quinta-feira, julho 28, 2011

Silêncios

Há algumas décadas, um amigo europeu, quase nórdico, fez-me notar que, em qualquer noite portuguesa, por mais campestre que ela fosse, havia sempre o risco de se ouvir, ao longe, o som irritante de uma motorizada. E que os portugueses também já davam por adquirido esse acervo antropológico consuetudinário que eram os sinos horários das igrejas ou o som difuso das festas de verão. Enfim, para esse meu amigo, os portugueses haviam já perdido o prazer do silêncio.

Nunca havia atentado muito nisso mas, a partir de então, fiquei a matutar um pouco mais no valor dos silêncios. E passei a dedicar-me à sua procura quase militante e a racionalizar o gozo que, na realidade, deles sempre retirava. Trazia-os comigo da adolescência, quando Vila Real tinha madrugadas de intensa serenidade. Arquivei, depois, na memória, algumas noites norueguesas quase perfeitas, um certo silêncio de uma madrugade no Mussulo, uma insónia na varanda de um hotel incómodo em Fergana, no Usebequistão, e, maravilha das maravilhas!, uma absoluta ausência de ruídos no deserto de Wadi Rum, no sul da Jordânia.  

Mas continua a haver na minha vida um silêncio especial, que nunca esquecerei: uma noite, no oeste da Escócia, na Isle of Skye, nos anos 90. Tinha ido por lá em busca de um "bed & breakfast" que me diziam ter um restaurante soberbo (de um antigo cozinheiro do Martins - escreve-se assim, sem apóstrofo, à portuguesa - de Edimburgo) e, também, para tentar confirmar uma teoria sobre o aumento do teor de "pit" nos whiskies de malte, de oriente para ocidente da região, o que me obrigou a uma peregrinação de estudo por destilarias escocesas, que quase doutorou o meu fígado. Nessa noite, saí para passear a digestão algumas centenas de metros fora do hotel e, foi então que, pela primeira vez desde sempre, "ouvi" um verdadeiro silêncio. Nem motorizadas à distância, nem grilos nas bermas, nem vento nas ausentes árvores, nem nada. Apenas um magnífico e profundo silêncio, seco e chocante, como nunca tinha experimentado. Para um mortal não habituado, a força dele até soava a estranho.

Confesso que sou hoje um consumidor obsessivo de silêncios, que os procuro de forma ansiosa em todos os locais onde me alojo. Mas, geralmente, e porque passei a viver em cidades, onde sempre sobrevive um "bruá" de fundo, com maior ou menor intensidade, raramente tenho a sorte de me reencontrar com os grandes silêncios. Acho, aliás, que à maioria das pessoas, cidadãos urbanos, isto já nem é uma questão que se coloque, porque foram habituadas a viver assim, com esse residual cenário auditivo nas suas vidas. Pensei nisto quando morei em Nova Iorque, que tem um dos mais belos ruídos urbanos do mundo. Ou, pelo menos, é isso que nós somos levados a pensar, na relativização da inevitabilidade das coisas.

Mas ainda não desisti, por completo, de colecionar silêncios. Por isso, nas noites campestres que posso ir tendo, descontados os sons ínfimos da natureza, continuo um seu incurável consumidor.

Ontem, numa madrugada na varanda de uma certa casa, onde há anos me entretenho, pelos verões, a procurar essa suprema paz auditiva, fui surpreendido com a persistência de um certo som de fundo, contínuo, uma espécie de "zoeira" que poderia identificar-se a um ruído distante de um avião. Fiquei à espera que o som passasse. Qual quê! Continuava. Foi então que, olhando uma luz vermelha no alto do monte fui levado a concluir que esse ruído incontornável (desculpem o adjetivo jornalístico, tão feio como o ruído) era, nem mais nem menos, o som de uma dessas pás eólicas que fazem as delícias estatísticas das nossas energias alternativas.

Depois do meu carro ter sido, há semanas, proibido de circular na Baixa lisboeta por excesso de produção de CO2, ver o sagrado silêncio das minhas noites rurais poluído pelo ruído desses moínhos de nova geração coloca-me irreversivelmente em rota de colisão com o mundo "sustentável". Desculpem lá!    

terça-feira, julho 26, 2011

Par de óculos

Nunca foi homem de abraços e gestos leves. A afetividade, naquele embaixador, homem grande e de movimentos largos, traduzia-se sempre por fortes amplexos, palmadas nas costas, acompanhados por sonoras manifestações de regozijo pelos reencontros.

Ao cruzá-lo nesse dia, naquele corredor das Necessidades, o diretor-geral, "civil servant" antigo, oriundo das Finanças ultramarinas, onde fizera carreira de mérito, figura pequena e levemente inclinada para a frente, deixou-se embrulhar pelo entusiasmado e imenso diplomata, que ia produzindo frases de sincero contentamento por vê-lo.

Mas o estalido não enganou. O choque dos peitos, no amigável encontro, teve como dano colateral os óculos do diretor-geral, colocados no bolso superior esquerdo do casaco. Recompondo-se, procurou com dois dedos a armação, logo sentindo um chocalhar de pedaços, a cair pela algibeira abaixo. Discreto como era, nada disse. O amigo embaixador nem sequer havia notado os efeitos da sua colisão frontal, seguindo o seu caminho, depois de deixar uma palmada mais nas costas do diretor-geral, com este já a planear passar pelo oculista.

Decorreram uns meses. O cenário foi outro, o restaurante de um hotel. Acordado por um berro cordial, o diretor-geral vislumbrou o coreográfico diplomata, que já o saudava à distância, com os braços levantados, a voz forte a atroar a sala.

Um novo, enérgico e "fatal" abraço adivinhava-se, para instantes depois. O diretor-geral, já "escaldado", levou a mão ao bolso superior do casaco e, prudente, retirou deles os novos óculos, bem caros, por sinal! E guardou-os na mão fechada, não fosse o diabo tecê-las!

O embaixador, previsível, avançou para um imenso amplexo. Mas, desta vez, o diretor-geral pode entregar-se-lhe com confiança. Os óculos não ficariam esmagados no bolso, como acontecera da outra vez. Estava, seguros, no seu punho.

Desfeito o abraço, que ideia teve o embaixador? Nem mais nem menos do que agarrar, com força, ambas as mãos do diretor-geral, como testemunho de solidez de uma inquebrantável amizade. Encontrou uma das mãos aberta ao gesto, a outra, porém, com o punho fechado. Como se isso fosse um problema! Agarrou esta última, pela parte de fora e, se o punho estava cerrado, mais cerrado ficou com a força da manápula do diplomata, que indejava entretanto os braços do pobre diretor-geral, para cima e para baixo.

E foi desse punho, cada vez mais fechado, de onde saíam extremidades de uns óculos que o embaixador não vira, que não tardaram em pingar uma pequenas gotas de sangue, misturadas com os vidros do uma lente, que iam sobrando para o chão.

Esta história dos anos 80 - que ficou famosa nos anais do MNE - não recolhe reações posteriores, eventuais desculpas, sólidas contrições seguramente produzidas. Também nunca se ficou a saber se o embaixador foi informado que aqueles eram já os segundos óculos que destruíra ao seu amigo diretor-geral.

Trajes

Inicio este post por uma declaração de interesses: o meu traje preferido são t-shirt, jeans e Timberland, tudo muito usado. Mas gosto muito de gravatas.

Achei curiosa a dispensa de gravata que, por conjunturais razões climatéricas, foi decidida no ministério da Agricultura, a qual, aliás, repercute a prática que tenho visto seguida, de há muito, em outros serviços públicos. A gravata, em si mesma, está longe de ser um formalizador de circunstâncias e o seu uso não confere ao portador nenhum estatuto particular. Há por aí muito javardo engravatado...

Devo lembrar, contudo, que há códigos comportamentais, internacionalmente aceites e respeitados, que aconselham a que se mantenha um certo formalismo no vestuário, em terminados espaços e momentos públicos. E que a experiência mostra que o uso de certos trajes induz a assunção de certas formas de estar, o que não é indiferente a quem acha - como é o meu caso - que servir o Estado é uma honra que tem de ser assumida.

Tenho a profunda convicção que no ministério dos Negócios Estrangeiros a gravata vai continuar a ser respeitada. Assim, e salvo ordem em contrário, e para que conste, em serviços que eu chefie ela continuará a ser de regra. Enfim, reacionarices...     

segunda-feira, julho 25, 2011

Salvadores

- Com o vento, poucos vão tomar banho, esta tarde.

- Ainda bem! Parece que um dos nadadores-salvadores que anda por aí... não sabe nadar!

Conversa (real) entre pessoas que trabalham na praia do Moledo.

"Todos os fogos o fogo"

Os telejornais preparam-se afanosamente. Já por lá se vêm os primeiro mapas com as chamas. Falta muito pouco para os inenarráveis diretos, para os microfones, tipo corneto, nas mãos das Sónias Cristinas (de onde é que saem, todos os dias, essas novas meninas do jornalismo televisivo ofegante?) de cabelo ao vento, de rapazes de léxico restrito e camisa aberta até ao quarto botão, sempre com chamas ou fumos "do rescaldo" por detrás, berrando evidências, entrevistando populares de balde ou mangueira na mão, revoltados com o mundo e esvaídos de cansaço, a quem colocam questões profundas como "o incêndio esteve quase a atingir a sua casa, não foi?", "acha que os bombeiros são suficientes?" ou o inevitável clássico "como é que se sente?", para tudo esperando respostas inéditas. Chega depois o comandante dos bombeiros, falando, grave, no número de "homens envolvidos no combate ao sinistro", lamentando a escassez de meios aéreos, insinuando supostos incendiários ("Não deixa de ser estranho que tenham surgido três frentes simultâneas..."). Depois, momento áureo, é ouvido um membro do governo em pose estival, com presidentes de Câmaras e presidentes de Juntas ligeiramente atrás, que inventaria o dispositivo e dá nota das rigorosas medidas "já implementadas". Em fundo de cena, a costumeira legião de patetas passeando-se de telemóvel no ouvido, para serem vistos pela prima, lá em casa.

De canal em canal televisivo, o verão noticioso é assim. O mesmo, todos os anos. Só que ninguém pergunta a ninguém se foi feita, a tempo, a limpeza das matas, se se respeitaram as distâncias de segurança entre as residências e as áreas de mato combustível, se foram tomadas as medidas de precaução necessárias, que todos conhecem e ninguém pratica.

Pena é que isto não faça parte do "memorandum of understanding" da "troika"...

Pena de morte

Com pretexto na tragédia norueguesa, algumas vozes voltaram a ecoar a ideia da pena de morte.

É muito interessante, e não menos significativo, que os próprios noruegueses, vítimas de um ato infame, hajam sido os primeiros a mostrar a necessidade de preservarem os valores da sua própria liberdade, evitando reações como as que os americanos tiveram depois do 11 de setembro (já passou uma década, imaginem!). Os noruegueses, que construíram uma sociedade admirável, recusam ficar prisioneiros de um assassino.

A pena de morte é uma imensa prova de fraqueza, uma cobardia feita de desespero.

Portugal orgulha-se de ter sido o primeiro país da Europa a aboliir a pena de morte para crimes civis. À época, em 1876, perante a decisão portuguesa de abandonar o recurso à pena capital, ficou célebre aquilo que Victor Hugo disse do nosso país:

"Está pois a pena de morte abolida nesse nobre Portugal, pequeno povo que tem uma grande história. (…) Felicito a vossa nação. Portugal dá o exemplo à Europa. Desfrutai de antemão essa imensa glória. A Europa imitará Portugal. Morte à morte! Guerra à guerra! Viva a vida! Ódio ao ódio. A liberdade é uma cidade imensa da qual todos somos concidadãos".

Nunca esqueçamos esta honra.

domingo, julho 24, 2011

Pelo jornais


Este é um verão cruel. Há dias, partiu a Maria José. Hoje, saem de cena o Henrique e a Maria Lúcia.

Nunca me tinha acontecido: olhar um jornal e descobrir, por ele, a morte de um amigo, o local e hora do seu funeral. Fiquei parado, desejando, por um instante, que se tratasse de um confusão de nomes, hipótese logo afastada por outra identificação inequívoca. Morreu o Henrique Bandeira Vieira.

À noite, no telejornal, sou surpreendido com a noticia da morte de Maria Lúcia Lepecki.

No início de Maio, em Paris, o Henrique apareceu-nos, para jantar. Foi um reencontro alegre, uma bela noite de conversa. Meses antes, eu falhara um encontro em sua casa, em Portugal, onde queria juntar-nos com outros amigos. Falámos longamente das pessoas do nosso tempo comum em Angola, onde nos conhecêramos no início da década de 80, dos anos em que depois coincidimos em Londres. Recordámos noites calmas de conversa com a Pascale - em Bruxelas, no Algarve e em Cascais. Era um homem positivo, com uma família unida, com projetos, com vontade, sempre construindo futuros, que progredira, com muito sucesso, no mundo empresarial internacional.  Revelou-nos o seu entusiasmo com um empreendimento turístico alentejano, de grande vulto, em que se envolvera recentemente. Soube, há pouco, que, nessa mesma noite parisiense, ele tinha já preocupações com o seu estado de saúde. Mas nada nos deixou transparecer, salvo uma magreza que nos pareceu um tanto excessiva.

Encontrei a Maria Lúcia, pela última vez, há mais de um ano. Cruzámo-nos num centro comercial. Prometemo-nos um encontro que adiávamos há muito. Conheci-a no final dos anos 60, quando ela vivia com o Carlos Eurico da Costa, meu primo e meu grande amigo. Vinha do Brasil, professora universitária, interessada na literatura portuguesa, sobre a qual escreveu. Os serões lá em casa tinham imensa graça, com Orlando da Costa, José Cardoso Pires, Jacinto Baptista, Maria Velho da Costa e outras tantas figuras de um mundo literário lisboeta da época. Viajámos pelo país, passámos férias juntos, discutimos a vida, por horas perdidas de conversa. Essa mesma vida deu muitas voltas, o casal acabou  um dia e eu passei a ver a Maria Lúcia só a espaços. Comigo no Brasil, trocámos e-mails, mandei-lhe um livro que tinha escrito sobre a minha experiência no seu país, felicitei-a pelo imenso sucesso académico do seu filho André, um dos orgulhos da sua existência.

Um adeus para a Maria Lúcia e para o Henrique.

"Tour de France"

Estou a ver na televisão os ciclistas do "Tour de France" passarem em Champigny, na sua etapa derradeira deste ano, em direção ao centro de Paris. As imagens mostram-nos um panorama muito agradável, de jardins e de habitações, o que é um contraste com a localidade que, a partir dos anos 60, foi o destino primeiro de alojamento de milhares dos nossos compatriotas, à procura de uma sorte que o seu próprio país lhes recusava. 

Dos "bidonvilles" de Champigny, da lama e do frio dos que chegavam "a salto", apenas com a sua roupa e a sua vontade, resta hoje - felizmente! - quase nada. Mas todos temos a obrigação de continuar a manter uma memória de grande respeito pelo esforço magnífico dessa gente, cuja aventura honrará para sempre Portugal em terras de França.

Pode ser uma sugestão minha, mas quando revejo imagens de Joaquim Agostinho, arqueado sobre a sua bicicleta, numa das suas subidas para um sempre dramático "col", não consigo deixar de o ligar à imagem dos portugueses migrantes para terras de França, também no seu esforço trágico, que para muitos teve um merecido sucesso.

sábado, julho 23, 2011

"Orelhas de aço"

Eu e o João Niza Pinheiro tinhamo-nos aprimorado para que o discurso que aquele ministro, de uma pasta técnica, ia proferir numa reunião internacional, numa certa cidade europeia, acabasse por ser uma bela peça de oratória.

Havia semanas que por lá estávamos como membros da delegação portuguesa, numa conferência em que esse ministro ia intervir, como o mais alto representante do governo português. Estudámos o tempo disponível e decidimos que havia que fazer uma "obra" para 7 a 10 minutos.

Com falaciosos argumentos de autoridade técnica, para termos as nossas mãos completamente livres na elaboração do texto, havíamos convencido o ministro, que estava há escasso tempo em funções, a afastar a hipótese do seu gabinete ter um "droit de regard" final sobre o discurso: adiantámos que só nós conhecíamos a "chave" dos equilíbrios que era preciso introduzir na mensagem, que havia que ter em conta certos aspetos (que não revelámos) que a presidência rotativa europeia gostava de ver refletidos em todas as intervenções nacionais, que havia pormenores de política externa que era importante fazer transparecer subtilmente no texto, etc. Nós trataríamos de tudo, ninguém precisava de se preocupar. Enfim, vetustas técnicas do MNE para evitar que alguém venha perturbar o nosso trabalho...

Obtida que foi a total "luz verde" do crédulo governante e arranjadas umas cervejas, umas sanduíches e boas doses de café, em um pouco mais de três horas de trabalho, comigo ao teclado e com o Niza Pinheiro a dar sugestões de frases, aviámos, num muito razoável francês (melhor o do João que o meu), uma intervenção que até tinha algumas subliminares graças de que eu e esse meu colega, agora embaixador num posto europeu, ainda hoje nos rimos. Ao final da noite, fomos deixar duas cópias do discurso ao hotel em que o nosso ministro se hospedava.

No dia seguinte, aguardámos pela chegada do governante, na imensa sala de conferências. Chegou bem disposto. Era um homem cordial e simpático, sem uma grande experiência das coisas internacionais, mas com uma boa bagagem técnica. Inteligente, deve ter percebido que o que lhe propúnhamos era perfeitamente aceitável. E era, de facto. A nós, agradou-nos a circunstância de ele ter gostado do texto. Missão cumprida, assim.

Neste tipo de reuniões internacionais, que contam com largas dezenas de delegações, cujos discursos se distribuem ao longo de vários dias, as salas estão, em geral, pouco compostas. Há muitos países cujos lugares estão mesmo sem ocupantes. Raramente um ministro ouve com atenção o discurso de outro, isto é, os oradores chegam apenas durante a intervenção que antecede a sua e, acabada que é a sua função, logo partem para contactos bilaterais. Ou para as compras, como muitas vezes é o caso...

Na sala, ao longo dos dias, orgulhosos atrás das placas com o nome dos países, ficam, em geral, os mais jovens funcionários das delegações. Compete-lhes, acabada que seja cada intervenção, dirigir-se à delegação de quem a proferiu e pedir uma cópia do texto. Pelo sim pelo não, esses funcionários novatos tomam também nota de algum aspeto que tenham por mais relevante, que haja surgido durante as intervenções, por forma a delas poderem fazer um registo, que será enviado às capitais, as mais das vezes acompanhadas dos textos proferidos. E que, salvo no caso de países com opinião decisiva, quase de certeza que ninguém lerá. Uma tarefe chata, mas que não pode deixar de fazer-se. Esses funcionários de plantão são comummente designados, entre nós, como os "orelhas de aço", porque têm de manter, em permanência, um auscultador plástico no ouvido, para acesso às traduções. Ora fazê-lo por horas seguidas coloca uma pressão na orelha externa, a qual chega dorida ao final do exercício. Perceber-se-á agora melhor o apôdo.

O nosso nóvel ministro chegou à reunião bem antes da sua hora, como sempre acontece com os oradores angustiados. Sentou-se no centro da delegação, conosco a rodeá-lo (guardo uma fotografia do instante). Chegado o momento da sua intervenção, foi chamado à tribuna pelo presidente da sessão e leu, para nosso descanso, num francês aceitável, o texto exato que lhe havíamos preparado. Recordo de antes ter visto marcadas a lápis, no exemplar que levou para o palanque, as pausas para respiração, prova de que estivera a ensaiar o discurso, na véspera ou nessa manhã. Coisa de "maçarico" mas, igualmente, de pessoa responsável.

O texto saíu-lhe fluído, escorreito... isto é, tal como o tínhamos escrito! No final da prestação, enquanto se dirigia ao seu lugar,, ressoaram na sala umas palmas oficiosas e tépidas, nem mais nem menos calorosas do que as que acolhem, neste tipo de reuniões, intervenções idênticas, do Burundi a... Portugal.

Recolhido o ministro ao conforto patrioticamente consensual da nossa bancada, uns nossos "parabéns!", ou "esteve muito bem!" sossegaram-no. Nesse instante, o largo bando de "orelhas de aço" presentes, quais abutres à procura de presa fácil, começou a avançar, de todas as partes da sala, sobre a nossa delegação, com a finalidade de colher exemplares do texto, que entretanto tínhamos fotocopiado às largas dezenas. Não foi essa, contudo, a interpretação do nosso inexperiente ministro. Convencido que todos esses diplomatas de deslocavam à delegação portuguesa para o cumprimentar, deixou-se ficar de pé, no centro e, para nosso indisfarçado embaraço, passou a distribuir apertos de mão, à esquerda e à direita, gerando espanto e orgulho nessa colmeia de adidos e de terceiros secretários, desses "orelhas de aço", de todas as cores e extrações geográficas, que mais não queriam do que obter simples cópias do discurso. Mas que acabaram presenteados, cumulativamente, com calorosos "merci beaucoup!". Foram alguns minutos em que esperámos, com ansiedade, o fim da romagem, sob o sorriso de alguns velhos "routiers" daquele tipo de eventos.

À saída, tivemos de retorquir ao ministro, que perguntava: "É sempre assim? Vem sempre tanta gente cumprimentar? O nosso discurso caiu bem, não caiu?" Claro que caíu!

sexta-feira, julho 22, 2011

Noruega

Há mais de três décadas, fui viver para a Noruega, por alguns anos. Era um dos países mais pacíficos do mundo. Recordo-me de ver o primeiro-ministro percorrer a pé a rua Karl Johan (na imagem), no caminho para a estação de caminho de ferro, que todos os dias o levava e trazia para o trabalho. Muitas vezes, cruzei-me com ministros que se deslocavam de bicicleta. Vivia-se então em Oslo um sentimento de segurança quase plena.

O rei da época, Olav V, costumava deslocar-se de elétrico, como qualquer vulgar cidadão. Um dia, testemunhei uma cena deliciosa. O soberano, já nos seus 80 e tal anos, conduzia placidamente um carro pelas ruas da capital, apenas com uma pessoa a seu lado. A certo passo, parou junto a uma passadeira, para deixar passar uma senhora. A meio da travessia, a senhora reconheceu o rei e fez-lhe uma grande vénia. O rei retribuiu o gesto e, por uns instantes, ambos repetiram as inclinações de cabeça, numa coreografia de mútuo respeito, recheada de sorrisos.

Era assim a vida na Noruega, nesse final dos anos 70, do século passado.

A Noruega é, de há muito, um país dedicado à paz. Talvez não por acaso, o respetivo prémio Nobel, contrariamente a todos os outros, é decidido e atribuído em Oslo. Ao longo de muitos anos, os governos noruegueses, de várias orientações, empenharam-se, em diversas ocasiões e cenários geopolíticos, em operações de paz decididas pelas Nações Unidas, sendo também protagonistas, de há muito, de importantes processos de ajuda ao desenvolvimento. Foi em Oslo, e com os noruegueses, que a causa palestiniana deu passos que só não foram decisivos porque Arafat, como alguns diziam, "nunca perdia uma oportunidade para perder uma oportunidade". A diplomacia norueguesa é conhecida como uma diplomacia de bem.

Ontem, uma bomba explodiu, causando muitas vítimas, junto à sede do governo norueguês. (Mais tarde, veio a saber-se que um outro ato celerado provocou largas dezenas de mortos). Ainda não se sabem bem as causas desta barbaridade. Mas tudo muda, até a pacífica Noruega.

Deixo aqui um abraço solidário a todos os meus amigos noruegueses, cidadãos de um país com o qual Portugal tem, desde sempre, excelentes relações, reforçadas pelo generoso apoio dado pela Noruega ao processo de desenvolvimento português, no pós-25 de abril.

quinta-feira, julho 21, 2011

Iliteracia política

Alguma curiosidade levou-me a ler um livro, recentemente publicado, sobre a vida do nosso parlamento, com historietas nele ocorridas. Literatura de férias...

O mais surpreendente na publicação foi a ausência de um "editing" eficaz, que permitisse evitar erros como dizer que foi "Costa Gomes" quem fez o 28 de maio de 1926, que o presidente da Câmara Corporativa se chamava Luís "Pico" Pinto ou, finalmente, que Casal Ribeiro ainda perorava no plenário dos anos 80.

E não se pode exterminá-los?

quarta-feira, julho 20, 2011

Despedida do trema

Anteontem, falou-se aqui do Acordo ortográfico. Hoje vou falar do trema.

Há muito que, em Portugal, o trema - esses dois pontinhos sobre certos "u", para obrigar a pronunciá-los isoladamente - deixou de existir. Mas, no Brasil, só agora, com a implementação do Acordo Ortográfico (é verdade, no Brasil também mudam algumas coisas...), o trema vai desaparecer. E, nesse país, resolveu despedir-se com uma bela carta, que me chegou e que reproduzo:

Estou indo embora. Não há mais lugar para mim. Eu sou o trema. Você pode nunca ter reparado em mim, mas eu estava sempre ali, na Anhangüera, nos aqüíferos, nas lingüiças e seus trocadilhos por mais de quatrocentos e cinqüenta anos. Mas os tempos mudaram. Inventaram uma tal de reforma ortográfica e eu simplesmente estou fora. Fui expulso para sempre do dicionário. Seus ingratos! Isso é uma delinqüência de lingüistas grandiloqüentes!... O resto dos pontos e o alfabeto não me deram o menor apoio...  A letra U se disse aliviada porque vou finalmente sair de cima dela. O dois pontos disse que eu sou um preguiçoso que trabalha deitado enquanto ele fica em pé. Até a cedilha foi a favor da minha expulsão, aquele C cara de pau que fica se passando por S e nunca tem coragem de iniciar uma palavra. E também tem aquele obeso do O e o anoréxico do I. Desesperado, tentei chamar o ponto final para trabalharmos juntos, fazendo um bico de reticências, mas ele negou, sempre encerrando logo todas as discussões.... A verdade é que estou fora de moda. Quem está na moda são os estrangeiros, é o K e o W, "Kkk" pra cá, "www" pra lá. Até o jogo da velha, que ninguém nunca ligou, virou celebridade nesse tal de Twitter, que aliás, deveria se chamar TÜITER. Chega de argüição, mas estejam certos, seus moderninhos: haverá conseqüências! Chega de piadinhas dizendo que estou "tremendo" de medo. Tudo bem, vou-me embora da língua portuguesa. Foi bom enquanto durou. Vou para o alemão, lá eles adoram os tremas.E um dia vocês sentirão saudades. E não vão agüentar!... Nós nos veremos nos livros antigos. Saio da língua para entrar na história. Adeus, 
TREMA

"Serviço público" - restaurantes do Minho (revisto)

Pode consultar aqui a minha lista pessoal de restaurantes do Minho.

terça-feira, julho 19, 2011

Ulan Bator

Há dias, disse à embaixatriz da Mongólia em França, sentada ao meu lado num jantar, que um sobrinho meu ia, de moto, a caminho da capital do seu país, Ulan Bator, partindo de Lisboa. 

Fiquei com a sensação que ela achou que era uma "história" e disse aquele "how interesting!" que a boa educação recomenda, em sociedade, que acolha aquilo em que não se acredita de todo. E logo mudou de conversa.

Tenho pena de não poder dizer-lhe, hoje, que ele já lá chegou.

Bom regresso, Paulo!

Federalismo europeu

Durante muitos anos, o conceito do federalismo europeu fez o seu caminho com base na ideia de que os cidadãos, satisfeitos com a Europa que já tinham, acabariam por ganhar a convicção de que terem ainda "mais Europa" seria a boa receita para um seu futuro de progresso, como até então tinha acontecido. Essa ideia não vingou a partir do momento em que a Europa "tocou" nas temáticas mais próximas do "core" da soberania dos Estados e em que, simultaneamente, se verificou que a dinâmica de certas políticas, por razões próprias ou conjunturais, não tinha um comportamento positivo.

A derrotada Constituição europeia não era - ao contrário do que alguns desatentos pensaram - um passo para um destino federal, mas simplesmente um modelo sofisticado de oligopólio que, com outras roupagens, acabou por resultar no Tratado de Lisboa. Este, tal como aquela, foi a forma de garantir a quantos se haviam habituado a controlar o processo europeu antes do "grande alargamento" que não veriam o seu poder relativo afetado após a concretização deste. Mas, para que tal fosse possível, era necessário reduzir drasticamente o papel do principal elemento proto-federal europeu, a Comissão europeia. O que foi feito.

A ideia do federalismo volta agora a surgir no discurso europeu, mas por um motivo completamente oposto: pela ineficácia das políticas europeias em vigor e pelo fracasso de vários aspetos do atual projeto, como sendo a solução, embora sectorialmente fixada no caso da moeda, que poderia permitir encontrar uma saída para a crise. A grande ironia do atual debate é que se pretende "federalizar" a Europa, num tempo em que muitos Estados se sentem, à sua escala nacional interna, confortáveis com a deriva intergovernamental que entretanto ocorreu, muito por via do Tratado de Lisboa.

O caráter contraditório de tudo isto é que, no primeiro caso, o passo federal iria corresponder à evolução da vontade democrática dos povos e, no caso presente, ele configuraria apenas a consagração de um voluntarismo, forçado por um imperativo de um estado político de necessidade, em contra-ciclo com a própria dinâmica dominante no projeto europeu.

A politica não se faz de "fezadas". Mas, devo dizer, não acredito que seja possível instituir um modelo alternativo ao que temos, com um grau de integração ou "federalização" superior, se se pretender que ele venha a abranger todos os "sócios" atuais. E, mesmo nesse modelo mais restrito, essa "federação" nunca passaria de uma espécie de "condomínio" de oportunidade, uma espécie de "cooperação reforçada" de natureza sui generis.

Mas aguardemos, para ver.

segunda-feira, julho 18, 2011

Acordo Ortográfico

Eu sei que há quem não goste do Acordo ortográfico (nestas expressões, a segunda palavra passa a escrever-se com minúscula). Eu sei que há quem nunca tencione aplicá-lo. Mas ele vai tornar-se obrigatório na documentação oficial a partir de 1 de janeiro de 2012 (os meses, tal como as estações do ano, passam a escrever-se com minúscula).

Por essa razão, para quantos queiram conhecer o que vai mudar, de facto (a palavra facto não muda, contrariamente a todos os mitos, porque vamos continuamos a escrever as letras que pronunciamos), na escrita oficial portuguesa, pode consultar uma versão simplificada aqui.

Olá, Moledo!

domingo, julho 17, 2011

Dicionário

A trabalheira que algumas pessoas têm para explicar uma coisa tão simples.

(com a devida vénia aqui)

O outro défice

Todos os agentes da lisboeta esquadra das PSP das Mercês meteram baixa, com atestado médico, por terem ficado psicologicamente afetados, numa tocante reação simultânea, pela decisão judicial que condenou colegas seus, culpados de um crime de agressão gratuita a um cidadão estrangeiro.

Ninguém pode ficar indiferente à sensibilidade fraternal daqueles agentes. De idêntica dignidade é o comportamento, de um unanimismo que honra o juramento de Hipócrates, dos zelosos profissionais da classe médica que não hesitaram em atestar a tocante fragilidade psicológica dos polícias.

É com gente desta estirpe que um país se constrói.

sábado, julho 16, 2011

Férias

De uma cadeira para a outra, este blogue muda de registo durante as férias.

Fará posts? Fará pausas? Calado não é certamente, porque não foi habituado assim. É talvez um outro ritmo, mas no passado, desde sempre, nem um só dia ficou, sem registo do caminho.

(Fiquei a olhar para o parágrafo anterior e, nem sei bem porquê, fez-me lembrar alguma coisa...)

quinta-feira, julho 14, 2011

Olá, amigo!

Estou contigo. Entendo que merecias ser tratado, em Portugal, de outra forma. O modo, ainda que simpático, como o polícia te interpelou, há dias, naquela esquina do Terreiro do Paço, soou a estranho. Que diabo! Chamar-te a atenção pelo fumo! Como se isso fosse um grande crime, no meio da rua, com a tua idade...

Faz agora precisamente 21 anos que nos encontrámos pela primeira vez, em Londres, estavas tu recém-chegado da tua Alemanha natal. Durante mais de quatro anos, tivemos um convívio muito agradável, quase quotidiano. Deste mostras de te adaptares bem aos costumes britânicos. Sentias-te verdadeiramente em casa.

Mudaste-te depois para Portugal, onde cuidámos em encontrar lugar para te acolheres e teres ocupação, embora nem sempre contínua. Em certos períodos, convivemos pouco, andávamos mais com outros amigos. É que tu havias-te habituado, desde muito cedo, a ir, de forma muito radical, pelos caminhos da esquerda. Cada um é como é, mas essa tua idiossincrasia teimosa, devo dizer-te, chegou a preocupar-nos, temendo que pudesse ter consequências nefastas, que te levasse a inconvenientes choques, que não te adaptasses ao novo ambiente. Gostes tu ou não, as coisas, aí por Portugal, são o que são...

Passaste muitas férias conosco, fizemos imensas viagens em conjunto. Com a nossa vida saltitante, tempos houve em que nos separámos, por longos meses. Mas sempre nos reencontrávamos, pelas nossas idas a Lisboa. E foste nossa companhia regular por esse país fora. Testemunhaste alegrias, estiveste presente em alguns momentos menos bons. Mostraste ser um amigo fiel e seguro. Às vezes, encontrávamos-te um pouco em baixo, sem energia, a tua saúde preocupava-nos, pregaste-nos alguns sustos, mas sempre te recompuseste. Não vale a pena esconder que tens alguns vícios - para além do fumo! -, porque pertences a uma geração marcada pelo excesso do consumismo. Infelizmente - sei que não vais gostar que diga isto, mas aqui vai! -, bebias (e bebes!) um pouco demais. Nunca vimos remédio para isso mas, reconhecerás, sempre tentámos conduzir-te da melhor forma que sabíamos. Gastámos contigo tudo quanto foi necessário para que nada te faltasse, para o teu pleno bem-estar. E sempre te perdoámos todos os teus excessos, porque gostamos de ti.

Mas a vida é o que é. Agora, tudo assim o indica, mais cedo ou mais tarde, vais deixar-nos, de vez. Podes crer que, quando esse momento chegar, vamos ter muitas saudades tuas. Mas ainda não é tempo para falar de coisas tristes. Hoje à noite, em Lisboa, vamo-nos encontrar de novo. Iremos ao Procópio e, depois, partiremos juntos para férias, no norte do país. Até logo, carro amigo!

(Carta aberta ao meu BMW, de 1990, com britânico volante à direita, o único carro que possuo em Portugal e que agora vai deixar de ser autorizado a passar pela Baixa lisboeta e, dentro de um ano, de circular por toda a cidade, por exceder os níveis de poluição determinados por lei).

"14 juillet"

No dia da sua Revolução de 1789, a França homenageou hoje as suas tropas, como é de regra, com um desfile militar pelos Champs Élysées.

O desempenho dos militares franceses em teatros de guerra, onde cumprem missões legitimadas por mandatos internacionais, justifica bem este gesto de gratidão.

Ainda ontem, no Afeganistão, cinco militares franceses morreram naquela que é uma das novas fronteiras da nossa segurança.

Às vezes, os cultores de certas escolas de pensamento, motivados por preconceitos ideológicos ou por animosidades políticas, tendem a esquecer que há operações militares justas. E que temos obrigação de saudar os militares que nelas se empenham.  

quarta-feira, julho 13, 2011

Jan Kulakowski

Tínhamos uma considerável diferença de idades mas, pelo que me apercebi nos vários contactos que com ele tive, não tínhamos grandes diferenças em relação à ideia da Europa. Falava um francês magnífico, como muitos polacos da sua geração.

Jan Kulakowski, que até há dois anos era deputado europeu, teve a seu cargo o dossiê da integração europeia, no gabinete do seu primeiro-ministro, nos anos 90. Sindicalista de origem, foi locutor de rádio e chefiou a delegação polaca junto da União Europeia.

Conheci-o em Bruxelas, em fins de 1995. À primeira vista era um homem fechado, mesmo difícil. À medida que conosco se abria, descobríamos uma figura muito elaborada, com um grande culto pela história. Uma noite, num jantar na embaixada polaca no Restelo, contou-me pormenores muito interessantes da história do movimento sindical na Polónia, que haveria de ser a grande alavanca para o futuro democrático do país. Fez-me então perceber esse mundo de contradições em que emergiu Lech Walesa. Era um sábio e disse-me uma frase que nunca esqueci: "Amo a Europa porque amo a Polónia". 

Morreu há dias.

Gulbenkian

A Fundação Calouste Gulbenkian vai mudar de instalações, em Paris, a partir do segundo semestre deste ano. No edifício da avenue d'Iéna onde, desde há quase meio século, tem estado instalado o seu Centro Cultural, e que foi a casa do próprio Calouste Gulbenkian ao tempo em que por aqui viveu, está aberta, até Setembro, uma curiosa exposição intitulada "Memória do sítio", a qual, para além de recordar a vida de Gulbenkian, faz um interessante passeio pela vida da própria casa - que, em si mesma, é um belo objeto arquitetónico. O catálogo da exposição é excelente, por ser, ao mesmo tempo, um útil repositório histórico.

Ontem estive por lá, naquele que foi um dos últimos atos culturais destes tempos do edifício da avenue d'Iéna. Com Emílio Rui Vilar, presidente da Fundação, tive oportunidade de encontrar Paula Rego, que vai ter uma sua exposição naquele espaço, daqui a uns tempos. 

Aproveito a ocasião para deixar aqui uma palavra de grande admiração, pessoal e institucional, pelo magnífico trabalho, que tenho tido o ensejo de testemunhar, ao longo destes mais de dois anos, levado a cabo pelo diretor do Centro Cultural Gulbenkian em Paris, e, simultaneamente, diretor internacional da Fundação, João Pedro Garcia. A ação da Gulbenkian em Paris, onde foi o oitavo diretor da história do Centro, não teria tido o brilho que teve se não tivesse sido dirigido pela sua mão culta e eficaz.

A foto que ilustra este post é de Jorge Molder, está na capa do catálogo da exposição e representa a escadaria da casa de Gulbenkian em Paris.

As ditaduras e a diplomacia

A conversa decorria aí há uns vinte minutos. As relações de Portugal com aquele país, que eu passara em revista com o respetivo embaixador, que viera a Lisboa apresentar as suas cartas credenciais, não justificavam uma audiência muito mais longa.

O país que representava era uma ditadura, daquelas que o mundo não hesita a qualificar como tal, mas que teimam em apresentar-se como modelos das "mais amplas liberdades". Na fase final da conversa, aproveitei para deixar alguns "recados" que a União Europeia sempre enviava às autoridades desse Estado, os quais justificavam as reticências que, sobre o seu regime, mantínhamos e que limitavam a nossa abertura coletiva a uma maior cooperação.

Por um acaso, eu conhecia aquele embaixador, há já alguns anos. Havia sido ministro dos Negócios Estrangeiros do seu país e, à minha frente, ele ouvira em Bruxelas coisas muito mais violentas do que aquelas que eu agora lhe dizia, com alguma serenidade, a qual tinha também algo a ver com a simpatia pessoal que o homem me despertava.

Deixou-me falar até ao final e, quando terminei, pediu: "Importava-se que a nossa conversa continuasse sem a presença da sua colaboradora?". A minha adjunta, que tomava notas, saiu, a um sinal meu.

E foi então que me disse: "Desculpe esta minha atitude, mas eu precisava de falar consigo, a sós. Desde que nos conhecemos, Portugal, tem sido impecável conosco. Vocês dizem-nos o que o vosso governo pensa sobre o nosso regime, mas essas críticas têm sempre um tom construtivo, sem arrogância ou paternalismos. Gostava que soubesse que nós respeitamos muito o modo como Portugal atua".

Achei interessante, mas o que acabava de dizer não justificava o "tête-à-tête" solicitado. O que adiantou, de seguida, deixou tudo mais claro: "Nós conhecemo-nos já há algum tempo. Tenho defendido, da melhor forma que sei e posso, os interesses do meu país. Mas não imagina o que significa representar um Estado que é dirigido por um louco, por um déspota, que nos esmaga e que nos isola do mundo". E foi, por aí adiante, num requisitório em que revelou que vários colegas seus pensavam da mesma maneira, mas viviam aterrorizados e limitados naquilo que podiam fazer.

Já aqui escrevi, um dia, que a última coisa que um diplomata deve fazer, perante estrangeiros, é dizer mal das autoridades do seu país. Como dizem os americanos, "my country, right or wrong". Porém, devo dizer que fui sensível à tragédia daquele homem, um patriota confrontado com um ditador. Na diplomacia, como na vida, todas as regras têm exceções.

Porque é que me lembrei disto, hoje? Porque, há pouco, encontrei um outro diplomata desse país, que, já nem sei bem a propósito de quê, me começou a tercer loas sobre o seu bem-amado líder, uma figura funesta que permanece na cena internacional. Olhei ostensivamente para o meu relógio e achei que eram horas de mudar de ares.

terça-feira, julho 12, 2011

A hora da crise

Há quem pense que a zona euro pode estar a entrar no seu verdadeiro primeiro momento de verdade. O alargamento da situação de fragilidade de uma economia nacional com a dimensão e a importância da Itália, a confirmar-se a sua gravidade, conduz agora a crise europeia para um patamar diferente. 

Já não se tratará, simplesmente, de controlar derivas de economias periféricas, com mais ou menos "panos quentes" e "espadas de Dâmocles" individualizadas, mas de decidir, de uma vez por todas, se um projeto monetário comum pode, ou não, sobreviver sem instauração de outros mecanismos de natureza compensatória ou instrumentos criativos de financiamento, como os "eurobonds". Porém, a viabilidade destes modelos está dependente de um conjunto tão complexo de variáveis, nas muito diversas ordens políticas nacionais, que começa a ser legítimo interrogarmo-nos sobre se isto não será "areia demasiada" para a "carroça" europeia. 

Ontem à noite, um observador com grande experiência nestas andanças europeias dizia-me que temia que, um destes dias, um projeto que demorou décadas a construir pudesse ruir, como um castelo de cartas, em pouco tempo. Esperemos que este pessimismo não tenha razão de ser, até porque o modelo europeu tem agregado a si um conjunto de realizações (em especial, algumas políticas comuns), independentes do projeto da moeda única, que seria de grande irresponsabilidade pôr em causa.

Uma coisa é certa: em qualquer desses cenários, o saneamento das contas públicas, como aquele que Portugal está a levar a cabo, com grande coragem e determinação, continuará sempre a ser essencial. Não é por uma doença deixar de ser individual e, eventualmente, começar a mostrar-se como epidémica, que devemos deixar de tratar-nos.

Jornais

A realidade é a mesma, os olhares têm subliminares diferenças. Descubra-as:

"Dois anos de recessão profunda, prevê o Banco de Portugal", escreve o "on-line" do "Público".

"Banco de Portugal prevê recessão menor que a troika", no "site" do "Diário de Notícias".

segunda-feira, julho 11, 2011

Telemóveis

Cada vez me "passo" mais com os toques e as conversas de telemóvel em público. Eu sei que isso acontece a muitos, mas eu queixo-me aqui das minhas penas.

Há poucos dias, numa cerimónia religiosa com elevada tensão emocional, um telemóvel tocou. Pode acontecer a qualquer um, por distração. Porém o "paralelepípedo batizado" (era assim que o meu pai qualificava alguns patetas) em lugar de desligar de imediato, atendeu em voz baixa, para espanto de todos. Grunhiu uma coisas e - pensámos nós! - desligou o aparelho. Qual quê! Um minuto depois, o telefone voltou a tocar e, não fora uma espécie de onda de ameaça física de toda a vizinhança, preparava-se para responder de novo.

No dia seguinte, na sala de espera do aeroporto de Lisboa, uma mulher incomodou todos os circunstantes, alimentando com voz de ave canora uma longa conversa, como se os outros fossem obrigados a aturar as peripécias da sua vida e da família. Alguns estrangeiros, à volta, riam do ridículo da situação. Há leis para tudo, menos para acabar com estes espetáculos.

Recordo-me que, um dia, em Brasília, o pianista Adriano Jordão - que era também conselheiro cultural da nossa embaixada - dava um concerto. A sala estava cheia. O pianista iniciou a peça. Tocou um telefone. O Adriano Jordão parou de tocar e, voltando-se para a senhora que, com desespero, tentava calar a máquina, disse:

- Faça-me um favor. Se for para mim, diga que não estou...

Cortiça

3,3 biliões de rolhas de cortiça - isto é, uma para cada seis garrafas de vinho em todo o planeta - são vendidos anualmente pelo grupo Amorim, que tem em França, perto de Bordéus, uma filial, que tive oportunidade de visitar, em 2009.

O administrador do grupo, António Rios Amorim - que, por coincidência, é meu colega no Conselho Geral da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro -, deu uma entrevista ao importante diário Sudoeste onde também revela que, depois de um crescimento de concorrentes plásticos, "a rolha de cortiça está de volta". Boas notícias.

domingo, julho 10, 2011

Jorge Lima Barreto

Duvido que o Jorge Lima Barreto, que agora morreu, se identificasse com a imagem caricatural do jazz que transparece desta tapeçaria do chileno Pedro Huart. Ele era mais de um "outro jazz", de um estilo com o qual nunca tive grande afinidade.

Fui amigo do Jorge desde os tempos de liceu, em Vila Real, onde ele apareceu, vindo da sua Vinhais natal, para fazer o antigo 5º ano do liceu. Era uma figura atípica, agitada, de olhar entre o grave e a gargalhada, que perturbava a serena cidade transmontana, naqueles anos 60.

Perdemo-nos de vista por algum tempo. Voltámos a ver-nos em Lisboa, a espaços, quando as coincidências isso propiciavam, cada um nos seus mundos, bem diferentes. Às vezes, lia com curiosidade o que ele escrevia. Procurei ouvir, com esforçada atenção, o que ele interpretava. Como disse, não fui muito sensível a ambos os registos mas, entre nós, mantinha-se, nas episódicas breves conversas, aquela confortável memória de tempos antigos.

Há uns anos, no Brasil, através do seu irmão, o ator Luis Lima Barreto, mandei-lhe o meu penúltimo abraço. Aqui vai o último. 

"Tour de France"

"O senhor chama-se Costa? Um português com o nome de Costa acaba de ganhar a etapa do "tour" - ouvi do empregado de balcão, ao registar-me num hotel de Rouen, ao final da tarde de ontem. Ganhou um sorriso meu, do tamanho do mundo.

É muito bom ser testemunha privilegiada dos êxitos de portugueses em França.

sábado, julho 09, 2011

Otão de Habsburgo

Só hoje falo do desaparecimento de Otão de Habsburgo, que teve lugar há já uns dias. Mas este atraso não tem a menor importância, porque também ele fez esperar a morte pelos muitos e bons 98 anos.

Sai de cena um descendente de outra Europa, o herdeiro virtual do império austro-húngaro. Acabou por ser protagonista ativo da Europa contemporânea ao manter-se, durante 20 anos, deputado ao Parlamento Europeu e um ardente defensor da unidade europeia. Politicamente cultivava opções ideológicas muito conservadoras.

Otão de Habsburgo viveu uma parte da sua vida em Portugal. Foi um dos beneficiados com os vistos dados por Aristides Sousa Mendes, o que permitiu à sua família atravessar a fronteira franco-espanhola e seguir para o exílio nos Estados Unidos, através de Portugal.

Conta-se que, um dia, ao ouvir dizer que havia um jogo de futebol Áustria-Hungria, terá perguntado: "contra quem?".

A comandante

Ontem à tarde, no início do voo Paris-Lisboa, antes das boas-vindas aos passageiros, ouvi uma hospedeira perguntar para outra: "Digo 'a comandante" ou 'o comandante' ?". Quem dirigia o avião era uma senhora. Disse "a comandante", claro.

Durante o voo, li uma longa entrevista de Maria Filomena Mónica a Anabela Mota Ribeiro, no "Jornal de Negócios". Nela se falava muito dos homens, do papel de afirmação da mulher na sociedade e de uma suposta complacência machista-latinista dominante em França no caso Dominique Strauss-Kahn (quem terá criado esta falsa ideia em Portugal?). Sintomática é a forma como o texto acaba: perguntada pela entrevistadora se a conversa teria decorrido do mesmo modo se tivesse sido um homem a colocar-lhe as perguntas, Maria Filomena Mónica (cito de cor) disse que não, que nesse caso teria sido mais agressiva nas suas respostas.

Não tem muita graça ver o machismo do outro lado do espelho.

sexta-feira, julho 08, 2011

Diogo Vasconcelos

Não conhecia pessoalmente Diogo Vaconcelos, que ontem faleceu em Londres. Mas tinha (e ainda tenho) a honra dele figurar como seguidor deste blogue - onde aparece numa fotografia com a muralha da China por detrás, que aqui prefiro a outras existentes na net com melhor resolução.

Temos amigos comuns, sabia que era das grandes figuras portuguesas dedicadas às novas tecnologias e recordo bem o seu sorriso amável em algumas ocasiões em que o vi na televisão.

Ontem fui a Lisboa despedir-me de uma amiga. Hoje, despeço-me aqui de um amigo virtual, que segue a mesma viagem.

Ainda as agências de notação

Quem estiver interessado pode consultar o artigo que hoje publico no principal diário económico francês sobre o comportamento das agências de notação financeira quanto à economia portuguesa.

O texto foi enviado na tarde de quarta-feira para o jornal. A questão colocada no seu último parágrafo acabou por ser (parcialmente) respondida ontem à tarde pelo Banco Central Europeu. Só nos podemos felicitar.

Leia o artigo (em francês) aqui (ou aqui) ou em português aqui.

A pedido da TSF, comentei o artigo desta forma.

quinta-feira, julho 07, 2011

Cátedra Solange Parvaux

Na vida diplomática, acontece-nos ter na ideia nomes de algumas figuras estrangeiras que, por uma razão ou por outra, se dedicaram ou dedicam, nos respetivos países, às coisas da cultura portuguesa. Solange Parvaux é uma dessas figuras míticas ligadas ao ensino da língua portuguesa em França, mas já havia desaparecido quando, em 2009, fui colocado na Embaixada em Paris.

Pedagoga e inspetora do ensino francês, Solange Parvaux "apaixonou-se" pelo português, tendo estado na origem da "Association pour le Développement des Etudes Portugaises, Brésiliennes, d’Afrique et d’Asie lusophones" (ADEPBA), sendo autora de vários livros sobre a nossa língua. A ela se deve um impulso decisivo para a consagração do português no ensino oficial francês.

Na terça-feira passada, tive o gosto de proceder, na Embaixada, à assinatura, em representação do Instituto Camões, conjuntamente com a presidente da universidade Paris III (Sorbonne Nouvelle), Marie-Christine Lamardeley, de um protocolo que institui a cátedra Solange Parvaux, naquela universidade.

Responsáveis universitários, amigos e admiradores de Solange Parvaux estiveram presentes nesse evento, onde tive ocasião de lembrar que o ensino da língua portuguesa na Sorbonne data já de 1919 e que, em 1930, foi criado naquela universidade o primeiro leitorado de português. Nestes tempos em que continuamos a procurar garantir um melhor lugar para a língua portuguesa no sistema oficial francês, o empenhamento do Estado português na criação desta cátedra parece-nos ser um bom testemunho da nossa determinação em assegurar esse objetivo.

Porque a ocasião foi também um momento festivo, houve música pela pianista Clare Longedike, numa colaboração com a Casa de Portugal/Residência André de Gouveia, na Cité Universitaire de Paris.

quarta-feira, julho 06, 2011

Para a Maria José

E isto lembra uma tristeza
E a lembrança é que entristece,
Dou à saudade a riqueza
Da emoção que a hora tece.

Fernando Pessoa

Notações

Uma agência de "rating" internacional acaba de baixar a classificação de Portugal, assinalando um aumento de risco em torno da nossa economia, fazendo disparar os juros das obrigações portuguesas.

A publicação deste parecer, na véspera de um leilão de dívida, encarecerá os custos do Estado. Mas, essencialmente, acarreta um peso acrescido no normal processo de endividamento de outras entidades públicas e privadas, cujo respaldo do Estado português surge agora enfraquecido, com garantias mais difíceis de concretizar.

Não importa aqui "chover no molhado" sobre os critérios dessas agências, apenas sendo justo lembrar uma vez mais que o seu atual rigor serve, de certa forma, para compensar o olhar distraído que elas tiveram, durante anos, perante os riscos de muitos produtos financeiros sem credibilidade, que estiveram na origem da atual crise. 

O que agora afeta, na perspetiva dessas agências, a situação portuguesa, não tem em mínima consideração os esforços que as autoridades portuguesas estão a levar a cabo, colocando em prática, com um apoio político maciço e com um imenso sentido de responsabilidade, um programa de um rigor orçamental sem precedentes. 

No passado, como foi o caso das intervenções externas nos anos 70 e 80, o nosso país já havia dado mostras de ter capacidade para superar graves crises macroeconómicas. E a disposição corajosa que agora Portugal está a demonstrar é a melhor prova de que tudo faremos, uma vez mais, para superar esta nova situação. Mas nem a serenidade responsável com que o povo português está encarar o esforço que lhe é solicitado parece convencer os "olheiros" das agências de notação da nossa determinação.

Agora tudo se passa como se os rumores em torno de uma possível reestruturação da dívida grega, fruto de uma situação nacional muito específica que todos reconhecem diferente da nossa, tenham necessáriamente que arrastar Portugal para um tratamento idêntico pelos mercados.

Não deixa de ser irónico que, tendo o nosso país acordado com as instituições europeias e com o FMI um pacote de profundas reformas e de cortes drásticos na despesa pública, algumas das quais antecipadas já por nossa decisão autónoma, as agências de notação acabem, afinal, por mostrar-se "mais papistas do que o papa".

Será talvez legítimo pensar que a União Europeia, e, dentro desta, os atores principais que definem as opções de reforço da zona euro, talvez devesse refletir bem no facto de que esta permanente "navegação à vista", com decisões cumulativas "ad hoc", suscitadas em resposta à corrente dos acontecimentos, vai ser o melhor aliado do jogo especulativo dos mercados. Esta política de medidas avulsas acaba, sem a menor dúvida, por tornar muito mais caro agora aquilo que uma atempada decisão, firme e consequente, já poderia ter estancado há muitos meses. 

O que se passou nas últimas semanas, com alguma cacofonia contraditória entre a linha política do BCE e as iniciativas em torno dos "heterónimos" criativos com que alguns tentam tratar a ideia de reestruturação da dívida grega, aí está a mostrar os seus indesejáveis frutos.

(este texto serviu-me de "inspiração" para o artigo que, no dia 8.7.11, publiquei nos "Les Echos" - ver mais acima)

terça-feira, julho 05, 2011

Condecorações

Olhar para as condecorações dos outros, de forma mais ou menos discreta, é um vício que é muito típico de alguns diplomatas. Há dias, numa cerimónia no Mónaco, vi que um colega meu se fixava atentamente numa condecoração vermelha que eu trazia na lapela. A certa altura, não resistiu: "Que condecoração é essa? É a "Légion d'Honneur" francesa?", inquiriu.

Não, não era, expliquei-lhe. Era "apenas" a nossa Ordem de Cristo. "Mas tu, em Paris, andas sempre com outra condecoração na lapela!", retorquiu. Expliquei que assim era porque, em França, usava, por regra, uma condecoração que, em tempos, me tinha sido atribuída pelo governo francês, muitos anos antes de eu pensar em vir viver para Paris. E lembrei-lhe algo que pouca gente sabe: existe uma legislação francesa, datada do século XIX, que proíbe os cidadãos franceses de usarem, no seu território, as insígnias da Ordem de Cristo e de uma ordem da Santa Sé cujo nome não lembro, apenas porque ambas têm a mesma côr que a "Légion d'Honneur" e podem confundir-se com ela.

Lembro esta mania dos diplomatas curiosos, a propósito de uma história que o meu amigo Jaime Nogueira Pinto me contou, há uns tempos. Era a propósito de um militar que trabalhava no gabinete do presidente Óscar Carmona, nos anos 40 do século passado e que tinha então a seu cargo o serviço do protocolo. Por diversão e interesse cultural, esse coronel tornara-se num especialista em condecorações estrangeiras. Identificava-as e sabia a história de cada uma.

Numa certa receção, nesses tempos idos da ditadura, o seu olhar fixou-se nas condecorações vistosas de um embaixador latino-americano, que tinha a casaca pejada de insígnias. Com a complacência do hiper-condecorado, lá foi revelando os nomes das ordens de que esse diplomata era portador. Mas, a certo ponto, embatucou: "que condecoração é esta? Nunca a vi!". O diplomata, sobranceiro, respondeu-lhe: "Pois se o senhor as conhece todas, também tem de conhecer esta. Mas não lhe vou dizer o nome. Descubra!..."

A evolução da receção fez com que o militar e o diplomata acabassem por se separar antes do mistério ser esclarecido. É nessa altura que, com um sorriso, este último se volta para um colega português e lhe diz: "Gostei de ver a cara do vosso militar. Não conseguiu descobrir que condecoração era esta. Pudera! Fui eu que a desenhei e que a mandei fazer para mim mesmo...".

Depois de ouvir esta história, já tenho dado comigo a pensar se todas as condecorações que brilham no peito de alguns dos meus colegas são verdadeiras.

Tomar nota!

Portugal é o 5º maior produtor de vinhos da Europa e o 10º a nível mundial.

domingo, julho 03, 2011

Etimologias

O ambiente era excelente, naquele restaurante tradicional de uma velha cidade do mundo árabe, em que as autoridades nos ofereciam um almoço, com as melhores especialidades locais. Sentávamo-nos em largos almofadões e cruzávamos as pernas para poder aceder às vitualhas que, com abundância, nos eram trazidas por ondas cíclicas de fâmulos, intervaladas por momentos em que nos aspergiam com água perfumada. A ocasião estava a ser muito agradável, a temperatura fresca da sala ajudava a compensar a manhã de intenso calor, que fora passada em visitas a empresas e a obras públicas. A diplomacia económica estava a ter uma merecida pausa gastronómica.

Era patente uma hesitação, entre alguns membros daquela delegação oficial portuguesa, quanto ao modo como abordar certos pratos. Eu era um desses hesitantes. É que, em muitos casos, e por exclusão de partes, não se via outra solução senão usar as mãos para comer aquilo que nos ia chegando às mesas redondas de latão desenhado, pelas quais informalmente nos distribuíamos. E a verdade é que havia quem nisso tivesse alguma relutância, como era o meu caso.

Um dos colegas desse grupo português, com uma profissão técnica que nem recordo, dava-se, contudo, ares de grande familiaridade com os hábitos daquele tipo de refeições, forte de experiências de que se gabava, tidas em desertos e oásis, sobre as quais contava histórias das arábias, num "estrangeiro" algo macarrónico. Isso seria o menos, se tal familiaridade não o levasse a assumir algumas atitudes de muito mau gosto, de escassa elegância e educação. O seu avançar ansioso para a comida, dando uma imagem quase famélica, começava a incomodar-nos, aos olhos dos nossos delicados anfitriões. É que, perante tudo quanto nos era servido, ele chafurdava de imediato as travessas, de forma quase obcena, com as mãos e até a cara a resplandescerem já de coisas oleosas. Falava com a boca cheia e aberta, monopolizava o diálogo, como se o mundo lhe fugisse e todos tivéssemos obrigação de ouvir os seus percursos de mil-e-uma-noites. O espetáculo estava longe de ser edificante para as cores nacionais, que ali representávamos, nesse tempo, já longínquo, em que a diplomacia portuguesa  procurava reforçar a sua relação económica com o mundo árabe.

A conversa daquele nosso técnico, resvalou, a certo passo, para o consabido lugar-comum com que a generalidade dos portugueses avança, quando têm um árabe à mão: a origem de certas palavras começadas por "al". Desde há muitos anos, na vida diplomática e social, costumo medir o tempo que este tema demora a chegar à tona, sempre que estamos perante pessoas de origem árabe. Pela minha experiência, raramente passa dos cinco minutos...

Agarrando com uma mão uma coxa de frango, com a outra à busca de fritos que, aparentemente, não queria deixar arrefecer nas travessas, falava ele então de Alcantarilha, de Alcoutim, de Almeirim e de coisas do género, num imparável chorrilho de lembranças em "al", que tem sempre como momento de suprema erudição o significado de Alcântara (para "a ponte") e de Algarve (para "o ocidente"). Os nossos anfitriões, coitados, não podendo fazer outra coisa, sorriam.

O nosso homem, a certa altura, soergueu-se das almofadas, atravessou-se por cima da sua mesa, pela frente das pessoas, e, ao tentar agarrar um pedaço de borrego que acabara de chegar numa travessa, com ótimo aspeto, escorregou e o braço deslizou-lhe para um prato oleoso, logo apanhando na manga do fato uma imensa nódoa, das que fazem as delícias profissionais do "5 à Sec". 

Mesclada com manifestações oficiosas de pena, atravessou-nos uma irreprimível risada coletiva, como se todos estivéssemos à espera que, mais cedo ou mais tarde, a justiça divina acabasse por se abater sobre aquele triste comportamento.

Eu era então um jovem diplomata, irreverente e de graça rápida, que me sentia incomodado pela imagem que aquele colega estava ali a dar do nosso país. E não resisti. Fazendo uma cara um pouco mais séria, dando-me ares de, muito simplesmente, querer prolongar a conversa etimológica que ele tinha iniciado, perguntei: "Diga-me lá: você acha que "alarve" também é uma palavra de origem árabe?".

Os portugueses à volta das pequenas mesas encangalharam-se a rir. Os árabes não percebiam o que se estava a passar. O homem, que não era parvo nenhum, fusilou-me com o olhar e, por pouco, não terei apanhado com uma daquelas travessas de especialidades oleosas. Nunca mais me falou. Até à sua morte, há já alguns anos.

sábado, julho 02, 2011

Montfermeil

Nunca tinha ligado o nome de Montfermeil, um dos cenários do "Les Misérables", a famosa obra de Victor Hugo, à localidade existente com esse nome, nos arredores de Paris.

Nesta como noutras cidades próximas na região suburbana parisiense, residem cidadãos portugueses e na respetiva municipalidade há já eleitos luso-descendentes. Monfermeil tinha sido, em 2009, uma das minhas primeiras deslocações fora de Paris, após a minha chegada.

Na passada sexta-feira, correspondendo a um convite do "maire" da cidade, Xavier Lemoine,  estive presente numa representação "son et lumière" do "Les Misérables", realizado no espaço urbano de um "chateau" (o que, no conceito francês, não significa necessariamente "castelo", mas pode, como é o caso, designar um solar ou mansão). Foi uma magnífica experiência, que bem justificou a longa deslocação, em hora de ponta. Tratou-se de um espetáculo de grande qualidade, uma teatrealização levada a cabo por amadores locais, com uma surpreendente originalidade cénica. Tendo visto, no passado, representações musicais do "Les Misérables", em Londres e em Paris, confesso que esta versão teatral esteve bem à altura desses momentos. 

sexta-feira, julho 01, 2011

Mónaco (2)

Atendendo ao facto do embaixador português em França estar também acreditado no Mónaco, ele estará hoje, como convidado oficial, a representar o país, num certo casamento que ocorre naquele principado.

Até amanhã.

quinta-feira, junho 30, 2011

Mónaco

Eu tinha oito anos, mas recordo bem as páginas a-preto-e-branco de "O Século Ilustrado", onde o casamento de um príncipe e de uma bela atriz de cinema, em cenário de luxo, provava a existência de histórias que pareciam perfeitas. 

A vida dos príncipes ou dos reis, como se constata noutras cortes com maior ou menor "glamour", acaba por ser, essencialmente, aquilo que a sorte, o bom senso e a inteligência de cada um conseguir projetar no quotidiano. É claro que as suas tragédias ou percalços são magnificados pelos media, da mesma forma que aquela imagem de "vida-sempre-em-festa" pode ter muito de enganoso. Mas, no fundo, para além da maior ou menor riqueza que possuem, são gente como nós. Até no direito a quererem ser felizes.

Amanhã, tem início um novo capítulo da vida do Mónaco, um principado nosso amigo, onde hoje trabalham vários milhares de cidadãos portugueses. Só podemos desejar felicidades aos noivos e ao Mónaco. 

B & B

Há bastantes anos que ouvia falar daquele restaurante, situado numa certa capital de distrito, onde não vou muito e onde tinha escassas refe...