Um dia, em perspetiva, vai ser possível olharmos com alguma calma para o furacão que nos dias de hoje atravessa a América política, por virtude das consequências da eleição de Donald Trump. Espero que, evitada que tenha sido alguma tragédia, possamos divertir-nos com as histórias, então já conhecidas, dos bastidores dessa peça política que esteve em cena em Washington. Por ora, limitamo-nos a abrir as televisões ou os jornais com a garantia de um permanente “happening”, uma sucessão endémica de eventos que, por virtude do comportamento errático do homem mais poderoso do mundo, abalam as instituições do seu país, com efeitos colaterais nos restantes. E não sabemos onde e como parará.
É uma evidência que uma imensa perturbação afeta a América, pela existência deste inusitado presidente. A queda abissal da sua popularidade não é casual. Mas há algo importante que convém não esquecer. Os EUA podem estar internamente aturdidos com Trump, mas não vivem minimamente preocupados com a imagem que o seu presidente projeta no exterior, nos aliados ou no próprio imaginário popular à escala internacional. A América vive, essencialmente, para si própria e, podendo Trump ser um problema para o mundo, é apenas no quadro de um eventual embaraço que ele possa constituir para os americanos que o fenómeno pode ter alguma evolução. O “America first” não é um mote exclusivo de Trump, é uma expressão sentida como uma uma obviedade por todos os seus compatriotas.
Por isso, o modo como a Europa olha Trump, tal como os humores sobre ele dos líderes mundiais, é coisa completamente indiferente ao cidadão do Ohio ou da Califórnia, que apenas quer saber se a sua vida vai piorar ou melhorar por virtude das políticas do governo federal. Por isso, desiluda-se quem pense que o mundo tem alguma palavra a dizer no futuro da novela presidencial em curso.
Mas, pelo contrário, Trump tornou-se relevante para nós. Durante meses, entretivemo-nos a especular por que é que ele conseguiu ser eleito. Aprendemos alguma coisa com isso e olhámos com uma atenção mais especiosa para o Brexit, para o extremismo holandês ou francês, nas eleições seguintes, já à luz desse fenómeno. Trump ensinou-nos igualmente que o populismo pode manipular a verdade e sobreviver à sua margem, sem consequências de escândalo. Soubemos com ele que já ganhou foros de alguma legitimidade aquilo que põe em causa alguns referenciais de decência pública e da ética de relacionamento social. Também acordámos para o fim dos “adquiridos” do progresso global, como as questões ambientais ou o respeito pelas minorias ou culturas fora do “mainstream”. O racismo do proto-autarca de Loures é, no fundo, apenas uma forma saloia de trumpismo. Desprezível mas não desprezável para o ambiente político do nosso país.