segunda-feira, dezembro 05, 2016

Ainda as Lajes

... mas desta vez nada tem a ver com os militares. Refiro-me à aterragem de emergência, ontem, no aeroporto das Lajes, na Terceira, nos Açores, de um voo da Qatar Airways. (Isto é motivo para um post? Que falta de imaginação!, devem estar a pensar. Mas já verão porquê!). Ao que parece, os traumatizados passageiros, entre eles alguns feridos por uma queda abrupta do avião, foram sujeitos a largas horas de espera. Um jornalista da Al Jazeera, que também nele viajava, filmou a indignação dessas pessoas e foi dando disso conta ao mundo. 

Milhões de cidadãos de várias nacionalidades, que só remotamente tinham até então ouvido falar de Portugal, ficaram a associar o nosso país a um acolhimento de "terceiro mundo", a uma burocracia sem sentido, a uma desorganização qualificadora de um país desagradável. Algum do esforço que por todo o mundo é feito para promover Portugal como um país "idílico" para o turismo, desde logo os próprios Açores, pode ter-se perdido nessa imagem negativa, na boca dos qataris e americanos entrevistados.

E, no entanto, a verdade pode não ser necessariamente essa.

Uma aterragem de emergência é isso mesmo, é uma emergência, que deve ter uma maior dificuldade em ser enfrentada por se tratar de um fim-de-semana. Além disso, aquele nosso aeroporto tem as condições que tem, é uma infraestrutura com um quadro de recursos humanos naturalmente impreparados para operações com aquela dimensão logística, pelo que deve ter tido de improvisar a resposta imediata.

Mas há um ponto que particularmente me impressionou: a queixa sobre o tempo que demoraram os procedimentos de verificação da identidade de todos os passageiros, que só podiam sair do aeroporto, para se instalarem em hotéis, depois de verificado se algum de entre eles estava impedido de entrar em território europeu. Ora, ao levar a sério esses procedimentos, ao não "facilitar", as autoridades aeroportuárias da Terceira deram apenas mostras de grande sentido de responsabilidade e profissionalismo. Imagino que seria "o bom e o bonito" se acaso, numa falha em matéria de controlo de segurança, alguém suspeito se tivesse escapulido...

E, confesso, apeteceu-me responder a um preconceituoso passageiro americano, que passou muito nas televisões, que ter passaporte americano não é sinónimo de não se ser um criminoso e que, em matéria de "racial profiling" em aeroportos, em particular no que respeita a não praticar discriminação contra "pessoas com cor indiana", não recebemos lições dos EUA. Até o nosso primeiro-ministro tem essa cor...

Itália

O que ontem se passou em Itália configura um dos tradicionais desvios que afeta os processos referendários. No sim-ou-não simplificado proposto aos eleitores, esconde-se sempre muito mais.

O voto negativo de ontem, para além de poder ser uma resposta à questão concreta colocada, corporiza igualmente a insatisfação do eleitorado face à generalidade da situação que atualmente vive - com estagnação na economia, desemprego elevado e uma visível degradação social no país.

A isso se soma um voto de censura a Renzi, um primeiro-ministro desgastado por não corresponder à esperança nele investida e que, para muitos, assumiu um gesto de chantagem e de alguma arrogância ao ter ligado a sua permanência em funções a uma mudança constitucional que, mal ou bem, por razões talvez diversas e contraditórias, muitos italianos não entendiam como positiva na forma apresentada.

A Europa pode vir a sofrer bastante com a instabilidade induzida pelo sentido deste voto e do modo como alguns dele se possam apropriar em eleições legislativas futuras, mas, com a modéstia que sempre devemos ter quando apreciamos uma situação desta complexidade, não creio que dele seja legítimo extrair uma atitude anti-europeia maioritária por parte da Itália.

Comentário internacional

É evidente uma crescente qualidade, em Portugal, no comentário televisivo sobre temas internacionais, por gente cada vez mais jovem.

Lembrei-me disto há pouco, ao ouvir Filipe Vasconcelos Romão e Bernardo Pires de Lima pronunciarem-se sobre os eventos de domingo. De ambos, ouvi palavras ponderadas, um evidente conhecimento dos temas, equilíbrio nos juízos produzidos.

Se a isto somarmos o conjunto de especialistas, também jovens (a exceção mais velha que lá anda apenas serve para confirmar a regra...), que António Mateus junta no programa da RTP "Olhar o Mundo", bem como outros nomes que surgem com regularidade noutros canais, julgo que estamos perante uma verdadeira geração de ouro nesta área.

Com toda a franqueza, creio que a política internacional está muito melhor servida do que a análise política interna ou mesmo a análise económica, onde os ditos "especialistas", com algumas boas exceções, se pressentem cada vez mais "balcanizados", ao serviço despudorado de ideologias ou lógicas partidárias, com um enviezamento das opiniões que cada vez mais os descredibiliza perante quem os ouve.

domingo, dezembro 04, 2016

Perder amigos

Ontem, por ocasião de um encontro de antigos estudantes, em Vila Real, um velho conhecido, que já não via há muitos anos, veio ter comigo: "Leio muito do que escreves e às vezes vejo-te na televisão".

Por curiosidade, perguntei: "E estás de acordo com o que eu digo?".

A resposta: "Nem sempre, nem sempre! Tu tens a mania de pensar muito pela própria cabeça e, às vezes, não "encaixas" onde a gente está à espera. Tanto dizes uma coisas com que concordo a 100% como, noutros assuntos, discordo em absoluto. E tens ocasiões em que és um pouco ácido de mais."

"Mas não achas bem que é mais honesto que eu diga exatamente o que penso, estando-me "nas tintas" para o efeito que isso possa ter nos outros?", retorqui.

Curioso foi comentário que se seguiu: "Não sei. A pensar assim, deves perder muitos amigos".

Calei-me. Não quis dar-lhe a razão que, de facto e cada vez mais, ele tinha.

(se, como disse, ele me lê, vai acabar por "ver-se" por aqui)

sábado, dezembro 03, 2016

(*) A confirmar

Um jornal traz hoje o anúncio de uma conferência, com o nome de alguns dos oradores seguido do clássico asterisco (*) e da nota "a confirmar".

Já tive a irritante experiência, por mais de uma vez, de ver o meu nome publicado com idêntica referência e, devo confessar, é muito desagradável. Porquê? Porque quase sempre há gente conhecida que vai a essa conferência / painel / palestra para nos ouvir e, mais tarde, vem queixar-se: "Então faltaste?". Ora quem, neste caso, "falta" a um evento, tendo sido dado como "a confirmar", são cidadãos que são incluídos no rol de oradores sem para isso terem dado o seu prévio consentimento. Trata-se, assim, de um abuso e de uma deselegância a pública indicação do seu nome.

Há meses, fui convidado para falar numa conferência determinada cidade do país. Nunca tinha ouvido falar da entidade que convidava (e a internet, estranhamente, não dava a menor referência sobre ela), não conhecia ninguém envolvido na organização, mas a finalidade do evento era interessante. Na conversa telefónica, foram-me listados os vários nomes "previstos". Pareceu-me "fruta a mais", dado o elevado peso dessas personalidades. E fiquei um pouco "de pé atrás". Porque havia a hipótese real de conflito com outro compromisso, pedi para confirmar só uma semana mais tarde. Falei, entretanto, com dois dos oradores "previstos" e eles disseram-me que, pelas mesmas dúvidas que as minhas, já tinham recusado.

Voltaram a ligar-me da organização. Perguntei se se confirmava a presença dos restantes oradores que me tinham sido referidos. Foi-me dito que sim, que estavam todos "previstos". Entendi responder assim: "Muito bem. Eu irei, embora seja bastante longe de Lisboa e vá fazer algum esforço para conseguir chegar a tempo. Mas permita-me que coloque uma condição: só podem confirmar o meu nome se todas as pessoas que me referiu forem. Telefonarei na véspera para me assegurar disto".

Claro que o meu nome foi anunciado. Claro que a (esmagadora) maioria dos nomes (com o tal abusivo asterisco) não foram. E, claro, eu também não.

sexta-feira, dezembro 02, 2016

O dilema comunista

Não deve ser fácil a reflexão que o PCP leva a cabo, no quadro deste seu XX Congresso. (Caramba! Quem se lembra de um outro histórico XX Congresso?). Depois de se ter aliado à direita para derrubar o detestado governo PS, em 2011, abrindo caminho ao que aí veio, o PCP terá aprendido uma imensa lição: nem sempre a lógica do "quanto pior melhor" compensa. Com o país à beira de um sufoco, com a "troika" a mandar cá dentro, com a exceção a ser regra, com os direitos adquiridos a irem por água abaixo, o eleitorado comunista estava desejoso de se ver livre da funesta coligação que, de uma penada, aproveitara o alibi externo para desmantelar alguma coisa do que restava das "conquistas de abril". Sem expressão política para impor uma alternativa, contando quase só (o que, contudo, não é pouco) com a força negativa da rua sindical, o PCP viu-se tentado a apanhar a oportuna "boleia" que o PS lhe sugeriu - muito embora tivesse de ir na incómoda companhia do Bloco, que sempre lhe rói algum eleitorado à esquerda e na juventude. Na construção da "gerinçonça", o PS pagou o caro preço das reversões das privatizações dos transportes públicos de Lisboa e Porto, que assim puderam continuar a alimentar os cofres sindicais. Outras cedências, na Educação, aquietaram esse grande "dirigente operário" que se chama Mário Nogueira. E outras houve. No resto, nas pensões e em certas reversões, o PS fez apenas o que muito lhe apetecia fazer. E, para os socialistas, o negócio não era mau de todo: muitas bases do partido, e parte importante do eleitorado, reveem-se abertamente numa agenda de esquerda e isso acabou por fidelizar votos que a deriva segurista parecia estar a fazer fugir. A acreditar nas sondagens, isso é hoje uma realidade. Mas essa é também uma realidade muito preocupante para o PCP. É que ver grande parte da esquerda a tender a votar PS numa próximas eleições é algo que inquieta bastante os comunistas, um partido muito feito de lições da História, entre as quais se inclui a da nulificação do PCF que François Mitterrand conseguiu, associando-o ao poder. Assim, neste XX Congresso, um fantasma, na forma de um dilema, deve andar a pairar por lá. Continuar a apoiar o PS, deixando-lhe os louros das medidas populares da governação, podendo com isso erodir a sua base eleitoral de apoio? Ou começar a pensar a hipótese de romper com estrondo, com a Europa ou um incidente qualquer como pretexto, obrigando o país a ir a votos, com o PCP a reivindicar os louros de esquerda da "geringonça"? Como sempre acontece nas decisões burguesas - e não há nada de mais burguês na vida política nacional do que o PCP -, no meio é que está a virtude: Jerónimo de Sousa deve vir a conseguir um mandato para uma navegação à vista, com um crescendo de tensão, adubado por via sindical, que, se oportuno, pode levar à rutura no orçamento de 2018. É o esticar da corda, que pode vir a ser atenuado com mais algumas concessões futuras, que o PCP dirá ter arrancado a ferros. O PCP, honra lhe seja, cumpre sempre o que promete, em termos de negociação política. Mas não pode prometer ser contra a sua natureza e essa é a de uma cultura de taticismo obsessivo, de "ir andando", lutando pela preservação do "statu quo", enfim, lá no fundo, por esse seu grande e permanente objetivo, na respeitável leitura que faz da bondade do seu papel político: sobreviver.

Na despedida de Fidel

Acho estranho que quantos por cá ainda hoje se obstinam em defender a herança política de Fidel não consigam entender que muitos só toleraram o caráter ditatorial do regime cubano enquanto vivíamos num mundo bipolar, em que as ditaduras de direita eram estrategicamente protegidas, numa lógica anticomunista.

Desde que esse mundo acabou, que sentido tem defender a existência de um regime de partido único, sem uma única voz dissonante no parlamento, sem imprensa livre e com a dissidência a ser motivo para detenção imediata? E não deve haver nada mais parecido com uma prisão política de uma ditadura de direita do que uma prisão política de um regime que se afirme de esquerda.

Independência


Num intervalo de escassas horas, saudámos um Filipe, titular da soberania de um país amigo e aliado, e comemorámos a restauração de independência de Portugal – a data em que, vai para quatro séculos, conseguimos afastar-nos da tutela incómoda de um outro Filipe com idêntica origem, reafirmando orgulhosamente a nossa independência.

Lembrei-me disto ontem, em Vila Real, quando, com o grupo de amigos que, invariavelmente nessa data, se reúne junto do busto a Camilo Camilo Castelo Branco, patrono do liceu em que estudámos, entoava com patriótica inconsciência o anti-castelhano Hino da Restauração.

A História dá muitas voltas e, sem que os factos necessariamente se desmintam, aos vilões de ontem sucedem-se as figuras simpáticas de hoje (ou vice-versa, como, na mesma pessoa, ocorre por estes dias com Fidel). Por isso, a prudência de atitude aconselha a que nos não deixemos aprisionar pelas caricaturas e pelos mitos. Sem perder de vista o passado, devemos olhar essencialmente o futuro, que é o lugar onde vamos passar o resto das nossas vidas e onde a comunidade nacional a que pertencemos encontrará (ou não) razões e forças para se manter independente – seja isso o que for, nos tempos que correm.

O 1º de dezembro é uma data interessante, quiçá equívoca, porque em seu torno se unem os saudosos da dinastia dos Bragança e aqueles que, há mais de um século, lhes deram como destino definitivo as prateleiras da História. Daí o incómodo que a todos atravessou quando um fugaz epifenómeno politico - anti-grisalho e modernaço – tentou, por algum tempo, abafar a data.

O presidente português, que dá mostras de viver o nosso percurso histórico sem complexos nem traumas, trouxe os reis espanhóis às vésperas da Restauração. Fez bem. Filipe VI, que hoje simboliza a unidade espanhola, tem a legitimidade que lhe foi conferida por uma Constituição que o povo daquele país sufragou, de forma esmagadora. E sucede a alguém que, num momento muito difícil, se mostrou em sintonia com a vontade democrática da Espanha.

Aliás, se atentarmos bem, as monarquias europeias que hoje restam derivam todas de soberanos que, em momentos-chave, revelaram saber interpretar o interesse essencial dos seus povos.

A Espanha vive num regime monárquico. Só temos que respeitar essa opção – ou gostaríamos que, um dia, numa visita a uma qualquer monarquia, o presidente da nossa República fosse hostilizado por monárquicos?


Custa-me ter de constatar, como republicano que sou e sempre serei, que o triste espetáculo protagonizado pelo Bloco de Esquerda, na receção aos reis espanhóis na Assembleia da República, prova que afirmar-se republicano não é necessariamente sinónimo de ser democrata – que é, muito simplesmente, saber respeitar as livres opções dos outros.  

quarta-feira, novembro 30, 2016

O desvio das penosas


Era sempre na noite de hoje, 30 de novembro, a anteceder o dia 1º de dezembro, que se organizavam as nossas ceias, em Vila Real, nos tempos do liceu.

Os estudantes dividiam-se pelos variados repastos em que se evocava a data, numas festividades que tinham escassas referências à Restauração e, aqui entre nós, tinham tudo de lúdico e muito pouco de patriótico, salvo a cantoria do "Portugueses celebremos / o dia da Restauração...", noutro ponto do programa. Como nunca tive capa-e-batina e o meu comodismo sempre me afastou de comemorações matinais, devo ter perdido sempre a agenda nacional exaltante.

As ceias eram precedidas, dias antes, pela organização do Regadinho (um cortejo com cartazes de crítica social local, sob canto do "Água leva o regadinho...") e tinham lugar na véspera do Sarau académico no Cine-Teatro Avenida, espetáculo de "variedades" para o qual escrevi alguns textos divertidos.

As refeições tinham lugar, em geral, pelas inúmeras tascas da cidade e, invariavelmente, nelas era servida galinha ou frango. A origem "certificada" das aves variava, isto é, tanto podiam ser fornecidas pela própria casa que organizava a refeição como, com bastante mais "cachet", chegavam nas vésperas, de forma discreta, entregues por alguns dos convivas.

A verdade é que a "recolha" desse material - das "penosas" - havia sido feita em expedições noturnas, fruto de assaltos a galinheiros em quintais previamente selecionados, quase sempre na vizinhança conhecida das nossas próprias casas. Não era muito recomendável o cheiro com que se saía dessas aventuras com escassa luz, levadas a cabo na chafurdice dos galinheiros...

Mas o resultado dessas operações especiais, que às vezes provocavam depois sobrolhos carregados nos propretários desapossados das "penosas", desconfiados da juventude que lhe era vizinha, dava um outro "sabor" às ceias. Ainda me recordo de um amigo elogiar a qualidade da carne de uma galinha, que havia sido "desviada", na véspera, sem ele o saber, no quintal dos respetivos pais...

Uma nota final: as ceias acabavam, muitas vezes, com excessos etílicos e recordo bem que foi numa delas que "apanhei" o meu primeiro grande "pifo".

A nossa ceia deste ano (a segunda a que consigo ir, desde que deixei o liceu, há mais de 40 anos), agora dos antigos alunos do liceu, vai ter lugar apenas no dia 2 de dezembro, como forma de poder reunir gente vinda de todo o país. Não espero nela vir a ter galinha no menu, agora que todos já nos convertemos ao vulgar "template" gastronómico de um restaurante de periferia, onde a "bacalhauzada" ou a posta (a fingir de mirandesa) devem ser a ordem do dia.

Por lá irei encontrar, sob a grisalha marca de cabelos escassos, alguns companheiros (agora com as mulheres, porque elas, de há muito, passaram a ir também às ceias) dessas antigas aventuras. Vai ter graça relembrar os "desvios" das "penosas" de outros tempos.  sob a grisalha marca de cabelos escassos, alguns companheiros (agora com as mulheres, porque elas, de há muito, passaram a ir também às ceias) dessas antigas aventuras. Vai ter graça relembrar os "desvios" das "penosas" de outros tempos.    

terça-feira, novembro 29, 2016

Bisalhães


A cadeira chamava-se "Etnografia" e era "dada" no ISCSPU, pelo professor António de Almeida, uma figura algo típica, com vasta obra publicada sobre o tema, a propósito da África colonial portuguesa. Quando lhe propus fazer um trabalho sobre a louça de barro negro, de Bisalhães, perto da minha Vila Real natal, não o vi grandemente entusiasmado. Essa falta de entusiasmo traduziu-se no "13" com que encerrei a cadeira, nessa segunda metade dos anos 60 (do século passado, como agora começa a ser de regra assinalar). Há meses, encontrei o meu pequeno estudo - umas dezenas de páginas com algumas fotografias - e acabei por dar-lhe razão: o trabalho tinha escassa qualidade, estava mal apoiado em bibliografia e, aqui entre nós, era mesmo muito banal. O "13" foi merecido...

Para quem é de Vila Real, as peças de barro negro da aldeia de Bisalhães, a escassos quilómetros da cidade, fazem há muito parte da "paisagem". Durante anos, apenas surgiam na Feira de S. Pedro, em duas qualidades distintas. Os mais baratos eram uns "panelos" em forma de vaso, muito finos, com escassa cozedura, a preços muito baixos (lembro-me deles a "dez tostões"). Compravamo-los para os "trocarmos" pelo ar, em desafiantes jogos que, cedo ou tarde, acabavam em cacos que enchiam o chão da Rua Central ou da Rua Direita. Ao lado, com outro preço, os artesãos de Bisalhães vendiam objetos mais artísticos (de que a "bilha de segredo" era talvez o mais sofisticado), mais úteis (como tachos para irem ao lume) e até curiosas miniaturas de serviços de loiça. Com o fim da festa, a louça desaparecia da cidade e só era visível em exemplares nas montras do Turismo, na Avenida Carvalho Araújo. De há uns anos para cá, algumas barracas de venda permanente da louça ganharam lugar a norte da Almodena. Mas sabia-se que o artesanato de barro preto passava por tempos bem difíceis.

Um dia, o novo presidente do município, Rui Santos, deu-me conta da sua intenção de impulsionar um melhor conhecimento e proteção daquela atividade artística, através de uma candidatura à inscrição do processo de confeção da louça preta de Bisalhães na Lista de Património Cultural Imaterial da Unesco que Necessita de Salvaguarda Urgente. Considerava - e bem! - ser essa a forma de evitar que a atividade fosse desaparecendo, risco muito evidente nos últimos anos, o que destruiria uma tradição artística do maior interesse. Numa reunião realizada com a sua equipa, em Vila Real, verifiquei que o trabalho técnico-científico, mobilizado pela Câmara Municipal, estava já muito avançado. Na minha qualidade cumulativa de vila-realense e de antigo embaixador junto da Unesco, acompanhei depois os contactos feitos no Ministério dos Negócios Estrangeiros, em Lisboa. A minha "ajuda" acabou aí. 

Passaram alguns meses. As coisas iam, entretanto, fazendo o seu caminho no âmbito da Unesco, impulsionadas pela respetiva Comissão Nacional e encaminhadas pela nossa missão em Paris. Sabia que o assunto iria hoje à reunião do Comité Intergovernamental para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial, reunido em Adis-Abeba e que as hipóteses de sucesso eram elevadas. Há algumas horas, rejubilei quando vi a notícia de que a louça de barro negro de Bisalhães havia ganho o estatuto que se ambicionava.

Bisalhães e os seus artesãos estão de parabéns. Vila Real também. E essa vitória tem três nomes: o presidente do município, Rui Santos, a vereadora da Cultura, Eugénia Almeida, e o principal responsável pela organização técnico-científica do dossiê que permitiu esta vitória, João Ribeiro da Silva. Entre várias outras figuras que se revelaram decisivas para este sucesso, um outro nome é de destacar, o de Clara Cabral, cuja competência técnica no âmbito da Comissão Nacional da Unesco sei ter sido um fator fundamental.

Um outro importante trabalho começa agora, com acompanhamento da reconstituição da malha daquela pequena indústria local. A vitória em terras do Preste João é apenas o início do muito que agora aí vem. Mas, agora, a esperança em Bisalhães renasce.

Um "case study"


A Universidade de Genebra não renovou o contrato com Durão Barroso. A Universidade disse que essa renovação não estaria prevista, mas um conjunto de reações ao vínculo de Barroso à Goldman Sachs fazem presumir que terá havido uma motivação extra-académica para essa decisão. Uma dessas reações, e das mais violentas, foi de uma personalidade cuja atitude, estou certo, magoou muito Durão Barroso. Trata-se de Dusan Sidjanski, que havia sido seu professor em Genebra e com quem, ao longo dos anos, manteve uma relação forte. Em 1995, Barroso prefaciou um livro interessante (se bem que pouco premonitório) de Sidjanski, intitulado "O futuro federalista da Europa". 

Confesso que me impressiona  - e procuro entender, como simples exercício de exegese da vida - a forma como Durão Barroso conseguiu, e continua a conseguir, mobilizar contra si um tão amplo espetro de acrimónia e falta de simpatia. Muitos culpam disso a sua personalidade, a sua alegada frieza, uma possível atitude taticista perante a vida, a projeção de uma imagem de quem não acredita em nada, ou só em pouca coisa, deixando-se levar pelo vento dominante, o que lhe faz perder progressivamente o respeito de muitos. Não faço ideia se este "retrato" é real, só sei que ele é hoje, incontestavelmente, um "mal amado" por grande parte do país e que, lá fora, está muito longe de suscitar a menor onda de simpatia. A sua "performance" na Comissão Europeia (dez anos!) foi por muita gente considerada dececionante (incluo-me nessas pessoas) e, já antes, a sua decisão de abandonar o governo para ir assumir essa função não foi compreendida (neste caso, faço parte de quantos consideraram ter sido uma opção correta e potencialmente interessante para o país). Soma-se agora o caso da Goldman Sachs, uma empresa marcada pela "má fama" durante a crise, mas onde, contudo, muitas pessoas com grandes responsabilidades europeias trabalharam, sem que isso tivesse provocado a reação que a entrada de Barroso agora suscitou.

Há qualquer coisa que transforma Durão Barroso num "case study".

segunda-feira, novembro 28, 2016

... com os azeites!


Estar "com os azeites" é sinónimo de estar furioso. Hoje, estou "com os azeites" e estou muito satisfeito.

A Casa do Azeite, que comemora os seus 40 anos como importante instituição representativa do setor, "tendo em conta a relevância da sua (minha) intervenção para o sector do Azeite em Portugal, enquanto Embaixador de Portugal no Brasil, nomeadamente na questão do registo da Marca Nacional naquele mercado, que se revelou de importância crucial para o sector nacional exportador de azeite", vai atribuir-me uma distinção, durante uma cerimónia que hoje terá lugar.

Já saí do Brasil há oito anos, mas fico satisfeito, e grato, por poder notar que alguns ainda se lembram do trabalho que por lá realizei.

Estar "com os azeites", como se vê, pode ser uma coisa bem agradável.

Vila Real


O meu amigo Sérgio Rebelo, que oficia economia lá por Chicago, tem um magnífico blogue sobre a "terrinha" onde acaba de colocar, em inglês, uma referência ao Restaurante Lameirão, em Vila Real, uma das oito maravilhas do mundo (já havia sete...). Não fui eu quem lhe indicou o poiso gastronómico, foi ele quem o descobriu.

Aqui fica o link.

A nova Moagem


Fui hoje "vistoriar" a nova Moagem: a redação do "Diário de Notícias". O pretexto (dela) foi uma conversa com uma amiga, mas o verdadeiro propósito (meu) foi tirar desforço de Ferreira Fernandes. Mas ele ainda não tinha chegado (sorte dele!). É uma angústia diária olhar (nem é preciso abrir, caramba!, porque vem na última página) o DN e ver escrito quase sempre o que eu gostaria de ter escrito e não consigo. Como é o caso de hoje, a propósito de Fidel. Ando, há anos, a ser humilhado pelo Zé Ferreira Fernandes! Com implícita autorização do Paulo Baldaia, pedi à Ana Sousa Dias para me mostrar a janela mais próxima do campo de um conhecido clube de Carnide. Verifiquei, com alívio, que só se vê uma trave de ferro (espero que já liquidada à construtora). Não fiz as contas, mas estou convicto de que a distância do novo DN face a Alvalade XXI é bastante mais curta. É a minha vingança, Zé! Um destes dias, convido-o para um almoço pelo bairro do seu clube, lá por Carnide. Podemos ir ao Miudinho ou à Adega das Gravatas, lugar mais próprio para diplomatas.

Caixa

Detesto a expressão "esta história está mal contada", porque essa é uma atitude que regularmente aduba as teorias da conspiração - eu sou um feroz militante contra o "não é por acaso que..." Desta vez, porém, não consigo deixar de pensar que tem de haver aqui alguma coisa mais do que aquilo que se tem sabido sobre a trapalhada da gestão da Caixa.

Uma coisa me parece mais do que evidente: António Domingues é, a grande distância, o menos culpado. Ou melhor, a sua única culpa foi não ter batido com a porta mais cedo.

A pedido do governo, Domingues negociou com o BCE e com a Comissão Europeia a mais do que necessária recapitalização da empresa, que só foi por estes aceite no pressuposto que a Caixa passaria a ter uma gestão em tudo idêntica ao setor privado, embora com capitais 100% públicos. (Foi uma excelente negociação, até porque não havia outra solução). Sem isso, a recapitalização seria considerada "ajuda de Estado" e não poderia ter lugar, à luz das regras europeias. Quem não perceber isto, não pode começar por entender o que a seguir se passou.

Domingues só aceitou o cargo nesse pressuposto, o que implicava um novo estatuto remuneratório e um conjunto de outras condições, idênticas às que vigoram no setor privado, que lhe permitiriam recrutar, inclusivé no estrangeiro, gestores altamente qualificados. Uma dessas condições era a circunstância das declarações de património serem tratadas como o são no setor financeiro privado (onde existem e são obrigatórias perante os institutos reguladores, mas têm regras de confidencialidade próprias).

Não foi António Domingues - pessoa que aliás não conheço e com quem falei uma única vez, numa ocasião social - que foi à procura de "emprego" na Caixa. Foi o governo que o foi desafiar ao BPI, onde ele tinha um excelente lugar. Domingues não necessitava da linha curricular na Caixa para dourar o seu excelente "record" na banca. Aceitou o lugar, com condições que eram extensíveis aos seus colegas de administração, seguramente porque alguém lhe garantiu que isso era possível, sem ficar sujeito ao estatuto de gestor público (coisa que, estou certo, nunca lhe passou pela cabeça ser-lhe aplicável, porque isso contrariava tudo quanto ele próprio negociara, por instruções do governo, com Frankfurt e Bruxelas). Mas não era possível, afinal. A culpa não é, de todo, dele. Mas, caramba!, terá de ser de alguém e era importante que isso ficasse perfeitamente clarificado diante da opinião pública.

Pode a explicitação de tudo isto redundar muito desagradável para o governo (que eu apoio)? Provavelmente sim, mas quem anda à chuva molha-se. E, se tivessem sido mais competentes, nada disto teria acontecido. Essa é que é essa!

domingo, novembro 27, 2016

Paula Rego


Há dias, uma testemunha descreveu-me o que foi o recente divertido encontro em Londres entre o presidente da República e a pintora Paula Rego. A artista tem um estilo pessoal desconcertante, que tive o ensejo de apreciar em diversas ocasiões, quando vivi em Londres e por ali com ela conversei, em algumas circunstâncias. Conhecendo-se a maneira de estar de Marcelo Rebelo de Sousa, pode imaginar-se o que terá sido a "combinação" gloriosa que resultou desse momento conjunto...

Veio-me à memória um episódio ocorrido aquando da visita de Estado de Mário Soares a Londres, em 1993. Um dos pontos do programa foi uma deslocação à Sainsbury Wing, da National Gallery, em cuja cafetaria Paula Rego havia acabado de pintar um mural que era, em especial à época, uma das grandes curiosidades do local (e recomendo a visita a essa obra). Paula Rego, amiga de Mário Soares e de Maria Barroso, quis ser ela a apresentar pessoalmente o trabalho, descrevendo-o nos seus principais pormenores.

Algumas das figuras que a pintora integrou no mural tinham nome. Recordo-me da cara do escritor Alberto de Lacerda, que ela colocou, na sua forma criativa, numa das personagens. A certo passo da descrição, Mário Soares perguntou em quem se tinha inspirado Paula Rego para o desenho de uma figura hierática de mulher, que tem um lugar proeminente do grande painel. Nenhum de nós tinha a menor ideia de quem poderia ser essa face feminina escalvada, hirta e seráfica. Paula Rego correu com o dedo as figuras até coincidir com a que Soares referira, para, finalmente, concluir: "Ah! Aquela? É uma senhora da limpeza que eu vi um dia quando ia a entrar lá em baixo. Pedi-lhe e ela deixou-se pintar. Ficou bem não ficou?"...

"Não lhes perdoo"!


Hesitei republicar este texto, que tem precisamente um ano, o tempo que decorreu desde a saída do poder da fórmula governativa que dirigiu o país desde 2011. Alguns amigos, próximos da antiga maioria, acharam que nele fui longe demais, na minha muito explícita rejeição desse tempo. Relendo-o, em perspetiva, verifico que fui apenas tão longe quanto a minha indignação pessoal então reclamava. E não lhe retiro uma linha. Ele aqui fica, para que esse passado recente se não esqueça nunca: 

Acaba hoje aquela que constitui a mais penosa experiência política a que me foi dado assistir na minha vida adulta em democracia. Salvaguardadas as exceções que sempre existem, quero dizer que nunca me senti tão distante de uma governação como daquela que este país sofreu desde 2011.

Não duvido que alguns dos governantes que hoje transitam para o passado tentaram fazer o seu melhor ao longo destes cerca de quatro anos e meio. Em alguns deles detetei mesmo competência técnica e profissional, fidelidade a uma linha de orientação que consideraram ser a melhor para o país que lhes calhou governarem. Mas há coisas que, na globalidade do governo a que pertenceram, nunca lhes perdoarei.

Desde logo, a mentira, a descarada mentira com que conquistaram os votos crédulos dos portugueses em 2011, para, poucas semanas depois, virem a pôr em prática uma governação em que viriam a fazer precisamente o contrário daquilo que haviam prometido. As palavras fortes existem para serem usadas e a isso chama-se desonestidade política.

Depois, a insensibilidade social. Assistimos no governo que agora se vai, sempre com cobertura ao nível mais elevado, a uma obscena política de agravamento das clivagens sociais, destruidora do tecido de solidariedade que faz parte da nossa matriz como país, como que insultando e tratando com desprezo as pessoas idosas e mais frágeis, desenvolvendo uma doutrina que teve o seu expoente na frase de um anormal que jocosamente falou, sem reação de ninguém com responsabilidade, de "peste grisalha". Vimos surgir, escudado na cumplicidade objetiva do primeiro-ministro, um discurso "jeuniste" que chegou mesmo a procurar filosofar sobre a legitimidade da quebra da solidariedade inter-geracional.

Um dia, ouvi da boca de um dos "golden boys" desta governação, a enormidade de assumir que considerava "legítimo que os reformados e pensionistas fossem os mais sacrificados nos cortes, pela fatia que isso representava nas despesas do Estado mas, igualmente, pela circunstância da sua capacidade reivindicativa de reação ser muito menor dos que os trabalhadores no ativo", o que suscitava menos problemas políticos na execução das medidas. Essa personagem foi ao ponto de sugerir a necessidade de medidas que estimulassem, presumo que de forma não constrangente, o regresso dos velhos reformados e pensionistas, residentes nas grandes cidades, "à provincia de onde tinham saído", onde uma vida mais barata poderia ser mais compatível com a redução dos seus meios de subsistência.

Fui testemunha de atos de desprezo por interesses económicos geoestratégicos do país, pela assunção, por mera opção ideológica, por sectarismo político nunca antes visto, de um desmantelar do papel do Estado na economia, que chegou a limites quase criminosos. Assisti a um governante, que hoje sai do poder feito ministro, dizer um dia, com ar orgulhosamente convicto, perante investidores estrangeiros, que "depois deste processo de privatizações, o Estado não ficará na sua posse com nada que dê lucro".

Ouvi da boca de outro alto responsável, a propósito do processo de privatizações, que "o encaixe de capital está longe de ser a nossa principal preocupação. O que queremos mostrar com a aceleração desse processo, bem como com o fim das "golden shares" e pela anulação de todos os mecanismos de intervenção e controlo do Estado na economia, é que Portugal passa a ser a sociedade mais liberal da Europa, onde o investimento encontra um terreno sem o menor obstáculo, com a menor regulação possível, ao nível dos países mais "business-friendly" do mundo".

Assisti a isto e a muito mais. Fui testemunha do desprezo profundo com que a nossa Administração Pública foi tratada, pela fabricação artificial da clivagem público-privado, fruto da acaparação da máquina do Estado por um grupo organizado que verdadeiramente o odiava, que o tentou destruir, que arruinou serviços públicos, procurando que o cidadão-utente, ao corporizar o seu mal-estar na entidade Estado, acabasse por se sentir solidário com as próprias políticas que aviltavam a máquina pública.

No Ministério dos Negócios Estrangeiros, fui testemunha de uma operação de desmantelamento criterioso das estruturas que serviam os cidadãos expatriados e garantiam a capacidade mínima para dar a Portugal meios para sustentar a sua projeção e a possibilidade da máquina diplomática e consular defender os interesses nacionais na ordem externa. Assisti ao encerramento cego de estruturas consulares e diplomáticas (e à alegre reversão de algumas destas medidas, quando conveio), à retirada de meios financeiros e humanos um pouco por todo o lado, à delapidação de património adquirido com esforço pelo país durante décadas, cuja alienação se fez com uma irresponsável leveza de decisão.

Nunca lhes perdoarei o que fizeram a este país ao longo dos últimos anos. E, muito em especial, não esquecerei que a atuação dessas pessoas, à frente de um Estado que tinham por jurado inimigo e no seio do qual foram uma assumida "quinta coluna", conseguiu criar em mim, pela primeira vez em mais de quatro décadas de dedicação ao serviço público - em que cultivei um orgulho de ser servidor do Estado, que aprendi com os exemplos do meu avô e do meu pai -, um sentimento de desgostosa dessolidarização com o Estado que lhes coube titular durante este triste quadriénio.

Por essa razão, neste dia em que, com imensa alegria, os vejo partir, não podia calar este meu sentimento profundo. Há dúvidas quanto ao futuro que aí vem? Pode haver, mas todas as dúvidas serão sempre mais promissoras que este passado recente que nos fizeram atravessar. Fosse eu católico e dir-lhes-ia: vão com deus. Como não sou, deixo-lhes apenas o meu silêncio."

A normalidade francesa

As eleições primárias em França, cuja resultante final deverá conduzir à seleção de François Fillon como candidato da direita democrática às eleições presidenciais de 2017, mostraram um país que parece propenso a retomar uma agenda conservadora.

A experiência socialista, inaugurada por François Hollande, não vai deixar uma marca muito impressiva, quer na história do país, quer na da esquerda europeia. Com grande probabilidade, Hollande não será reeleito e, ao que tudo indica, arrastará consigo, nesta impossibilidade, os candidatos que emergirem na sua área política.

O seu quinquénio, contudo, parecia ter-se iniciado de forma interessante. Um discurso de tons realistas dava ares de poder reconduzir os socialistas franceses a uma agenda « possibilista », afastando-se de um tropismo radical que, depois da experiência de Lionel Jospin, tomara conta do discurso do partido. Os socialistas franceses, quiçá por terem parado no tempo na contemplação nostálgica do período Mitterrand, mantinham uma leitura mítica da realidade, de que as « 35 horas » e a generosidade do « 60 anos » para as reformas eram as bandeiras mais patentes. A esquerda francesa, por escolha ideológica, obstinava-se em não olhar de frente os tempos e isso refletira-se na sua inelegibilidade.

Curiosamente, acabaria por ser uma figura cinzenta, que tinha em bonomia o que lhe faltava em carisma, quem aproveitou o cansaço que Sarkozy induzira no país e, « furando » por entre as visões contrastantes de outros candidatos, se conseguiu impor. Hollande, o « presidente normal » mas improvável, recuperou alguns clichés caros à retórica do socialismo francês, como foi o caso do combate « à finança », credibilizado pelas culpas desta na crise económica que se vivia, bem como a diabolização das « grandes fortunas », a que juntou algumas notas de pragmatismo que pensava poderem combater o declínio económico relativo da França.

O resultado não foi brilhante, porque os sinais transmitidos resultaram contraditórios e, muito em particular, não conseguiram projetar uma imagem de autoridade política que, naquele país, está sempre indissociavelmente ligada a qualquer mandato presidencial com sucesso. As constantes mudanças no governo, que atingiram máximos históricos, criaram uma perceção de desnorte e incoerência. No plano europeu, Hollande não conseguiu o que o estilo Sarkozy havia obtido: uma sensação coreográfica de paridade simbólica com Angela Merkel. A França de Hollande, à semelhança do seu presidente, tornou-se « normal », ou talvez mesmo banal. E isso não fez bem a um país que tem o ego da Torre Eiffel.

Às trapalhadas pessoais descredibilizantes em que Hollande se envolveu somou-se uma realidade económico-social que evoluiu de forma muito desfavorável. A economia francesa não foi sensível aos hesitantes e pouco coerentes estímulos dados pelo governo e as tensões sociais, com a onda de insegurança provocada pelo terrorismo e por um crescente questionamento identitário, colocaram a França em contra-ciclo com os socialistas. Salvo uma imensa surpresa, o próximo ciclo político vai pertencer à direita. Resta saber qual.

Sarkozy, com naturalidade, tentou o « remake ». O país mostrou estar cansado definitivamente da figura e do seu estilo e, muito provavelmente, do oportunismo que consistiu tentar mimetizar, com credenciais democráticas, o discurso de Marine le Pen. A olhar pelos números das eleições primárias, François Fillon e Alain Juppé terão revelado maior autenticidade. O segundo, muito provavelmente, pagou o preço da assunção de um discurso em que procurou fazer uma « ponte » entre visões diferentes, procurando alargar a sua base potencial de apoio a setores fora da direita tradicional, na lógica de que um candidato desse setor que, em 2017, venha a disputar uma segunda volta nas presidenciais com Marine le Pen, terá de contar com os eleitores da esquerda. Este calculismo não passou. François Fillon será, assim o candidato da direita democrática francesa, em 2017. Curiosamente, um candidato quase tão « normal » como Hollande o foi em 2012.

Um ano depois


Passou um ano. Todos nos lembramos da cara patibular do presidente de então, da raiva incontida dos que se sentiram desapossados, das dúvidas nacionais e internacionais suscitadas pelo regresso à esfera parlamentar do poder, quatro décadas e um “muro” a menos depois, dos derrotados no 25 de novembro. O país nunca vira nada igual, o conceito de “frente popular” passeou-se pelas colunas dos jornais, os socialistas foram olhados como a “quinta coluna” de um golpe institucional de esquerda. António Costa, o construtor da Gerinçonça, foi acusado de tudo, desde irresponsabilidade a oportunismo.

A direita, sem um candidato presidencial que desse garantias cumulativas de poder ganhar e proceder, logo que possível, à dissolução de um parlamento que gerara tão estranha solução, entrou em estado de negação. Nem no debate orçamental de 2015 quis participar. A sua aposta, confessada ou não, tinha duas componentes. Uma interna, que tinha a ver com a difícil compatibilidade entre as ambições dos parceiros do PS e o grau de abertura deste à acomodação dessa agenda. Outra externa, que se prendia com o previsto incumprimento pelo novo governo das metas macroeconómicas exigidas por uma Europa de sobrolho carregado perante uma fórmula política que contrastava, de forma quase provocatória, com os equilíbrios no Eurogrupo. A nossa direita pode dizer tudo o que quiser, mas não conseguirá nunca convencer o país de que não estava à espera de que aquela “quadratura do círculo” era impossível.

Mas não foi. As forças que estiveram no governo entre 2011 e 2015 mediram muito mal o receio que o PCP e o Bloco de Esquerda – que os tinham praticamente colocado no poder, ao ajudarem a derrubar José Sócrates – tinham de vir a confrontar-se com o respetivo regresso. António Costa pressentiu isso e soube desenhar um caminho muito estreito, onde investiu todas suas indiscutíveis credenciais democráticas e europeias, para além da transparência negocial que demonstrou junto dos seus parceiros internos. Ao seu lado, num jeito quiçá pouco político mas com uma maestria técnica que pede meças, teve Mário Centeno, um homem que conseguiu alguns “milagres” nos desenhos orçamentais, uma vez mais ajudado por alguma complacência da “esquerda da esquerda”, que, pragmaticamente, terá concluído que o ótimo é o pior inimigo do bom.

Ah! E houve o “efeito Marcelo” e a política do BCE e um belo ano turístico e um empresariado que os anos da Troika impulsionou a procurar novos destinos. A sorte protege os audazes e António Costa teve o rasgo de correr alguns riscos que a realidade veio a provar não terem sido excessivos.

É sustentável, a Geringonça? Não sei, ninguém sabe. Se as taxas de juro dispararem, como pode vir facilmente a acontecer por virtude de efeitos externos, a questão coloca-se. Mas, nesse caso, talvez valha a pena lembrar que isso afetaria qualquer outro governo que estivesse em funções.  

sábado, novembro 26, 2016

Fidel


"Condenem-me, não me importo. A História me absolverá". Passaram 63 anos sobre esta frase célebre de Fidel de Castro, no tribunal em que regime de Fulgencio Baptista julgava a sua revolta.

Fidel morreu hoje. Não é possível deixar de ligar a imagem deste homem a um sonho bonito, a uma revolta romântica que adubou as esperanças de quantos, um pouco por todo o mundo, pensavam que estavam aí, quase ao virar da esquina, "os amanhãs que cantam".

Ele foi a bandeira de uma América Latina que pretendia deixar de ser o "quintal" dos Estados Unidos. Uma revolução de cores e emoções quentes, que o tempo foi desgastando. O "internacionalismo" do seu projeto  - "um, dois, muitos Vietnams", dizia Guevara - não obteve um único sucesso, nos países onde procurou projetar-se.

Ao seu povo, Fidel trouxe, sucessivamente, entusiasmo, orgulho, esperança, alegria, saúde & educação, estagnação económica e social, desilusão, pobreza, revolta ou apatia e ausência de liberdade e de democracia - afinal, o objetivo da revolta da dignidade contra o sinistro ditador Fulgêncio Baptista, que Fidel protagonizou. 

Agora, a muitos, a hora da morte de Fidel convocará com certeza saudade, sentimento com que, quase sempre, se absolvem os mortos que um dia foram amados. A História absolvê-lo-á também?

sexta-feira, novembro 25, 2016

À procura da infelicidade

Num site onde se acolhe, como numa trincheira, uma certa direita, uma papisa dessa mesma direita detalha-nos, com tocante minúcia, a profunda infelicidade que a atravessa. Estivéssemos mais próximos do Natal e dar-me-ia uma de generosidade, que me faria verter uma lágrima, feita de aletria e bolinhas coloridas para o pinheiro, de solidariedade com a apagada e vil tristeza desse setor da estimável ala conservadora lusa, que nos dias de hoje geme a sua imensa distância do poder. Para esta depressão sazonal são elencados, naquele texto sentido que me calou bem fundo, quantos "se passaram" para o outro lado. Com nomes, que isto é como as listas do MUD, é tudo para memória futura: Marcelo, claro, à cabeça, nas ironias desencantadas dessa direita que não cai em vénias, mas também Carlos Moedas e Frasquilho. Todos os que, entretanto e aos seus olhos, se bandearam, por culposa complacência, com a Geringonça, tolerando-a ou, de qualquer outra forma, legitimando-a. Mas eles que se ponham a pau: ficam "à marca", como se diz nas contas no bilhar. Até ao juízo final, onde serão julgados pela falta de juízo que tiveram. Neste Natal, "ajudada" pelas sondagens da Católica (até tu!) de hoje, essa direita vai ter uma ceia diferente. Do bacalhau vai notar as espinhas, no bolo-rei sair-lhe-á a fava e, nas sobremesas, só terão sonhos. É assim como uma espécie de Natal dos hospitais. Dias tristes, enfim. Coitados.

quinta-feira, novembro 24, 2016

Uma coisa em forma de livro

A Objectiva acaba de publicar uma biografia de Marcelo Caetano da autoria do cidadão brasileiro Francisco Carlos Palomanes Martinho.

Comprei o livro na tarde de ontem e comecei a ler o período posterior à tomada de posse de Caetano como Presidente do Conselho.

Vejam-se estas "pérolas", apenas entre as páginas 366 e 391:

(1) Ao citar uma frase de Pedro Feytor Pinto, que referia ter ouvido algo na "Rádio Argel", o autor acha que se trata de uma "emissora estrangeira", deconhecendo que é a "Rádio Voz da Liberdade", uma rádio da oposição portuguesa no exterior, dirigida pela Frente Patriótica de Libertação Nacional.

(2) Ao anotar a famosa reportagem do "L'Aurore" com Salazar, diz tratar-se de um "jornal suíço"... E dá à entrevista uma importância que ela esteve longe de ter, não explicando devidamente o estado mental do antigo ditador.

(3) Diz que o Bispo do Porto esteve "exilado em França". Ora, na sua quase década de exílio, António Ferreira Gomes apenas por um brevíssimo período esteve em Lourdes, passando a esmagadora maioria do exílio em Espanha (Santiago de Compostela, Valência, Ciudad Rodrigo e Salamanca).

(4) Refere que Mário Soares estava "exilado" em S. Tomé. Uma coisa é o exílio, outra bem diferente é a residência fixa. Páginas adiante, o autor já fala em "degredo", o que é mais próximo da realidade e prova uma lamentável ausência de rigor nos conceitos utilizados.

(5) Afirma que Marcelo Caetano "passou a utilizar a rádio e a televisão semanalmente", o que é rotundamente falso. As "conversas em família" nunca tiveram essa periodicidade: nos cerca de cinco anos e meio do seu governo, Caetano apenas fez 16 programas desses.

(6) Diz que Pinto Balsemão integrou, pela "ala liberal", a lista de deputados do Porto, quando o foi pela Guarda! E chama-lhe "jornalista do Porto"!

(7) Assinala que Sá Carneiro fez parte, em 1969, das "listas da UN/ANP". Ora a Ação Nacional Popular só foi criada em 1970. E o erro é repetido várias vezes, pelo que não se trata de um lapso, mas de desconhecimento.

(8) Diz que o lisboeta Américo Tomás era "trasmontano"... 

(9) E tem, finalmente, esta "tirada' de antologia: "através de decreto-lei o governo deixou de exercer uma influência direta nos Serviços de Censura, que passaram para a recém-criada Secretaria de Estado da Informação e Turismo" (!!!). 

Se, em 25 páginas estão tantas enormidades, imaginemos o que não estará nas restantes 564...

A Objectiva estará aberta a reembolsar-me dos mais de 20 euros que paguei por "isto"?

quarta-feira, novembro 23, 2016

O infiel da balança

Tenho o vício de me pesar de manhã e à noite. É um vício angustiante, porque me induz uma espécie de culpabilidade pelos efeitos daquilo que acabei por comer durante o dia. E como está fora de causa que vá acabar por limitar o meu regime alimentar, à luz de uma leitura quantitativa dos meus pecados da gula, só tenho uma solução: não me pesar. A minha relação com a medição do peso tornou-se assim cada vez mais frágil, numa assumida cobardia. Acho que me posso considerar, na verdade (por que haveria de escondê-lo?), um infiel da balança.

terça-feira, novembro 22, 2016

Reflexão impopular


Ao tempo, deixei por aqui o apelo a que, com presteza e rigor, fosse feita a inculpação, sem tibieza nem falsos "respeitinhos", dos responsáveis pelas mortes em treino dos soldados dos Comandos.

Mas, em Portugal, é ou oito ou o oitenta.

No passado, casos como estes foram sempre abafados, com a culpa a morrer solteira. As famílias bem protestaram, mas toda a gente olhou para o lado. Agora, em face da projeção mediática, e num gesto de demagogia serôdia, foi decidida uma espetacular detenção, para interrogatório, de um grupo de militares de várias patentes, com os nomes escarrapachados na imprensa. E lá foram as "Sónias Cristinas" das televisões acompanhar as carrinhas até ao presídio.

Mas será que havia mesmo perigo de fuga, que justificasse a detenção dos militares, em lugar de serem simplesmente chamados a depor? Pelos vistos, não havia, caso contrário o juiz teriam determinado que ficassem em prisão preventiva.

Mais um triste teatro, num caso que haveria toda a vantagem em ser tratado com grande seriedade. Só espero que, com este inadequada e exagerada encenação, que suscitou legítimas reações de alguns setores militares, não se acabem por criar novas "vítimas", ajudando a esquecer que as verdadeiras foram as que morreram.

Maria Eugénia Varela Gomes


Morreu Maria Eugénia Varela Gomes. Fui-lhe apresentado há muito tempo, no início dos anos 70, num almoço em Colares, num restaurante onde aos fins de semana se reunia gente da oposição, a maioria com ligações ao "Partido" (designação que, para os comunistas e "compagnons de route", significava o clandestino e perseguido PCP). Estava acompanhada pelo marido, João Varela Gomes, revolucionário do assalto ao quartel de Beja, saído da prisão meses antes.

É uma mulher-coragem aquela que vai amanhã a sepultar, depois de muitos anos de doença, com a morte do filho Paulo pelo meio, que se somou a uma vida de luta, de perseguições e de prisão, sempre marcada por uma imensa dignidade e verticalidade. Li, ouvi e sei o suficiente sobre Maria Eugénia Varela Gomes para ter por ela uma imensa admiração.

Deixo um abraço sentido ao seu marido, o coronel João Varela Gomes.

(Fica a sua fotografia no arquivo da Pide, retratos que é, em si mesmos, são medalhas para quem os possui)

segunda-feira, novembro 21, 2016

Sarkozy


A derrota de Nicolas Sarkozy, nas eleições primárias da direita francesa, ontem realizadas, terão significado o fim da sua carreira política? A forma como se despediu dos seus adeptos não deixa isso totalmente claro.

No fundo, isso não tem a mais pequena importância: em 6 de maio de 2012, depois de ter sido rejeitado nas presidenciais francesas, em favor de François Hollande, tenho bem presente a frase que proferiu na Mutualité, perante os seus apoiantes: "Je ne ferai plus jamais de la politique!". Depois, foi o que se viu: aproveitou a conflitualidade entre Fillon e Copé, tomou conta do partido, mudou-lhe o nome e aí surgiu ele, de novo, a tentar o "remake". Voltará? Sabe-se lá!

Pertencemos a um país onde um dirigente desportivo dizia que "o que é hoje verdade, pode não sê-lo amanhã", onde um político regressou às lides horas depois de considerar "irrevogável" a sua demissão. E isso era num tempo em que ainda era desconhecido o "trumpiano" conceito de "pós-verdade", que veio consagrar teoricamente as cambalhotas com as palavras e essa coisa despicienda que são os factos.

Estive várias vezes com Sarkozy, em reuniões privadas e públicas. Do que se passou nas primeiras serei para sempre obrigado, por dever profissional, a guardar algum recato. Mas, nesta nota, gostava de falar sobre o momento público em que, no Palácio do Eliseu, fiz, com outros embaixadores, a apresentação das minhas cartas credenciais, como novo representante diplomático português em França.

A apresentação de credenciais por um embaixador, junto de um chefe de Estado estrangeiro, é um ato protocolar que difere bastante de país para país, dependendo dos usos e costumes locais. Em frequentes casos, o próprios chefes de Estado introduzem alterações às práticas nacionais, de acordo com os seus humores e com a sua personalidade.

Foi o que sucedeu com Nicolas Sarkozy, quando assumiu funções como presidente francês. Sendo Paris uma das capitais do mundo com maior número de embaixadas, e tendo alguns países a propensão para não deixarem os seus embaixadores "aquecer o lugar", o ritmo de apresentação de credenciais ao chefe de Estado acaba por ser muito intenso.

Ao que me dizem, o presidente Jacques Chirac, que antecedeu Sarkozy, não obstante o peso desse formalismo, fazia questão de falar uns minutos com cada novo embaixador, deixando perguntas ou comentários que tocavam as relações bilaterais. François Hollande, ao que julgo, terá retomado o mesmo método. É um pouco assim, aliás, que as coisas se passam entre nós.

Nicolas Sarkozy, optou, desde o início, por um fórmula mais "leve", menos simpática para os novos embaixadores, mas bastante expedita. Foi a que me coube em sorte, em 2009.

Cerca de uma vintena de novos embaixadores foi colocada, lado-a-lado, numa grande sala do Palácio do Eliseu, numa certa manhã. O presidente entrou, acompanhado do secretário-geral do Ministério dos Negócios Estrangeiros e do seu conselheiro diplomático, deu os bons-dias a todos em voz alta e, sem mais perda de tempo, dirigiu-se ao primeiro dos embaixadores, alinhados pela ordem da respetiva data de chegada a França.

Fiel às práticas que a profissão ensina, esse primeiro diplomata, tentou dizer a frase clássica: "M. le Président, j'ai l'honneur de vous présenter les lettres de créance qui me (...)". E preparava-se para transmitir-lhe os cumprimentos do seu chefe de Estado e, talvez, a honra que ele próprio sentia pelo privilégio de poder servir o seu país junto da França e coisas assim!

Era não conhecer Sarkozy! Não deixou sequer o homem acabar a primeira frase e quase que lhe arrancou da mão as cartas credenciais, que logo passou para trás, ao secretário-geral, avançando para o embaixador seguinte.

Tratava-se do meu colega de Marrocos, país com o qual a França tem relações fortíssimas e complexas. Com naturalidade, ele tentou passar uma mensagem de "Sa Majesté le Roi". Pois isso! Sarkozy cortou a conversa, nem dez segundos era decorridos (o homem, um velho amigo meu, ficou lívido e furioso).

E chegou a minha vez. Simplifiquei ao máximo a mensagem: "Mes respects, M. le President. Je suis le nouvel ambassadeur du Portugal" e passei-lhe as "cartas", assinadas por Aníbal Cavaco Silva. Sarkozy olhou-me por um segundo e disse: "Soyez le bienvenu, M. l'Ambassadeur!", e passou à frente.

A próximo chefe de missão era uma senhora africana. Sarkozy, que acelerava o processo, saudou-a num segundo e avançou. Notei alguma agitação física na embaixadora, que me segredou: "Esqueci-me de entregar as cartas credenciais!" - e mostrou-me, angustiada, o envelope com a carta do seu chefe de Estado para Sarkozy, que lhe conferia o título de embaixadora em França. A cena fora tão rápida que o presidente nem notara que, além do cumprimento, não recebera o documento que oficializava a qualidade da embaixadora. Sosseguei-a: "Não se preocupe, dá isso depois a alguém...". E tudo se resolveu, acabada a cerimónia, com a discreta entrega do envelope ao chefe do protocolo, que sorriu, divertido, perante o relato do sucedido.

Entretanto, Sarkozy "aviara" já todo o grupo e com ares de alguma impaciência, convidou a colocarmo-nos frente a ele, em semi-círculo. Vi-o gesticular para que uns empregados, de casaco branco e botões dourados, expectantes ao longe, com tabuleiros com flutes de champagne, se aproximassem dos embaixadores. Quando verificou que todos estavam servidos, ergueu o seu copo, felicitou-nos pela nossa "entronização", nem sequer fingindo que bebia (Sarkozy não bebe álcool).

O presidente singularizou então no grupo o embaixador de um país que, na antevéspera, tinha sido atingido por um grave sismo ou inundação, e lembrou-lhe: "Espero que na sua capital tenham notado que a França foi o primeiro país a prestar-vos ajuda!". O homem, ultrapassando com garbo a deselegância, que se estendia aos outros Estados cujos embaixadores tinham acabado de apresentar credenciais e que não tinham sido tão lestos no gesto humanitário, balbuciou alguns agradecimentos.

Tinham passado menos de dez minutos desde o início da cerimónia. Visivelmente "morto" por lhe pôr termo, o presidente disse estar certo de que todos compreendiam que as suas responsabilidades o obrigavam a sair. Em jeito de compensação, explicou que ali deixava o secretário-geral do MNE e o seu conselheiro diplomático, com os quais poderíamos falar "do que vos interesse".

Disse "Rebonjour à tous!" e encaminhou-se para a saída da sala. Ao passar por mim, deu-me uma palmada no ombro e disse, de forma audível por todos: "Mes amitiés à Sócrates!". Os meus colegas ficaram visivelmente admirados ao ouvir aquilo. Quase tanto como eu. Nem tive tempo de assegurar a Sarkozy que não deixaria de transmitir a sua saudação ao então primeiro-ministro português - uma figura que, até ao último dia do respetivo mandato, manteve com o presidente francês uma forte empatia e uma relação de extrema cordialidade pessoal.

domingo, novembro 20, 2016

"Self-plagiarism"?

Foi há cerca de um ano. O telefonema do responsável pelo "copy desk" do jornal deixou-me confuso. Ao ler o texto que eu lhe mandara nessa tarde, para ser publicado no dia seguinte, ele ficara com a sensação de que era um artigo igual a outro já publicado por mim, meses antes.

Caí das nuvens: eu escrevera o artigo há escassas horas, "de raiz"! Que confusão era aquela? Ter-me-ia enganado no anexo que enviara com o email para o jornal? Interrompi o que fazia e regressei a casa. Ainda tinha algum tempo, antes do "fecho" do jornal, para resolver o assunto.

Fui ver os meus email: tinha mandado o artigo certo. Fui à procura de textos antigos, enviados para o mesmo jornal. A certo ponto deparei com um exatamente sobre o mesmo tema daquele que eu agora remetera ao jornal. Li-o e compreendi: não era o mesmo texto, mas a lógica do artigo era exatamente a mesma do anterior, com exemplos e argumentos repetidos. O assunto em causa voltara à atualidade, eu "revisitara-o" com o mesmo prisma de análise e, por isso, produzira dois textos basicamente similares.

A memória "clínica" do responsável pelo "copy desk", numa fantástica demonstração de perspicácia profissional, salvara-me de um embaraço. E lá fiz eu um outro artigo...

Este episódio veio-me à memória ao ler há minutos um artigo sobre a questão do "self-plagiarism", num site estrangeiro, em torno do debate académico sobre se um autor pode, ou não, republicar textos seus, isoladamente ou inseridos num outro contexto, sem deixar explícito de que não se trata de um original.

O tradicional plágio - utilização não identificada de textos ou ideias escritas de outros - é uma praga que a internet tem vindo a facilitar. E o chamado "auto-plágio", a repetição de textos ou ideias próprio? O tema é interessante, porque tem uma inescapável dimensão económica. Com efeito, se eu tiver sido pago pela escrita de um artigo e, mais tarde, voltar a publicá-lo, ou com outro título ou inserido noutro texto, sem esclarecer que se trata de um texto antigo, voltando a ganhar dinheiro com ele, isso é legítimo? Creio bem que não.

Mas isso suscita outra questão. Como é sabido, o plágio vai para além da simples cópia exata de um texto, situando-se tamvém no domínio das ideias. Eu serei acusado de estar a plagiar se repetir, sem deixar isso previamente claro, um corpo de ideias inserido num texto de um artigo ou de um livro, mesmo que para isso utilize outras palavras, que mude os vocábulos. Isso não deixa de ser um evidente plágio. Mas, pelo mesmo princípio, estaria também estaria impedido de repetir, não os meus textos, mas as minhas próprias ideias. É que eu não posso ser obrigado a mudar de ideias, só para não me repetir... Como diria o Narciso à dona Rosa, à entrada do Pátio das Cantigas: cruel dilema!

sábado, novembro 19, 2016

Charla amigável

"Fulano é teu amigo?", perguntaram-me ontem ao almoço. Respondi que não, que o conhecia de nome mas que nunca o tinha visto pessoalmente. "É que escreve na tua página de Facebook", esclareceu quem me interpelava. "Ah! Isso sim!", respondi. "Era isso que eu queria dizer" fechou a conversa o meu interlocutor.

Tenho o maior respeito pelo conceito de "amigo" que o Facebook nos trouxe. É uma realidade simpática, que alarga os nossos contactos, ainda que virtuais. A verdade, porém, é que ele não deixa de induzir alguma confusão face ao estatuto tradicional de relação. 

É que ainda sou do tempo em que, para além dos nossos reais amigos, só os comunistas tratavam por "amigos" aqueles que, não sendo "camaradas", lhes eram simpáticos. Ainda farão isso? Ando distraído.

Portugal, a Europa e o mundo


sexta-feira, novembro 18, 2016

Os inglusos


São uma raça tão à parte que não sei bem o que lhes irá acontecer com o Brexit. Às tantas, ficam apátridas. Nasceram em Portugal (ninguém é perfeito), mas têm o coração numa grã-ilha a que pertencem por direito natural. Idealmente, a maternidade do St Antony's College seria o seu berço óbvio, mas têm de contentar-se com o facto de S. Sebastião da Pedreira figurar no seu Cartão de Cidadão. Falam e vestem como eles acham que os ingleses ("bem") devem falar e vestir. Quando atingidos pelos "blues" da vivência nesta "piolheira", à falta dos coiros de Pall Mall, vão tomar chá à York House, numa tarde pardacenta, como a de hoje. Adoram Churchill e os Church's. Ao todo, são aí uma vintena. Conheço-os de ginjeira. Escrevem (às vezes, bem), bebem (alguns já tiveram melhores fígados) e todos resmungam (de preferência, por escrito) contra este país onde não há um "Spectator" decente, um lugar que verdadeiramente os não merece - no que têm toda a razão: Portugal nada fez de mal ao mundo para ter de os aturar. São os inglusos. Nem são nem ingleses nem lusos. São uma espécie de náufragos do autocarro, mas do tempo em que a Carris era britânica. Ah! E os ingleses nem sabem que eles existem. E ainda bem, senão riam-se de nós! É que eles detestam imitações baratas. Já lhes bastam os "leftovers" do seu império!

B & B

Há bastantes anos que ouvia falar daquele restaurante, situado numa certa capital de distrito, onde não vou muito e onde tinha escassas refe...