deixou de estar na mesa, por razões que não são para aqui chamadas, um doce de chila com ovos que me alimentou a glicose sazonal por décadas, fiz questão de não levar a sério um substituto de chocolate que por lá se apresentou. Para compensar, uma mousse de chocolate sem ovos foi uma excelente surpresa, no dia de Natal.

Mas do que eu quero verdadeiramente falar-lhes é da aletria. Sou um fã dessa delícia amarela, quadriculada a canela, mas as minhas desilusões nessa matéria excedem, em muito, os grandes momentos. Houve um ano em que desconfiei mesmo que a travessa de aletria era patrocinada pela Cimpor, tal a textura que o suposto doce apresentava. Outros houve em que a massa estava deslavada, permeada de um líquido que lhe dava uma consistência esquisita, menos agradável. Até este ano! O ano da aletria 20 valores! A tecitura era a ideal, o açúcar estava na medida certa, o sabor era "aquele" que devia ser. Nada a mais, nada a menos. A aletria 2016 foi um "vintage", uma colheita ímpar. Só por aquela (digo "aquela" porque, infelizmente, já lá vai) aletria valeu a pena este Natal. Mas já vou passar um ano angustiado: como será a aletria de 2017, com o "benchmark" de 2016 tão elevado?

segunda-feira, dezembro 26, 2016

Silva Marques


Uma tarde de 1972, na universidade de Vincennes, em Paris, fui ouvir uma aula de Nicos Poulantzas. O seu "Fascismo e ditadura" era então uma "bíblia" laica, muito em voga entre nós. A certa altura, vejo-o interpelado por uma figura de bigode farfalhudo, que lembrava o "pai dos povos": "Cher Nicos, je suis tout à fait en désaccord avec toi...". O Zé Carlos Serras Gago, ao meu lado, esclareceu: o interpelante era português e chamava-se Silva Marques. 

Não o conhecia, mas logo me recordei da famosa "carta aberta" que, anos antes, Silva Marques enviara aos militantes do PCP, demitindo-se, com fragor ideológico, do lugar de principal responsável do partido na margem sul. Nessa mesma tarde de Vincennes, depois da aula, fui-lhe apresentado. Na conversa, perguntei a quem estava presente no grupo por um amigo, que presumia comum e que sabia estar por Paris. Grave, Silva Marques retorquiu-me: "Você é da PIDE?". Fiquei indignado. E disse-lho, logo apoiado por quem mo apresentara. Silva Marques, didático, recuou e explicou: "Só os provocadores é que costumam perguntar assim por alguém que está na clandestinidade". Fiquei a saber. Mas imaginava lá eu que o meu amigo andava clandestino...

De Silva Marques li, mais tarde, o interessante "Relatos da Clandestinidade", um livro de 1976 onde conta a sua odisseia no PCP e as andanças pelo exílio, ele que chegou a ser um quadro bastante importante do partido. Iria reencontrá-lo em 1995, ao tempo em que ele era deputado do PSD, onde chegara a líder parlamentar, depois de ter sido presidente da Câmara de Porto de Mós e Governador Civil de Leiria. Era um homem bem disposto, inteligente e perspicaz, com quem troquei divertidas "farpas" na comissão parlamentar de Assuntos europeus. Morreu ontem, segundo acabo de ler.

domingo, dezembro 25, 2016

George Michael


Em julho de 1990, assumi funções na embaixada em Londres. Fui sem família, por dois meses. Tinha um Mini e deu-me para passear imenso, nos fins de semana. Ouvia então muita música. Dei-me conta de que estava bastante desatualizado e comprei algumas coisas que estavam então em moda. Uma delas era um disco de George Michael. Não gostei excessivamente, mas também não desgostei. Era uma música "levezinha", sem grande criatividade, que se ouvia bem, mas não deslumbrava. A voz, contudo, era manifestamente boa. Ao fim de algum tempo, deixei de ouvir o disco mas mantive-o no carro. Um dia, dei boleia a um colega - era o Duarte Ramalho Ortigão, cônsul-geral em Londres (não sei se ele ainda se lembra da cena). Quando olhou os meus discos, saiu-lhe: "O George Michael?! Que possidónio? Nem a minha filha gosta!" Fiquei sem saber o que dizer. Eu estava ainda dividido quanto à qualidade daquela música, mas não me apetecia deixar-me "conduzir" por aquela avaliação tão radical e definitiva. (Já me tem sucedido o mesmo face a um vinho, um livro ou um filme). Decidi ouvir o disco todo outra vez. E comprei mesmo outro disco do cantor. Fiquei absolutamente na mesma, sem uma opinião firme. Desde então, quando ouço George Michael, coloco-me na mesma posição "impressionista". E, invariavelmente, "saio" de forma idêntica: nem entusiasmado nem numa atitude mínima de rejeição. A única coisa que julgo ter percebido é a razão do sucesso do cantor, da construção do seu sucesso, o que não é a mesma coisa que partilhar essas razões. 

Lembrei-me disto há pouco, ao ouvir que George Michael morreu. Vou escutá-lo outra vez.

sábado, dezembro 24, 2016

Minerva



Estive ontem na Minerva Transmontana, a tipografia de Vila Real onde acabo de mandar imprimir uma brochura ("fora do mercado", como se costuma dizer) de umas dezenas de páginas, recuperando memórias de família.

Olhei o ambiente daquela que sempre foi a principal casa impressora da cidade e vi-me por ali (as atuais instalações são vizinhas da outra) com 17 ou 18 anos, quando escrevinhava umas reportagens (e, muito cedo!, também umas crónicas, a "puxar" para o político) para "A Voz de Trás-os-Montes", o principal jornal da cidade.

Os meus textos eram entregues no escritório do diretor, o padre Henrique (Maria dos Santos), mas não havia a certeza absoluta de virem a surgir um letra de forma. Às vezes, presumo que fosse o diretor quem entendia que os artigos eram pouco interessantes, outras vezes sei que foi o lápis azul censório do capitão Medeiros que privou os leitores da "Voz de Trás" (como maldosamente alguns diziam) do "benefício" da minha prosa.

Por esse tempo, a minha angústia de cronista neófito era grande. O texto sairia ou não? Como sabê-lo, a montante da distribuição do jornal, sem o recurso humilhante à pergunta direta ao diretor? 

Um dia, dei-me conta de que tinha na tipografia um amigo de escola primária, o Esteves, filho de um polícia, mais conhecido pelo "Estevinho". Passei pela Minerva, chamei à parte o Estevinho e fui sincero: tinha escrito um artigo e gostava de saber se ele saía ou não. O Estevinho não estava ligado a esse setor da tipografia, tinha uma função muito subalterna, pelo que lhe era difícil espiolhar os textos do jornal. (E imagino que me tenha perguntado: "Mas por que é que não esperas pela saída do jornal?", coisa a que seria difícil dar uma resposta sensata). Mas lá se prontificou para ir saber. Repeti o truque duas ou três vezes, até que o rapaz se cansou. Passei então para o Carvalho, um amigo tipógrafo que eu tinha entretanto criado na Minerva, figura mais sénior, que passou a ajudar-me discretamente nessa angústia pateta de um cronista antes da publicação da crónica.

Caramba, e pensar que isto já foi há 50 anos! 

O Carvalho encontro-o às vezes na avenida (em Vila Real, quando se diz "avenida" é sinónimo de Avenida Carvalho Araújo), tem um filho que é um excelente cartoonista e bebemos um café, há meses, na esplanada da Gomes. O Estevinho vive há muito por Lisboa e cruzámo-nos, há dois anos, num evento transmontano. Hoje, 24 de dezembro, dia de consoada e de romaria "à Bila" dos expatriados, a hipótese de nos encontrarmos todos na "rua direita" sobe exponencialmente.

sexta-feira, dezembro 23, 2016

Café de S. Bento


Hoje, a revista "Evasões", que é distribuída com o "Diário de Notícias" e o "Jornal de Notícias", traz hoje uma nota "gastrófila" minha sobre o restaurante de Lisboa "Café de S. Bento".

Pode ler o texto aqui.

O abraço de Natal


Achei que tinha de ajudá-lo. Aquele meu velho amigo, que já não via há muitos anos, sabendo-me colocado na embaixada em Luanda, nesses idos de 80, procurou-me em férias. O seu pai, que há décadas migrara para Angola, antes da independência, deixara de dar notícias. A sua mãe tinha-se desligado afetivamente do marido, mas ele, como filho, não.

A última localidade onde sabia que ele vivera era a milhares de quilómetros da capital angolana, nesse tempo de guerra civil. Teria morrido? Estaria em dificuldades?

Em Luanda, em cujo consulado ele estava inscrito, pedi que, se acaso aparecesse alguém da cidade onde se supunha que o homem vivia, lhe pedissem para ir falar comigo, naquele imenso prédio onde eu trabalhava e vivia, na rua Karl Marx, antiga rua Vasco da Gama, hoje avenida de Portugal – porque o mundo é composto de mudança…

Semanas depois, apareceu alguém da referida localidade. Confirmei que o pai desse meu amigo estava de boa saúde e ainda trabalhava. Uma excelente notícia! Quando referi à pessoa a razão da minha diligência, ela retorquiu-me: "Está bem, mas, por ora, não diga ainda nada à família dele. Vou tentar que ele fale consigo". Estranhei um pouco, mas as vidas têm razões que a lógica desconhece. E respeitei o que o que foi pedido.

Os meses passaram, mesmo muitos. Um dia, da portaria, dizem-me que o pai do meu amigo estava ali, para me ver. Rejubilei! Mandei-o subir e recebi um homem tisnado, pequeno, magro mas com ar saudável, olho vivo e cara seca, sem grandes sorrisos. Expliquei-lhe o encontro tido com o filho, meu antigo colega. Tentei aligeirar a conversa, que sentia não fluir, com um esforço para suscitar memórias comuns de Vila Real. Mas rapidamente comecei a perceber que, para ele, o passado era mesmo o passado.

A certo ponto, foi claro: "É melhor não dizer ao meu filho que me encontrou". Fiquei perplexo e, de certo modo, desiludido. Porquê? "Eu não vou regressar nunca a Vila Real. A minha vida é em Angola. Esta agora é a minha terra. Tenho aqui mulher e já cinco filhos, tenho um negócio que vai bem, mesmo com a guerra. A mulher e o filho que deixei em Portugal já não esperam ver-me, se calhar acham que eu morri. É melhor assim. Nem eu tenho dinheiro para lhes mandar, nem era capaz de abandonar a família que fiz por aqui. Diga ao meu filho que não me encontrou, faça-me esse favor".

Percebi o drama do homem. À despedida, junto ao elevador, de dentro daquela secura que os trópicos e as dificuldades da vida haviam incutido no seu carácter trasmontano, disse uma coisa muito bonita: "Vai agora no Natal a Vila Real? Se encontrar o meu filho, dê-lhe um abraço forte, por mim. Mas não lhe diga nada, está bem?". Cumpri a promessa.


Agora já não posso dizer. O meu amigo morreu, há já alguns anos. O seu pai, soube-o há uns tempos, também. Lembrei-me disto neste Natal, que desejo feliz para quem o possa ser.

quinta-feira, dezembro 22, 2016

Diáspora

A convite do Conselho da Diáspora Portuguesa, estive, na manhã de hoje, a moderar, em Cascais, um dos painéis desta rede que congrega quase uma centena de portugueses "de sucesso" (a qualificação é da minha responsabilidade), sedeados em dezenas de países. Trata-se de quadros de topo de grandes empresas internacionais, de académicos e investigadores, bem como de outras personalidades altamente colocadas "lá fora".

Uma vez por ano, esta "rede", que tem por objetivo ajudar a promover um melhor conhecimento da nossa realidade contemporânea, reúne em Portugal. 

Coube-me animar o debate sobre o papel da Diplomacia Cultural na projeção de Portugal e o modo como a "rede" pode vir a contribuir nesse domínio.

Ouvindo os conselheiros, ficou-me a sensação muito clara de que Portugal "está na moda", de que as perceções positivas sobre o nosso país se acumulam e de que está criado um ambiente propício a que se promovam mais iniciativas para reforçar a visibilidade do "Portugal de excelência" que por aí existe.

Porque constituem este Conselho personalidades altamente qualificadas, que decantam as suas perceções da vivência em "esferas culturais" muito representativas, saí muito otimista daquilo que ouvi.

Pela minha parte, dei conta do modo como a "diplomacia pública" se tem comportado ao longo dos anos neste setor, da suas limitações, das lições aprendidas e da importância de poder contar com estes qualificados "atores" para um trabalho eficaz em torno da imagem de Portugal.

Jornalistas de economia, precisam-se!


Sempre tive amigos jornalistas na área económica. A maioria conheci-os quando estava no governo, outros criei-os quando era embaixador, alguns (poucos) desde que estou ligado ao setor empresarial e passei a escrever com regularidade nos jornais.

A imprensa portuguesa necessita de jornalistas económicos como de pão para a boca. Cada vez mais a vida política anda à volta das temáticas económicas, assuntos que antes eram especializados e só abordados por iniciados, marcados por um léxico próprio e inescapável, passaram a fazer parte corrente da nossa vida e da nossa conversa.

Para ajudar o público a ler essas realidades, com independência mas com rigor, o jornalismo económico é em absoluto indispensável. Há sempre versões em torno dos números, é necessário explicar a perspetiva de A, que contradiz a de B. É importante dar ao leitor, ao ouvinte ou ao telespetador o leque de interpretações possíveis, para que este possa, com total liberdade e sem condicionamento, fazer o seu próprio juízo, sem pretender convencê-lo de que uma visão é melhor do que a outra. Fazer jornalismo económico requer conhecimentos, rigor, independência e respeito pelo utente recetor da notícia.Com o tempo, esses meus amigos e amigas que eram jornalistas deixaram, um dia, de o ser. Isto é, não deixaram de ser amigos, deixaram foi de ser jornalistas, embora continuassm a trabalhar nos "media". Passaram, quase na sua totalidade, a ser comentadores - que é uma coisa muito diferente de ser jornalista.

Agora eles já não enquadram as notícias, não são independentes na análise dos números, não dão crédito equiparado às diversas leituras. Eles tomam partido, "acham", passaram ao "na minha opinião".

Centeno diz uma coisa? Eles permitem-se o "não acredito que". O BCE prolonga o "quantitative easing"? Eles estão "convictos" que, a prazo, a sustentabilidade dessa política anti-deflacionária "não será conseguida". Moscovici dá as previsões da Comissão para o nosso défice em 2017? Eles acham "otimistas" essas notas prospetivas. Centeno, Draghi e Moscovici têm equipas económica a sustentar as suas declarações. Eles têm-se a si próprios: "eu já no mês passado tinha aqui dito que..."

Não têm, esses meus amigos e amigas, o direito a comentar a coisa económica? Ora essa! Claro que sim! Os comentadores são indispensáveis.

Mas a comunicação social necessita urgentemente de, para os lugares deles, contratar jornalistas, gente que nos traga e exponha as notícias, sem tomar partido, sem dar bitaites, à Krugman ou à Stiglitz. É que, por muito despiciendo que isso possa parecer, esses antigos jornalistas não são prémios Nobel da Economia. Ainda.

quarta-feira, dezembro 21, 2016

Gambuzinos no Chiado

Foi num jantar com amigos meus, alguns que não se conheciam entre si. Ainda recordo o lugar: o antigo "Copo de Três", à Praça das Flores, onde hoje está o "Castro Flores" (por acaso, vou lá almoçar amanhã...)

Já não sei bem como e a que propósito, veio à conversa o nome de uma certa cabeleireira lisboeta, muito na moda, que recebia figuras bem conhecidas. Uma das amigas presentes era sua cliente habitual. Foi então que comentei: "Foi muito triste o que aconteceu com aquele salão! Ter de fechar assim de repente..."

A amiga que era cliente supreendeu-se: o salão tinha fechado?! Expliquei que tinha sabido do assunto nessa mesma tarde, através de uma reportagem em "A Capital", que trazia tudo muito bem explicado.

Descobrira-se, por alguma denúncia, que o cabeleireiro era, no fundo, uma "frente" para um lucrativo prostíbulo de luxo, ali bem no meio de Lisboa. E havia muita gente implicada! Um famoso e exclusivo "gentlemen's club", que confinava com a cabeleireira, era a via de acesso dos homens para o lupanar, entrando as mulheres através do salão de cabeleireiro. Dei pormenores do artigo, falei de uma porta e de um corredor secreto, de uma varanda traseira ("é verdade, há uma varanda", confirmou a minha amiga).

A polícia selara tudo nessa manhã e havia mesmo pessoas detidas. "Este país está impossível. Já nada é o que parece! Essa é que é essa!", sentenciei.

A minha amiga estava atónita, e compreensivelmente chocada. Conhecia muito bem a cabeleireira e o marido, gente encantadora, punha "as mãos no fogo" por ela, era quase impossível que ela estivesse envolvida nessa tramóia! "No melhor pano cai a nódoa!", foi o comentário ouvido.

E muito mais perturbada essa amiga ficou quando outras pessoas, que também estavam na nossa mesa, gente que ela estava a conhecer ali pela primeira vez, confirmaram: um tinha já ouvido falar do assunto, outra lera o mesmo artigo de jornal que eu tinha lido.

A conversa prosseguiu, mudou-se de tema, mas a nossa amiga ficou visivelmente perturbada. E estava-o de tal modo que, à saída do restaurante, pediu ao marido para passar, de carro, pelo endereço da cabeleireira, para ver com os seus próprios olhos os selos de polícia na porta. Não sei se viu alguma coisa, porque à noite tudo é menos claro, até os gatos, dizem, são pardos e só há gambuzinos no ar.

A nossa amiga viria a sossegar, mas só mais tarde. A cabeleireira, afinal, não tinha sido presa, o lupanar, afinal, não existira nunca, a historieta, afinal, era uma invenção instantânea deste seu amigo, o comportamento dos outros, afinal, tinha sido provocado por um piscar de olho cúmplice - e, à distância, não lhe agradou mesmo nada que essas pessoas tivessem contribuído para a "gozação". Mas, afinal, já me perdoaste, não é, Mena?

Uma cunha na hora!



Aquela figura da "geringonça" olhou para mim com um ar perplexo, quando deixei cair, em conversa, que podia estar interessado num determinado cargo oficial. 

Ouvira-me, nos últimos dez anos, jurar a pés juntos que não estava disponível para exercer qualquer lugar no âmbito do Estado pelo que havia agora qualquer coisa que não batia certo.

- Era capaz de aceitar uma certa função não remunerada...

Bom, isso já podia ter algum sentido, deve ter ele pensado, julgando que eu estava a meter uma discreta "cunha" para um lugar de prestígio.

- É um cargo que ambiciono desde há cerca de três décadas.

Isso atirava para os anos 80. Pediu-me que concretizasse.

- Era para membro da Comissão Permanente da Hora.

"Comissão Permanente da Hora"?! O que faz essa comissão? Expliquei que, por lei, lhe compete "estudar, propor e fazer cumprir as medidas de natureza científica e regulamentar ligadas ao regime de Hora Legal e aos problemas da hora científica". Ora eu tinha reparado, há muito, numa falha na lei: era inconcebível que o Ministério dos Negócios Estrangeiros não estivesse representado nessa comissão, pelas implicações que o regime da hora legal tem nas relações internacionais e na ligação com as instituições comunitárias. Impunha-se, desde logo, uma revisão da legislação nesse sentido.

- Tem lógica, disse ele. 

Mas, pondo os pés na terra, logo refletiu: mas por que é que eu queria esse lugar, um lugar não remunerado numa comissão que reunirá, talvez, uma vez por ano? E o que é que eu sabia do assunto para me qualificar para essa função? Pacientemente, expliquei que tinha passado por mim, noutros tempos, a questão do regime europeu da hora, pelo que sabia tanto ou mais do assunto como qualquer outra pessoa de lá do MNE.

- Lá isso é verdade. Mas estás mesmo a falar a sério?

- Claro que sim e agora tenho mais tempo, o que deve ser importante para um organismo que trata da hora... 

- Mas seria necessário mudar a lei. E o MNE teria de propor isso. Pode demorar...

"Não tenhamos pressa, mas não percamos tempo".

- Bela frase! É tua?

- Não, é do Saramago.

Fiquei na dúvida sobre se esse meu amigo acreditou mesmo no que lhe "pedi". Um reformado a representar o Estado... Só eu é que tenho tempo para estas brincadeiras. Mas é Natal, ninguém leva a mal.

Carlos Gaspar


Continuar a aprender é uma das coisas que me dá mais prazer. E tenho aprendido muito, nos últimos dias, ao ler o magnífico "O Pós-Guerra Fria", do investigador e professor universitário Carlos Gaspar. 

Nem sempre, no passado, estive de acordo com algumas coisas que o Carlos disse ou escreveu sobre certas questões na ordem externa, o que torna porventura mais genuíno e franco este meu elogio ao seu livro. É uma evidência que se trata de alguém que, entre nós, reflete, como muito poucos, sobre as temáticas internacionais, com juízos de grande profundidade e uma leitura inteligente e perspicaz sobre a realidade política global. 

Notícias a sério


Chama-se João Fernando Ramos. Não o conheço pessoalmente, creio. Surge à frente de um jornal informativo na RTP2, às 21.30. Apresenta-nos, em apenas meia-hora (como em todos os países civilizados), um telejornal com equilíbrio, sem "gorduras", sem "Sónias Cristinas" em diretos inúteis, com entrevistas dinâmicas, convidados variados. No final, ficamos a saber tanto como com aqueles pastelões de mais de hora e meia que os três canais principais nos impingem. Ainda há notícias a sério.

terça-feira, dezembro 20, 2016

Suplementos

Volta e meia, com os jornais diários, surgem uns suplementos que, quase num gesto automático, seguem logo para o lixo. Ninguém lê aquelas estopadas, escritas num "jornalismo" oficioso e de publicidade disfarçada.
Que empresas privadas publiquem coisas dessas, tudo bem! O negócio é isso mesmo.
O que ultrapassa a minha compreensão é o facto de entidades públicas gastarem do dinheiro dos nossos impostos para promoverem serviços públicos.
Hoje, com o "Público", o Centro Hospitalar do Porto edita um suplemento com 40 páginas (!) de autopromoção.
Há dinheiro a mais na área da saúde? Não sabia.

segunda-feira, dezembro 19, 2016

O presidente e o país

O país divide-se na sua apreciação sobre as movimentações do presidente da República.

Uma parte acha que a sua "agitação" é positiva, que está criado um ambiente favorável à sua presença constante um pouco por todo o lado, que esse é o segredo da real descrispação que o país hoje vive. Outra parte - e sente-se que essa parte cresce, dia-após-dia - acha que o presidente está a ir longe demais naquilo que pode funcionar como uma certa banalização da sua figura, e teme por isso. Outros ainda começam a achar que o chefe do Estado entrou numa deriva presidencialista que coloca em causa os equilíbrios de poder com o governo.

A estes três grupos soma-se um outro, o que já "perdeu a paciência para o Marcelo": são as "viúvas" e os "viúvos" de Cavaco, os que, com raiva, o viram um dia entrar de rompante num congresso do PSD e "roubar o show" a Passos Coelho, os que não tiveram outra solução senão votar nele, os que cedo acordaram do sonho frustrado de o ver desmantelar a geringonça, os que acham que já chegou o tempo de denunciar o que lhes parece ser um "fazer da cama" de Passos Coelho, a partir de Belém.

O "Observador" é o órgão oficioso deste último grupo, desde as insídias nas "newsletters" aos (principalmente às) colunistas descabelado/as. Durante meses foram afinando a pontaria, das pequenas graçolas às bicadas mais ou menos subtis. Agora, já se soltaram e à vista da consoada, vendo-se sem prenda no par de botas em que se meteram, perderam as estribeiras. Já perceberam que este ano não vão ter Boas Festas e de que estão muito longe de poderem vir a ter um Feliz Ano Novo. A eles, apetece-me dizer a palavra que, lá por Vila Real, lançamos àqueles com quem nos cruzamos na rua, depois da missa do galo e até aos Reis: "Continuação", é o que sinceramente lhes desejo...

domingo, dezembro 18, 2016

Vinhos & Cia


Nunca percebi se o Bill Stevens era ou não da CIA. O rumor de que era corria no corpo diplomático em Oslo, mas isso nunca impediu que ele e a Judy se contassem entre os nossos melhores amigos. Em casa deles - uma moradia de madeira e vidro, na bela encosta de Holmenkollen - comemos o perú no Thanksgiving (festa em que os americanos só juntam a família e os muito próximos), eram visitas regulares lá de casa e fizemos divertidas excursões de fim-de-semana. Que será feito deles?

Um dia, o Bill teve a ideia de organizarmos um jantar comemorativo de qualquer coisa, num determinado restaurante de Oslo. A capital norueguesa, nesse início dos anos 80, não tinha muitos restaurantes. Os "de topo" eram uma meia dúzia, e extraordinariamente caros. O meu "subsídio de representação" - o acréscimo que é pago aos diplomatas, a somar ao salário-base recebido no país, para alugar casa, fazer "representação social", compensar o diferencial do custo de vida no exterior e o atenuar o facto do cônjuge ter de abandonar o emprego para nos acompanhar - era muito baixo para os preços praticados na Noruega, pelo que eu vivia os meses "a contar os tostões". As extravagâncias eram assim limitadas, com as idas aos restaurantes confinadas a umas pizzarias e coisas desse nível.

Mas não resisti à ideia do Bill, que, esclareça-se, não era um convite, era um jantar "a meias", que ele reservaria. Avisou que teríamos uma surpresa. O repasto era num primeiro andar frente ao Studenterlunden (não, não era o Annenetagen ou o Theatercaféen - para os conhecedores de Oslo). Sentámo-nos e ele revelou-nos a surpresa: tinha decidido pedir um "vinho português". Fiquei siderado! De facto, ao tempo, nunca havia visto qualquer vinho português nas cartas dos restaurantes norugueses, se bem que três ou quatro marcas estivessem à venda no Vinmonopolet - para quem não saiba, na Noruega, tal como na Suécia, as bebidas alcoólicas com graduação acima da cerveja são vendidas exclusivamente em lojas de um monopólio do Estado, a preços altamente marcados pelos impostos.

Fiquei satisfeito pelo gesto do Bill, claro. Um jantar com vinho do meu país! E estava curioso em saber o que aí viria. Não demorou muito: chegaram garrafas de... Mateus Rosé! Na realidade, era um produto nacional, mas eu nunca o "vira" como um vinho português. Com um sorriso que imagino amarelo, agradeci o gesto e lá acompanhámos a refeição, uma carne de rena, que era o "pão-nosso-de-cada-dia" da gastronomia local, com aquele produto. É que, para além de eu não apreciar "Mateus Rosé" (estou no meu direito, não estou?), de entender ser uma bebida pouco adequada para acompanhar uma refeição, o preço de cada garrafa era estratosférico, para a minha bolsa. Ah! Só que, sendo um produto português, eu tinha de dizer bem dele, claro.

Anos mais tarde, ouvi um colega espanhol numa diatribe contra a música de Julio Iglésias, que achava delicodice e para gostos parolos. Alguém, no grupo em que estávamos, lhe fez notar que era um pouco chocante ouvir de um diplomata espanhol propósitos de denegrimento de um dos mais bem sucedidos "produtos de exportação" do seu país. Eu concordei e disse-lhe: "Faz como eu faço com o Mateus Rosé: promovo e até sirvo em casa, mas não consumo..."

Genial

Devo dizer que, há uns anos, quando vi publicado este título, passou-me um ligeiro frio pela espinha. O jornalista que o construiu deve ter ...