sexta-feira, agosto 29, 2014

À conversa na "Gomes" (3)

- Não achei muita graça à desvalorização que fizeste ao nosso rio, lá no teu blogue.
- Não desvalorizei! Apenas disse que o Corgo tem pouca água no verão...
- Pois, pois! Mas sabias que foi Vila Real a primeira cidade do país a ter iluminação pública produzida por energia hidráulica? Em 1894! E já era o Corgo, claro!
- A água é que era outra! De facto, Vila Real é uma cidade pioneira. Também tivemos a primeira Casa do Chinês!
- A sério? Essa não sabia! 
- E bem cedo! Se bem me lembro, foi aí nos anos 60, se não mesmo antes!
- Tás a brincar! Não tenho ideia de que essas bugigangas já estivessem cá à venda nessa altura.
- Quais bugigangas? Tecidos, malhas e excelente roupa... Há anos que compro lá lenços.
- Mas onde?
- Na Rua Direita.
- Na Rua Direita?!
- Sim, a "Casa do Chinês", do senhor Luís Carvalho. Está lá há décadas!
- Vai à fava! Alinhas em mais uma fatia de bola de carne?
- Vamos a isso! E, já agora, pede dois finos bem tirados.

Uma confissão diplomática

Estávamos no início dos anos 90. Eu era diplomata em Londres. Uma das regras de ouro da condição diplomática - como, aliás, de qualquer outro serviço público - é não utilizar as funções que se ocupam em interesse próprio. Por isso, devo dizer que hesitei um pouco em usufruir do cargo que conjunturalmente exercia, como "encarregado de negócios" (o diplomata que exerce a chefia da embaixada, na ausência do embaixador), para lidar com aquele assunto. A questão, porém, não era estritamente pessoal. Em bom rigor, tinha mesmo uma dimensão nacional, quiçá patriótica. Dependia da perspetiva com que fosse encarada. Assim, arranjei coragem perante mim mesmo e decidi passar à ação, tanto mais que aquela era excelente oportunidade para tratar de um tema que há muitos anos me perturbava.

Preparei uma série de cartas, todas idênticas, com os timbres necessários da embaixada, identifiquei bem os destinatários a quem deveria dirigir-me no grande número de jornais, em Londres e em outros locais do Reino Unido, que pretendia influenciar e enviei-as. Nelas dava conta, ambiguamente em meu nome - cuidei em não dizer que o fazia por instruções do governo que representava -, do facto dessa publicação (tal como todas as outras), com uma insistência que se revelava maçadora e desagradável, identificar por sistema uma determinada instituição portuguesa por um nome que não correspondia à designação correta da mesma. Deixava em aberto a possibilidade desse flagrante erro ser produto de um hábito enraizado, eventualmente inspirado por entidades internacionais, mas pedia a melhor atenção do jornal para o problema, confiando no seu juízo prudente. Enviei, em anexo, documentação em apoio à tese defendida. Fiz o mesmo para a Reuters, para a BBC e para alguns outros canais, de televisão e rádio.

Pelo menos nesse tempo, os ingleses ainda levavam as embaixadas estrangeiras relativamente "a sério" e, talvez por isso ou talvez pela justeza objetiva da diligência, o "minister counsellor" que eu então era, revestido das funções de "deputy chief of mission", recebeu nas semanas seguintes várias respostas amáveis, umas mais positivas do que outras, quanto à promessa de irem ser tomadas medidas retificativas da tal reiterada prática que incomodava a embaixada, mas todas sempre muito compreensivas quanto à razoabilidade do meu pedido. E, de facto, pelo menos num bom punhado de casos, o assunto foi corrigido.

Mas que "diabo" de questão era essa?, perguntar-se-á legitimamente o leitor, nesta fase do texto. Pois bem, era o pedido para que as habituais referências a um tal "Sporting Lisbon" passassem a ser corrigidas pela utilização do nome correto da prestigiosa agremiação desportiva portuguesa - Sporting Clube de Portugal. Na minha missiva, antecipando a dificuldade da utilização do nome por extenso, eu sugeria mesmo a utilização de "Sporting Portugal" ou simplesmente de "Sporting". Creio que não havia ninguém de Braga ou da Covilhã, lá pela embaixada...

As coisas entretanto evoluíram. Julgo que por justa insistência das direções leoninas junto da UEFA, esta organização deixou de recorrer ao aberrante "Sporting Lisbon" e quase toda a imprensa internacional mudou de prática. Ontem, nas mãos de Casillas, na abertura do sorteio da "Champions", lá estava, bem à vista, o nome correto e completo do clube. As designações geograficamente mais redutoras, marcadas por nomes de localidades, foram na ocasião utilizadas para duas outras agremiações, cujo nome não vem ao caso referir.

Terá sido abuso de poder? Foi utilização indevida de uma posição? Será. Mas, mesmo que houvesse consequências disciplinares, já prescreveu. Ah! E fez-se justiça, que é o mais importante.

O sino do Viròmundo

Sou dum tempo em que as "explicações" faziam parte do quotidiano complementar do ensino do liceu, em Vila Real. A avaliar pelo número e frequência dos "explicadores" e explicandos, em vários domínios, devia ser uma profissão rentável.

Durante muitos anos, a grande e competente explicadora de Matemática da cidade era um senhora de feitio difícil, atingida por uma doença fisicamente incapacitante, que se deslocava com dificuldade. Sentava-se, por largas horas, numa sala com mesa retangular e uma janela para a rua. Chamava-se Maria de Lurdes, nós éramos supostos chamá-la de "senhora D. Maria de Lurdes" mas, desde cedo, a corruptela aceite soava a "Semelurdes". Os explicandos menos atentos eram chamados para o seu lado, lugares temíveis porque as repreensões orais eram complementadas com "reguadas" com um lápis com uma espécie de boquilha (nunca vi nada igual!), que nos acertava nos nós dos dedos, punindo as distrações ou comentários que lhe desagradavam. 

As explicações duravam uma hora e eram medidas pelos toques dos sinos da Sé, porque a "Semelurdes" não usava relógio. Entrava-se e saía-se às meias horas (em que o sino dava dois toques). Com uma disposição menos entusiasta pelo estudo, muitos ansiávamos bastante por esses dois toques do sino. Por isso, eram-nos indiferentes os restantes toques (três para os três quartos de hora, quatro toques para a hora certa, seguida de um bater dessa hora noutro sino, e, finalmente, um toque para o quarto de hora, depois da hora exata). O relógio da Sé, ali perto, funcionava então na perfeição. Havia, porém, momentos, creio que para missas e outros atos religiosos (sou pouco dado a essas questões) em que se assistia ao sineiro a subir à torre, dando depois fortes badaladas num dos sinos.

Eu tinha andado na escola primária com o sineiro, que tinha mais dois ou três anos do que eu e que era conhecido pelo nome de Viròmundo. Um dia, numa conversa de explicandos da "Semelurdes", no encontro prévio que sempre havia em frente à pastelaria "Gomes", e ao vermos o Viròmundo a rondar a torre da Sé, surgiu uma ideia: pedir ao Virómundo para, na altura do quarto de hora, dar mais uma badalada à mão, criando assim a ilusão sonora de que era meia-hora, o que poria fim à explicação desse dia um quarto de hora mais cedo. Como era eu que conhecia bem o Viròmundo, fui o encarregado da diligência. O sineiro mostrou-se, de início, avesso à ideia. Não queria arriscar o lugar, mas lá acabou por aceitar o "frete", a troco de "cinco coroas", talvez pensando, e bem, que não seria por essa badalada a mais que o padre Henrique o poria "com dono". E sempre empochava "vinte e cinco tostões" só por subir à torre. Era um bom negócio!

E lá fomos nós para a explicação da "Semelurdes", às duas badaladas das três e meia. O grupo que havia combinado a patranha (que não incluía uma ou duas colegas mais "certinhas") adiantou os seus próprios relógios um quarto de hora. A aula da explicação decorreu normalmente. Dez minutos passados sobre as badaladas da hora completa (que era habitual ninguém notar), um de nós (creio ter sido o João Leite Gomes, mas não estou seguro) lançou, aproveitando um momento de silêncio: "Como o tempo passa... já são quatro e vinte e cinco". A Julinha, uma colega "certinha", ripostou, olhando para o relógio: "Não são nada! São quatro e dez". Um coro saiu logo em protesto, mostrando os respetivos relógios, defendendo serem "quatro e vinte e cinco". O relógio da intrigada Julinha foi qualificado de "marca Roscoff" o que obrigou a "Semelurdes", um tanto hesitante pela noção impressiva do tempo, a arbitrar, para acabar com a conversa: "A mim parece-me não ter passado uma hora, mas logo veremos, com o toque das quatro e meia". 

E lá vieram, um minuto depois, as duas ansiadas badaladas das "quatro e meia", que, afinal, era a badalada das quatro e um quarto complementada com aquela que fora paga ao Viròmundo. Levantámo-nos das cadeiras, mais lestos e sorridentes do que era habitual, perante uma "Semelurdes" um tanto perplexa e uma Julinha desiludida pela qualidade do relógio que o pai lhe tinha comprado, nos anos, no Nascimento.

A "Semelurdes" deve então ter ficado muito surpreendida pelo facto dos explicandos seguintes terem chegado com um quarto de hora "de atraso". Imagina-se que devem ter sido objeto de um raspanete e que todos devem ter dado fortes garantias de que chegavam exatamente às quatro e meia. Na sessão de "explicação" seguinte, dois dias depois, quando entrámos na sala, conosco preparados para "ouvir das boas", ela surpreendeu-nos a todos ao não dizer uma palavra sobre o assunto. Nós que, a montante desse momento, havíamos feito pressão sobre a Julinha e as restantes "certinhas" para "estarem caladinhas". 

O assunto passou. Um dia, anos corridos, estava eu já na universidade, fui visitar e cumprimentar a "Semelurdes". E decidi revelar-lhe a patranha. Lembrava-se do episódio, alguém lhe tinha falado da história da cumplicidade do sineiro, mas era a primeira vez que dele tinha confirmação. Agora, pela palavra, "de confiança", de um dos "conspiradores"...

Eram bem simples esses tempos de Vila Real, nos nossos 14 ou 15 anos...

quinta-feira, agosto 28, 2014

À conversa na "Gomes" (2)

- É pá! Não percebo por que é que os "rails" de proteção do circuito não são retirados logo após as corridas! Dá um mau aspeto a Vila Real, é um sinal de desmazelo, esconde os prédios...
- Faz parte! Tu é que já não estás habituado. Andaste muito pela estranja... Cá, somos assim mesmo! Também ninguém tira os cartazes ou as faixas de estrada, a anunciar espetáculos ou festas que já passaram há muito.
- Então achas isso normal? E que a propaganda das europeias, bem depois das eleições, tenha ficado largas semanas por aí?
- E por que não? Também ainda podes encontrar, em algumas varandas, bandeiras nacionais a cair de podres, já rotas, do Euro 2004... E, no entanto, já perdemos muitos campeonatos depois disso!
- Ah! Bom! Se vais por aí... Em Lisboa, ainda há placas a dizer "Expo 98"!
- Tás a ver? Somos um país que custa desligar-se do passado, por isso vai-o deixando sobreviver. É uma espécie de cultura snobe da decadência, o desmazelo como doutrina coletiva de comportamento.
- E, já agora, o que é que tu achas da história dos canteiros da praça do Império, em Lisboa? A Câmara parece que quer fazer desaparecer de lá os escudos das antigas colónias.
- Ai eu, por mim, deixava-os ficar. Decadência por decadência, nada bate a CPLP...

Os ponteiros do Zé Foquita

Nesta cálida noite de Vila Real, lembrei-me do José Araújo, o Zé "Foquita", como a cidade lhe chamava, sei lá bem porquê. 

Um dei hei-de aqui falar um pouco mais do Zé, esse amigo, um pouco mais velho do que eu, que já se foi há um bom par de anos. O seu primeiro carro, que me lembre, era um "Mini", que comprou no regresso da tropa. Nele se passeava, ar grave e melena ao vento, pelas noites de Vila Real. O Zé não era uma pessoa fácil, irritava-se por dá-cá-aquela-palha, por isso tinha poucos mas fiéis amigos. Com orgulho, fui um deles. Foram décadas de conversas, intervaladas por longos meses e por universos pessoais cada vez mais distantes, mas próximos pelo passado comum. Sempre que nos encontrávamos, reatávamos a charla como se a última tivesse sido na véspera.

Na Vila Real da minha juventude, o "passeio dos tristes" automobilístico fazia-se pelo tradicional circuito, um percurso na periferia urbana, com 6.925 metros, como sempre aprendi, onde anualmente se faziam "as corridas" - uma "mania" da cidade introduzida ainda na primeira metade do século passado, que, aí por julho, lhe dava um ar cosmopolita e a colocava no mapa do desporto nacional. O circuito teve altos e baixos, tendo sido reativado - e bem - este ano, embora já com percurso diverso do tradicional.

A "volta ao circuito"  - onde nunca pensei acabar por vir morar, quando agora por aqui passo uns dias - iniciava-se pela "marginal". (Vila Real não parece mas tem um rio, "lá ao fundo", o Corgo, que se junta com o Cabril "atrás do cemitério" e que dá um ar da sua graça no inverno, e daí a "ousadia" de pretender ter uma "avenida marginal", que não tem esse nome, mas que conhecemos assim, os que a vimos nascer). Saía-se para o circuito pela garagem Loureiro, junto ao quartel velho, passavam-se as tascas do Necas e do Carrico, logo depois eram a casa do Salsa Verde e a "do brasileiro", seguia-se à borda da imensa quinta do Teixeirinha até ao cruzamento para o quartel novo e à garagem Renort.  Descia-se então à ponte da Timpeira (antecedida de duas curvas históricas), subia-se por Abambres, passando pela tasca da Maria do Carmo (hoje um simpático restaurante), atravessando a linha do comboio. Pouco depois, chegava-se à celebrada reta de Mateus (bem pequena, aliás), com a tasca do Coelho, antes de começar a descer, abordando as difíceis curvas de entrada e saída do Bairro dos Prazeres. Prosseguia-se o caminho estreito para a ponte metálica, passando antes entre a garagem do Antoninho do Talho e a casa do Granjo, para logo surgir a passagem de nível da estação ferroviária e o colégio. Ultrapassada a ponte e a subida pela tasca da Cardoa, chegava-se à difícil curva da Areias (pensão histórica da cidade) ou da Salsicharia, dependendo do ângulo e dos gostos. E, lá ao fundo, depois da entrada para o parque florestal e da garagem do Rosas, fechava-se "a volta ao circuito". Que estranho! Um circuito de garagens e tascas, deverá estar a pensar o leitor. E fui parco, creia, na menção das últimas...

Na minha vida, devo ter feito este percurso do circuito largas centenas de vezes, frequentemente à conversa, "nas calmas", ouvindo música, noutras ocasiões "a acelerar", em "picanços" noturnos, a que sobrevivi incólume, ao contrário de outros, menos felizes. É que era assim a vida nesta cidade pequena, algo abafada e monótona, no final dos anos 60 e início dos 70. 

Também com o meu amigo Zé "Foquita" fiz muitas dezenas "de circuitos", sempre devagar, conversando, ele fumando os muitos sonhos nunca realizados, eu "pintando-lhe" a vida do Porto e, depois, de Lisboa, onde entretanto passara a viver. Nesses tempos do petróleo a pataco, ainda os árabes andavam quietos e baratos, recordo-me de metermos "sete e quinhentos da normal", na bomba do Platas, em frente ao Tocaio, apenas para dar uma volta ao circuito. Mas, com ele, não me recordo de ter feito nunca o percurso no sentido que atrás descrevi. Fi-lo sempre na direção inversa. O Zé obstinava-se em percorrer o circuito "ao contrário dos ponteiros do relógio", ao reverso do das "corridas". Sempre. Porquê? Provavelmente porque, como dizia o meu pai de algumas pessoas teimosas, ele sempre "andava contra o vento". Nunca soube porque o fazia e também creio que nunca lhe perguntei. É melhor assim. Ter pequenos e desimportantes mistérios que nos ficam para a memória feliz da vida.

quarta-feira, agosto 27, 2014

À conversa na "Gomes" (1)

- Gostas mais dos covilhetes* frios ou quentes? 
- Depende. É como a vingança. 
- Essa agora!?
- Ó pá! É assim: se a afronta foi recente, é na hora, a quente, saído do forno. Se já passou há muito, serve-se frio e também sabe bem.
- Eu gosto do covilhete aquecido...
- Aquecido é que nunca: fica morno demais para o meu gosto. Ou oito ou oitenta!
- Nem te estou a conhecer! Costumas ser mais equilibrado. Hoje pareces irritadiço!
- Se calhar estou a precisar de férias...
- Mas tu não estás reformado?
- Nem sei bem! Às tantas, estou a precisar de ter férias desta reforma. Faz-me falta o dia-a-dia de Lisboa.

* o covilhete é um pastel de carne e massa folhada, especialidade de Vila Real. A pastelaria Gomes gaba-se de ter os melhores da cidade

Concurso de misses?

Olhando para as redes sociais - acho graça ao conceito: aqui há uns anos, "ter redes sociais" significava ter bons contactos no eixo Lapa-Linha ou Gomes da Costa-Foz - dou-me conta do desprezo que muitos votam ao debate de ideias concretas na contenda pela liderança do PS. 

(Quando falo de ideias concretas não me refiro a platitudes, como "ser contra esta austeridade que falhou ", "ser favorável a estímulos ao crescimento da economia", ter "políticas amigas do emprego",  "relançar políticas públicas sustentáveis", "afirmar uma voz ativa na Europa" e outras coisas deste estilo piedoso. Ideias é mostrar, no concreto, como é que os candidatos do PS a primeiro-ministro querem construir um orçamento alternativo para 2016. É isso que se lhes pede.)

De ambos os lados do cenário, perpassa cada vez mais a mensagem de que o importante é a personalidade dos competidores, a sua resiliência (o termo entrou no léxico político recente e já fede) perante as dificuldades, a imagem de competência e/ou firmeza e/ou determinação e/ou simpatia que projetam. Ah! e a confiança, que é assim a modos como uma fezada com prazo de validade indeterminado, isto é, até ao dia em que, confessando ou não, os políticos deixam de fazer aquilo que prometeram.

Conduzido o debate para este terreno fulanizado, os próceres e os próprios candidatos foram levados a pisá-lo, mesmo com algum despudor. António José Seguro foi o primeiro a fazê-lo, com acusações personalizadas que pareceram às vezes tocar questões de caráter. Não foi bonito de ser ver. António Costa resistiu mais, mas, nos últimos tempos, começou já a emitir alguns juízos sobre a figura do seu adversário, contestando a sua consistência política. Apesar de tudo tem sido mais contido. Quanto às "cortes" respetivas, então bem uma para a outra. Dizer que tudo isto era inevitável, numa campanha deste tipo, é apenas uma forma "self-deprecating" de insultar o PS. O PS, que foi e é um grande partido da História contemporânea portuguesa, é muito melhor que este "concurso de misses" que parece estar em curso. E convém lembrar que Costa e Seguro, como sói dizer-se no povo, "são do melhorzinho que por lá há", pelo que têm obrigação de estar à altura do desafio.

Os debates que aí vêm são assim uma oportunidade soberana para os candidatos à liderança do PS fazerem uma "desmontagem" criativa da ação do governo e, em cada passo, dizerem concretamente como tencionam corrigir o que foi mal feito. Isso nem parece muito difícil, perante os tão catastróficos resultados da ação governativa. Explicar que, no "novo oásis", as taxas de juro relevam exclusivamente da Europa (como os outros "ajustamentos" mostram à saciedade) e que os números do défice (ainda assim, muito maus) têm obrigatoriamente de ser comparados com a dívida mostruosa que este governo criou para as gerações futuras, não se afigura tarefa impossível. Ah! E há o desemprego! De facto, depois de o ter feito disparar a cifras imemoriais, ele tem vindo a ser reduzido, ajudado pela emigração maciça. Ainda bem! Por este andar, um destes dias, vão mesmo conseguir aproximá-lo dos níveis herdados do governo Sócrates...

terça-feira, agosto 26, 2014

Socialistas - os franceses e os nossos

Como não vejo televisão há vários dias, desconheço se alguém perguntou já a António José Seguro ou a António Costa se acaso discordam, numa vírgula que seja, do discurso de Arnaud Montebourg sobre a necessidade do fim da austeridade e dos seus apelos a políticas europeias promotoras do crescimento e do emprego. É que, à parte as tradicionais tiradas de nacionalismo económico protecionista gaulês, e para além das críticas abertas a Angela Merkel, o que ouvi de Montebourg leva diretamente, quase linha por linha, àquilo que ambos os candidatos à liderança socialista, aliás como o PS português no seu todo, têm vindo a defender nos últimos anos.

Ora foi a persistência pública nesse discurso, com o apoio expresso de dois outros ministros, que levou ao respetivo afastamento do governo de Manuel Valls. Porque a lógica não deveria ser uma batata, seria legítimo concluir que a política que Valls procurará imprimir ao seu governo deveria contrariar as posições de Montebourg - caso contrário este não teria saído. Isto significa, para fechar o círculo, que os socialistas portugueses estariam hoje em contraciclo com os seus camaradas franceses.

Pois isso! A política é o que é: Hollande e Valls dirão que o que os separava de Montebourg eram apenas meras "nuances" no prosseguimento de uma mesma política e talvez discordâncias no modo de a explicitar. Por cá, Costa e Seguro dirão que não querem imiscuir-se na vida interna do partido-irmão francês e que continuam a contar (e aqui improviso) "com a já afirmada determinação dos socialistas franceses para se aliarem a quantos, como é o caso do PS português, se batem na Europa pelo fim das nefastas políticas de austeridade, que não só aumentaram exponencialmente as dívidas soberanas nacionais, mas igualmente agravaram as fraturas sociais, afetaram gravemento o tecido das políticas públicas, arruinando largos setores da economia e destruindo, a prazo, as hipóteses de um crescimento sustentado, ao mesmo tempo que potenciaram o desemprego e, no caso português, provocaram uma onda de emigração qualificada que descapitalizou fortemente os recursos humanos do país".

E não é que tudo isto - digam Montebourg ou Costa ou Hollande ou Seguro o que entretanto disserem - é pura verdade?! Mas então, se as diferenças não são assim tão grandes entre todos, por que diabo Montebourg foi obrigado a demitir-se? Pela mesma razão que, por cá e naquilo que os socialistas portugueses digam ou possam vir a dizer e que se ouça na Europa, o peso das palavras e da sua oportunidade tem de ser sempre muito bem medido. Seguro e Costa deviam olhar bem para esta crise governamental francesa e dela tirarem algumas lições para o cuidado a ter na formatação do seu discurso futuro "para fora". E nós não somos a França, não se esqueçam!

Um traumatismo ucraniano

Depois de vermos um verme político islamita a decapitar um pobre refém, ou um par de "valentes" do Hamas a liquidarem sumariamente informadores de Israel, a nossa capacidade para nos chocarmos começa a reduzir-se. Os Balcãs já nos tinham ensinado muito. Mesmo assim, devo dizer que não estava preparado para assistir à vileza dos pró-russos, ao paradearem e achincalharem os prisioneiros fiéis ao governo de Kiev, através das ruas de Donetsk. Confesso que aquilo foi, para mim, um trauma que não esperava ter.

Em muitas destas histórias da política intermacional quase nunca há inocentes e, no caso ucraniano, ainda menos. O que se passa em Kiev está muito longe de ser a "história da carochinha" que alguma imprensa ocidental quer fazer crer, com os "bons" em Kiev e os "maus" em Donetsk e em Moscovo. Entre os "libertadores" da praça Maiden, que escolheu de "mão no ar" o governo que substituiu o poder de um presidente livremente eleito, segundo uma constituição que tinha sido adotada em liberdade, estavam algumas figuras sinistras que, quase aposto, farão parte daquilo que prevejo venha a ser o triste futuro daquele pobre país. Do "outro lado", também não estão nenhuns "meninos do coro": o autoritarismo que começa a ser insuportável de Vladimir Putin, que "czareia" uma Rússia que volta à "teoria do cerco" e parece só saber viver com a sua vizinhança destabilizada, testou a comunidade internacional com um "golpe de mão" sobre a Crimeia, dando de barato que esta apenas o "bombardearia" com declarações sonantes e algumas sanções de efeito variado. E acertou.

No meio de tudo isto, os russos da Ucrânia oriental, animados com o sucesso da Crimeia, tentaram uma prova de força que só teria viabilidade se Moscovo os apoiasse militarmente (mas de forma aberta, porque é óbvio que a Rússia já o fez e faz de forma encapotada). Minoria clara num país apostado em esmagá-la (numa Europa em que se defendem tanto as minorias, foi sempre muito cínico por parte da UE o esquecimento da sorte dos russos da Ucrânia, como o tem sido, desde há anos, a das minorias, também "por coincidência" russas, nos Estados bálticos), esse grupo enveredou por uma estratégia de confrontação desesperada, quiçá à espera da ajuda externa que acharia natural. Ainda não se percebe até onde o que por lá se passa vai chegar, embora a sucessão dos factos quase nos tenha feito esquecer a barbaridade sobre o avião civil da Malásia. Mas agora vimos melhor o que a guerra pode fazer à "cabeça" daquela gente.

O que se passou em Donetsk é a prova provada de que a canalhice não é um defeito apenas individual. A incrível humilhação infligida aos soldados fiéis a Kiev prova que há também nacionalismos canalhas, mostra bem - como com os islamitas do ISIS ou os radicais do Hamas - como o fanatismo pode trazer ao de cima o pior que há nas pessoas. Mas o mundo civilizado - porque ainda há um mundo mais civilizado do que outros - só terá um dia autoridade moral para julgar tudo isto quando, de igual forma, souber condenar, sem viés ideológico ou "parti-pris" geopolítico, todas as canalhices. E não apenas as que derem jeito às suas guerras de interesses. 

segunda-feira, agosto 25, 2014

O erro de Ferreira Fernandes

Como os leitores deste blogue já terão notado, estou frequentemente de acordo com Ferreira Fernandes, nos comentários que faz na sua coluna na última página do DN. Mas, como é da vida, há exceções. Ontem foi uma delas.

Ferreira Fernandes, num exercício desafiador aos dois contendores pela liderança do PS, incita-os a porem cobro à prática lançada pelas estruturas distritais de Braga daquela estimável agremiação partidária no sentido de manter, quiçá mesmo de inscrever, alguns mortos nas suas listas. Insurge-se contra esta iniciativa, colando-se ao argumento de que isso pode distorcer a verdade do resultado eleitoral. O preciosismo é eticamente frágil e historicamente desrespeitador.

Sobre a ética, deixo a apreciação do mérito dos autos ao juízo de cada um quanto à moralidade das lideranças socialistas locais. Já quanto à História, alto aí! Um partido não nasce hoje, acarreta consigo uma memória, dele fazem parte os que cá estão, mas que não estariam onde estão se um passado não tivesse sido construído por quantos, entretanto, já se libertaram da chatice da lei da vida. Alguém que ajudou a construir um partido, apenas pelo conjuntural facto de ter deixado de ter participação ativa no quotidiano da existência, deixa de "existir"? Que leitura mais simplista!

Noutro registo, que seria da toponímia se nos esquecêssemos de quem fez as instituições? Acaso não recorda Ferreira Fernandes, ao subir diariamente o elevador da casa que já foi da Moagem e que hoje é cada vez mais do dinheiro vivo do senhor Mosquito, figuras venerandas de antigas direções do seu jornal, seja um dos meus antecessores na embaixada em Paris, Augusto de Castro, seja aquele que com ele próprio partilha as iniciais, Fernando Fragoso, cujos impagáveis editoriais me divertiam as manhãs da "primavera" pré-abril? O passado, caro Ferreira Fernandes, mesmo enterrado, está aí! Como dizia um filósofo de Santa Comba, "só havemos de chorar os mortos se os vivos os não merecerem". 

O PS de Braga, ao prolongar a presença de ilustres mortos nas suas listas - e são muitos! - revela uma apreciável devoção por um passado que, naquele partido e naquela cidade, não tem - não temos! - o direito de esquecer. Será que um Armando Bacelar, que nos idos da CEUD de 1969, por ali levantava com coragem a voz socialista contra os Santos da Cunha da época, e apenas pelo facto de ter desaparecido da lista dos vivos, merece ter uma palavra menos pesada nos destinos do PS local do que aqueles que, também em nome do partido, votaram a estátua de um cónego ou de quantos, ao longo dos anos, parquearam interesses ao lado de um empreendedor com o sugestivo nome de Névoa? Há mortos cuja voz dignifica mais um partido do que muitos que hoje por lá andam.

O PS de Braga só prova que não esquece Lopes Graça quando, no seu "Vozes ao alto!", proclamava: "E até mortos irão ao nosso lado". Deixe os mortos socialistas votar em paz, meu caro Ferreira Fernandes! Deixe-os participar na vida do partido, até porque por lá permanecem alguns vivos a fazer de mortos e outros que já o estão e ainda não se deram conta disso. E a única forma de não ter de descriminar entre toda essa fauna é deixá-los votar a todos. Até porque, como também dizia o outro, e no estado em que isto anda, "todos não somos demais"...

domingo, agosto 24, 2014

António Guterres

Está agora na moda falar-se de António Guterres para a presidência. Alguma esquerda suspira já por ele em público, a restante sentir-se-ia aliviada se acabasse por vê-lo em Belém, depois da década que atravessou. Sem inocência, a direita, que o teme como a ninguém, lança cada vez mais o seu nome, técnica vetusta de o tentar ir queimando em lume brando, ainda a quase 18 meses do ato eleitoral.

Faço, desde já, uma declaração de voto: se Guterres for candidato, apoiá-lo-ei com entusiasmo. E creio que não vale sequer a pena estar por aqui a explanar as razões por que o faço. Trabalhei com ele no governo e conheço as suas qualidades e qualificações.

Não faço a menor ideia se Guterres irá candidatar-se. Acho, com a maior franqueza, que se acaso, nos tempos que correm, ele tivesse dois botões à sua frente, em que pudesse definir definitivamente a sua posição sobre o assunto, um com um "sim" e outro com um "não", ele inclinar-se-ia por pressionar o "não". Tenho esta profunda convicção.

Ainda bem que ele não tem essa possibilidade. Isso significa que continua a existir a hipótese de uma das mais competentes, bem preparadas e eticamente irrepreensíveis personalidades portuguesas poder vir a assumir a chefia do Estado. E isso não é pouco.

sábado, agosto 23, 2014

Ainda Viana

                      

Hoje, ao assistir ao tradicional Cortejo Histórico, um ponto sempre cimeiro das Festas da Senhora da Agonia, em Viana do Castelo, e ao ouvir durante horas - nas vozes e nas bandas - o "Havemos de ir a Viana", escrito por Pedro Homem de Mello, musicado por Alain Oulman e que Amália consagrou, dei comigo a pensar em como esta cidade ficou a dever tanto a essa composição, que todos os portugueses trazem no ouvido. Quantos não terão vindo a Viana, ao longo dos anos, também pelo apelo da canção!

Mas, logo de seguida, mudei de ideias. Quantas localidades poderiam ter inspirado um poeta e um compositor genial, e mobilizado "a voz nacional", como Viana do Castelo? Das canções com algum destaque nacional assentes em nomes de localidades portuguesas - Lisboa e Coimbra, claro, mas também Porto, Porto Covo, Figueira da Foz, Porto Santo, Miranda do Douro, Ericeira, Elvas ou Alcobaça e não sei se me esqueci de alguma * - nenhuma tem o qualidade poética e musical da que levou Viana pelo mundo. Não terá sido afinal a esta cidade ímpar que ficaram devedores dessa inspiração?

* afinal tinha esquecido Grândola, Olhão e Covilhã

Senhora da Agonia

Ainda fui a tempo, despachado a meio da tarde da terra das tulipas, de chegar a Viana a tempo de ver o "fogo da festa" e comer uma fartura bem acervejada. Hoje, sábado, teremos os "gigantones e cabeçudos", o cortejo e a "festa do traje", seguido do "fogo do meio". E domingo as "festas" prosseguem.

Esta é a maior e mais bela romaria do país. "Sofri-a" durante anos, quando na minha infância e juventude por aqui passava os Verões e não achava graça alguma a toda esta confusão. Chamava-lhe então "a agonia das festas". Agora, venho cada vez com maior prazer às "festas", de quando em vez, a esta que é a minha segunda terra.

sexta-feira, agosto 22, 2014

Dam

Era o centro de um certo mundo, no final dos anos 60. A praça Dam era o local de encontro em Amesterdão. Vínhamos de mochila, chegados à boleia, às vezes sem a menor referência, sem saber onde dormir. Ali conhecíamos outras gentes, de toda a Europa e do outro lado do Atlântico. Ficávamos sentados à conversa naqueles degraus, com uma cerveja e uma sanduíche na mão, até que as mangueiras da municipalidade por lá passavam, ao final do dia, para varrer a lixeira. Era então o momento de zarpar, com os novos conhecimentos criados, para a noite em outras zonas da cidade, algumas mais aventurosas, outras apenas divertidas e agradáveis. Penso que não éramos nem piores nem melhores do que a juventude de todos os tempos. Éramos apenas diferentes.

O Dam de Amesterdão deixou, há muito, de ter esse estatuto mítico. Passei há pouco por lá. Chovia. Mas agora, em agosto, em trabalho, de blazer e gravata... É a vida!

quinta-feira, agosto 21, 2014

"So sorry!"

Ao final desta noite chuvosa na Holanda, depois de um jantar de trabalho, não resisto a reproduzir um episódio que um amigo britânico, chegado diretamente do "Fringe" festival das artes de Edimburgo, nos contou ao café. 

Foi ontem, durante uma atuação de "stand-up comedy". O ator, de nacionalidade alemã, relatou ao público que uma jovem americana que tinha conhecido (ele disse que era loira, mas eu evito referir isso aqui) lhe havia comentado que gostava muito da Europa, mas que achava triste que por aqui se falassem tantas línguas. O alemão, irónico, deixou cair: "Sabe por que é que não se fala uma só língua em toda a Europa: porque nós perdemos a guerra...". A jovem quis ser simpática e logo retorquiu: "Oh! Was that so? I'm so sorry for you!"...

UNITA

Na sua crónica de hoje no DN, Ferreira Fernandes refere o momento em que, como "convidado" da UNITA, se recusou a entrevistar Wilson dos Santos, um quadro caído em desgraça na organização e que, pouco tempo depois, viria por ela a ser assassinado, tal como toda a sua família. O jornalista disse então a frase que todos os profissionais da comunicação social deveriam proferir em idênticas ocasiões: "não entrevisto presos".

A UNITA é um caso, ao mesmo tempo politicamente interessante e trágico, quer na vida política angolana, quer nas relações daquele país com Portugal. Em Angola, foi a sua recusa em aceitar o veredito das urnas que prolongou uma guerra civil insensata. Em Portugal, o desafeto pelo MPLA levou parte da sociedade política portuguesa a alimentar uma bizarra admiração por um movimento em cujo anti-comunismo muitos viram a emergência de uma possível Angola democrática. Romagens de admiradores lusos de Jonas Savimbi fizeram-se então à Jamba, onde "viram a luz" e as raízes do nascimento de uma Angola utópica, de que se tornariam arautos em Portugal, com ampla benevolência mediática.

Há uma coisa que essas pessoas, entre os quais conto alguns amigos, parece nunca se terem dado conta: pode e deve-se criticar sem peias a barbárie sinistra montada por Jonas Savimbi sem, necessariamente, ter de se aplaudir os métodos do governo de Luanda. (Mas esses são precisamente os mesmos que, nos dias de hoje, logo levantam o dedo acusador a quem classifique de criminosas as ações praticadas por Israel em Gaza, acusando-os de cumplicidade objetiva com os métodos terroristas do Hamas).

Importa acrescentar, para benefício de quem já se não lembrar, que as Nações Unidas (mundo ocidental incluído) condenaram veementemente a inobservância pela UNITA dos resultados eleitorais em Angola, o que levou à imposição pela ONU de um alargado conjunto de sanções à organização, aos seus dirigentes e a todos os países que dela eram cúmplices. Uma "troika" para a monitorização do processo angolano foi criada em Nova Iorque, com Portugal, Rússia a Estados Unidos nessas funções. Ao tempo em que nos coube a presidência rotativa dessa "troika", recordo laboriosos almoços na nossa residência na ONU, com os representantes permanentes russo e americano, respetivamente Sergey Lavrov (atual MNE russo) e John Negroponte (que seria depois o verdadeiro "administrador" americano no Iraque), acompanhados por Ibrahim Gambari, um nigeriano que o SG da ONU destacou para acompanhar o Comité de sanções à UNITA. Esse trabalho continuou até um dia de 2002, em que Savimbi, que optara por continuar a alimentar a luta armada, foi morto numa emboscada. A UNITA regressou então à vida política normal, mas o passado da organização e as responsabilidades do seu líder não devem ser esquecidas.

Há pouco tempo, falei aqui do impressionante relato de Dora Fonte, "O Rapto", uma cooperante portuguesa presa pela UNITA em Sumbe e obrigada, com outros estrangeiros, a palmilhar milhares de quilómetros até à Jamba, numa mera operação de propaganda da organização. Esse interessante relato dá-nos conta, de forma impressiva, sobre o ambiente de terror que se vivia no âmbito da UNITA.

Agora, acabo de ler o relato, mais contido mas também muito claro, feito por Jardo Muekalia, um importante quadro da UNITA, sobre a sua experiência como representante da organização no exterior. O caso de Wilson dos Santos, que refiro no início deste texto, é por ele desenvolvido, com alguns detalhe e pormenores, nesse seu livro "Angola: a segunda revolução - memórias da luta pela democracia", já de 2010. E o recorte da figura de Jonas Savimbi fica bem claro nas suas páginas.

Muekalia era representante da organização em Washington ao tempo em que eu estava em Nova Iorque. Através de um amigo comum, manifestou um dia interesse em encontrar-se discretamente comigo. Mesmo sem pedir orientação a Lisboa, e num contacto telefónico breve, dei-lhe conta da minha indisponibilidade, como representante português na ONU, de ter uma conversa com o delegado de um grupo político que as próprias Nações Unidas tinham considerado "fora da lei". Portugal teria, se o quisesse, outras formas de contactar a UNITA, e o contrário também era verdade. Como membro da "troika" de observadores do processo angolano, não estava disponível para surgir envolvido num diálogo lateral cujo aproveitamento propagandístico seria bem provável. Muekalia, como o livro documenta, era um diplomata hábil. Julgo que compreendeu logo a minha posição.

Bairros & frustrações

Há bairros onde eu gostaria de ter morado - e nunca morei, nem morarei. Em Paris, claro que seria no Marais. Em Londres, não quereria outra área que não Hampstead. Em Nova York, o West Village seria a minha escolha. E a lista não ficaria por aqui, dentre aquilo que conheço (ou julgo conhecer).
 
Em Lisboa, não tenho dúvidas, como sabem todos quantos me conhecem: viver em Campo de Ourique era aquilo de que eu gostava. Por todas as razões: pelo imbatível ambiente de bairro, pela orografia "friendly", pelos restaurantes magníficos e/ou simpáticos, por um comércio variado, entre o contemporâneo e o tradicional. Defeitos? O estacionamento, pronto!
 
Passo muito por Campo de Ourique e ontem descobri por lá, numa parede da rua Coelho da Rocha, esta preciosidade identificadora do bairro. Para que serve ou terá servido? Alguém sabe? 

quarta-feira, agosto 20, 2014

"A Voz de Trás-os-Montes"


Acabo de saber que o semanário "A Voz de Trás-os-Montes" poderá vir a suspender a sua publicação. A assim ser, Vila Real perde um dos seus jornais mais clássicos e eu perco a publicação onde, há precisamente 47 anos, em agosto de 1967, editei o meu primeiro artigo na imprensa e de que sou, creio que desde 1971, fiel assinante.
 
Nesses primeiros tempos, eu passava com ansiedade pela tipografia "Minerva Transmontana", para tentar "controlar" a colocação e o destaque dos artigos, contando para tal com a cumplicidade do meu amigo tipógrafo Carvalho, com quem, ainda há semanas, abanquei à conversa na esplanada da "Gomes". Recordo a publicação dos meus primeiros textos - o primeiro, creio, tinha o desinspirado título "De uma Viana alegre" - e do modo como, com o tempo, fui conquistando espaço e "direito" a novos temas. Desde cedo que a política passou a ser o essencial daquilo que por lá escrevi, mas recordo-me de ter feito igualmente a "cobertura" do Circuito internacional da cidade, bem como crítica de livros. Entre 1968 e 1971, a minha colaboração, quase sempre enviada de Lisboa, passou a ser mais regular, essencialmente dedicada a análises de política interna ou temas de política internacional, aproveitando a abertura moderada da "primavera" marcelista.
 
Um dia, porém, o censor local, o capitão Medeiros, terá levado dois "arrepios" quase sucessivos do serviço central da Censura, em Lisboa. O primeiro foi provocado por um artigo em que eu inseria uma frase em que previa que "o futuro da Rodésia será negro", procurada ambiguidade que o seu lápis azul deixou inadvertidamente passar. O segundo foi ainda mais grave: tratava-se de um comentário sobre um "filósofo" da Europa oriental, de seu nome Vladimir Ilyitch Uliánov, que o pobre do capitão desconhecia ser o nome verdadeiro de Lenine. O censor avisou então o diretor do jornal, o padre Henrique Maria dos Santos, de que eu não podia continuar a publicar por lá. Como só acontece nas pequenas cidades, teve, no entanto, a gentileza de se ir justificar junto do meu pai. Brandos costumes...
 
Depois de 1974, sempre muito a espaços, publiquei alguns textos no jornal, a propósito de temas ou figuras que a oportunidade justificava. Fui sempre acolhido com a maior das amabilidades, pelo ainda atual diretor, padre António Maria Cardoso, bem como pelas suas mais diretas e esforçadas colaboradoras, que asseguravam o essencial da publicação.

Convém notar que "A Voz de Trás-os-Montes", sendo um jornal regional, cumpriu durante as suas décadas de existência um insubstituível papel de ligação dos emigrantes às suas terras de origem. Por todo o mundo, encontrei muitos transmontanos assinantes do jornal, que agora lhe vai fazer bastante falta. Ou será que a nova geração de expatriados e seus descendentes desistiu de assinar o jornal?

Por todas as razões, de que as sentimentais não são as menores, quero deixar aqui uma palavra de grande simpatia ao pessoal de "A Voz de Trás-os-Montes", esperando que ainda lhes seja possível "dar a volta" por cima do conjuntural infortúnio.

terça-feira, agosto 19, 2014

Património

Foi hoje anunciado que o Ministério dos Negócios Estrangeiros terá sido o departamento do Estado que vendeu mais imóveis, num total de 11 milhões de euros. Estou mesmo surpreendido em que não tenham já passado a patacos o Palácio das Necessidades ou o Palácio da Cova da Moura - que davam dois belos hotéis. Mas, se calhar, estou a dar ideias...
 
Imagino que algumas almas piedosas estejam satisfeitas pela delapidação do património público da diplomacia e apoio consular português levada a cabo nos últimos anos, no estrangeiro e no país. Em alguns casos, trata-se de bens que estavam ligados à memória portuguesa em muitas cidades, que uma política externa consequente - melhor, que uma política externa "tout court" - vai ter de reconstituir um dia, com custos agravados para o erário público de então. Mas, por essa altura, os Torquemadas financeiros que estiveram de passagem pelas Necessidades já se terão posto ao fresco. E, com eles, alguns tristes Quislings que por lá ajudaram e ajudam alegremente à festa... 

Uma guerra perdida?

Foi ontem, ao jantar, num restaurante de Lisboa. Na mesa ao nosso lado, dois franceses procuravam "desembrulhar-se" com o menu. Que estava escrito em português e inglês. O pessoal, com uma gentileza impecável, lá procurava ajudar, mas a incomunicabilidade era quase total. Tentámos dar "uma mão" mas, como é sabido, é precisamente nos momentos em que procuramos lembrar-nos do nome de um peixe ou detalhar o modo de cozinhar um prato que o conhecido "alemão" mais nos ataca e os nomes não nos saem.
 
A conversa, inevitável, com os franceses acabou com a constatação, por eles, de que a preservação do francês como língua internacional de comunicação era uma "guerra perdida". Sem querermos concordar em absoluto, tivemos de anuir que, nas novas gerações portuguesas, a apetência pela língua francesa é residual. Há semanas, esta nostálgica constatação já havia sido feita numa sessão no Instituto Franco-Português onde, perante uma dezenas de pessoas reunidas em torno da apresentação de um livro francês de ficção editado em Portugal, houve oportunidade de desenvolver um pouco mais o assunto.
 
A progressiva perda do francês em favor do inglês como língua conhecida pelas novas gerações é um "fact of life" - e não é por acaso que uso uma expressão inglesa para exprimir isto. O inglês veio para ficar como língua veicular. Não apenas o inglês simples, não sofisticado, com umas centenas de vocábulos, aquilo a que alguns chamam "o inglês de aeroporto" ou "de hotel", que será cada vez mais o meio comunicacional do futuro. Mas igualmente o inglês mais elaborado. Nos últimos meses, foi em inglês que dei aulas numa universidade portuguesa, fiz parte (em Lisboa e em outra capital europeia) de júris de concursos de acesso a uma empresa portuguesa em que foi usado o inglês, integro órgãos de direção de empresas nacionais em que as reuniões se passam exclusivamente em inglês (porque estão presentes pessoas de outras nacionalidades e o léxico comum dos negócios é em inglês).
 
E, no entanto, o francês continua a ser uma língua magnífica, dá-nos acesso a uma cultura ímpar e insubstituível. Por isso, posso anunciar aos leitores "francófilos" que está em curso uma saudável "conspiração" para fazer renascer em Portugal o "Cercle Voltaire", uma estrutura que pretende promover a língua e a cultura francesa, organizando eventos e outras iniciativas nesse âmbito. Este blogue não deixará de dar conta, em breve, do que vier a ser público nesse âmbito. A "guerra" pode estar perdida, mas há ainda belas "batalhas" a disputar em torno da língua francesa. Lutar pelo francês "c'est de bonne guerre"!

A face exterior da América

Comecemos pelo óbvio. Os americanos, nas suas escolhas eleitorais, mobilizam-se essencialmente pela agenda do seu quotidiano interno. Nestes...