terça-feira, janeiro 07, 2014

O mistério

Governantes empolgados louvam a importância das exportações para a nossa economia. Em encontro com a diáspora de sucesso, o chefe do Estado sublinha a necessidade da promoção externa do país, com vista a cativar o investimento estrangeiro. Os empresários turísticos afadigam-se a explicar que Portugal deve promover a sua oferta em cada vez mais mercados. Todos entendem decisivo garantir a valorização do actual esforço financeiro português junto dos nossos parceiros e instituições.

As relações com antigas colónias degradam-se, sendo necessário sustentar persistentes esforços de diálogo, em várias dimensões, para as reconduzir à normalidade. Empresas portuguesas expandem a sua actividade em novos mercados, nos quais importa acompanhar com atenção a sua presença e a dos seus trabalhadores. A emigração portuguesa aumenta exponencialmente para vários países, em números que se equiparam aos dos anos 60 do século passado, requerendo esses novos migrantes e suas famílias apoio e aconselhamento consular.

Escritores, artistas e figuras da intelectualidade portuguesa são hoje admirados pelo mundo, sendo vital aproveitá-las como “soft power” de prestígio para recuperação da imagem do país. A CPLP, sendo a única instância multilateral onde Portugal tem uma posição nuclear, deve funcionar como alavanca para a promoção da língua portuguesa, que tem no ensino no exterior um dos veículos essenciais. Uma política para o mar, onde Portugal dispõe de vantagens comparativas à escala de uma potência, obriga a um esforço multilateral de grande envergadura.

Elenquei alguns dos muitos desafios que competem hoje à nossa diplomacia. A acção externa revela-se um dos terrenos essenciais onde Portugal pode encontrar soluções para a superação das suas debilidades, para ajudar à recuperação da sua soberania e imagem.

O “Seminário Diplomático” que ontem e hoje decorre, reunindo governo e diplomatas, vai, com toda a certeza, trazer respostas concludentes para o facto de um Ministério que já tinha uma das mais baixas dotações do Orçamento Geral do Estado (inferior a 1%), nele ter sofrido um dos maiores cortes de todos os departamentos oficiais (11,2%). Vai também, estou certo, explicar porque tem vindo a diminuir drasticamente o número de diplomatas, técnicos e funcionários administrativos do MNE, em Portugal e na nossa rede externa. Deve, seguramente, dar conta clara da racionalidade subjacente à redução e descapitalização funcional de postos consulares em tempo de maiores migrações, à diminuição dos professores junto dessas comunidades emigradas, à imensa quebra das verbas atribuídas ao Camões para a ação cultural. E permitirá, não tenho a menor dúvida, fazer entender o modo como a redução das quotizações e contribuições devidas às organizações internacionais se torna consequente com uma política externa capaz de estar à altura da defesa dos interesses do país. Estou certo que o “Seminário Diplomático” vai esclarecer tudo isso. Até lá, continuará o mistério dos Negócios Estrangeiros.

* Artigo que hoje publico no "Diário Económico"

segunda-feira, janeiro 06, 2014

Confissão tardia

Os brasileiros dizem "caiu a ficha" para designar o instante em que uma certa informação nos desencadeia um reflexo de memória. Foi o que me aconteceu, há dias, quando, ao selecionar os livros que ia doar à Biblioteca Municipal de Vila Real, deparei com "A Sociedade da Abundância", de John Kenneth Galbraith, uma edição de 1963, da "Sá da Costa".
 
O livro original é de 1958 (!) e, à época, foi considerada um obra fundamental daquele famoso economista (e também embaixador americano na Índia, período de que resultou uma memória muito interessante, o "Ambassador's Journal"). A tradução (verifico agora) é de Henrique de Barros, uma grande figura que viria a ser ministro e presidente da Assembleia da República.
 
Aí por 1967 ou 1968, eu costumava passar por aquela Biblioteca, em algumas tardes de férias. Era o tempo em que ela funcionava no rés-do-chão do município, com entrada junto ao liceu. Requisitava um livro ao sr. Agostinho e, lido que fosse, devolvia-o e pedia outro. "A Sociedade da Abundância" terá sido a única exceção a esta regra, talvez por ter sido o último livro que por lá pedi. Fui ficando com ele, julgo que a certa altura já tinha acanhamento de o devolver. Tenho mesmo a ideia de que, às vezes, me furtei ao olhar do sr. Agostinho, pelas ruas da cidade, quando com ele me cruzava.
 
Resolvi há dias esta questão, enviando definitivamente o livro, com muitos outros, para a Biblioteca, no âmbito da doação de que aqui falei. Mas será que ele deve integrar o meu espólio? O Vitor Nogueira que decida...   

História retocada

A fuga da sinistra prisão de Peniche, protagonizada em 1960 por Álvaro Cunhal e nove outros dirigentes do PCP, foi há dias recordada por esse partido.
 
Há poucas semanas, o PCP publicou também uma interessante fotobiografia de Álvaro Cunhal, comemorativa do centenário do seu nascimento.

Não posso deixar de sentir pena que, no primeiro dos casos, durante décadas, o PCP tenha escamoteado, em todos os seus textos, que Francisco Martins Rodrigues fazia parte do grupo que integrou a audaciosa fuga. Porquê? Porque, meses após esse importante momento, Martins Rodrigues viria a abandonar o PCP e protagonizou uma dissidência de esquerda.

E lamento muito que agora, numa clara manifestação de sectarismo, os autores da oficiosa fotobiografia tenham manipulado a imagem em que Cunhal aparece sobre um tanque, na sua chegada ao aeroporto de Lisboa, em 29 de abril de 1974, dela retirando a imagem de Mário Soares, que estava igualmente ao lado do líder do PCP, e que, com esse gesto, dera um magnífico exemplo de solidariedade democrática. Nem Mário Soares merece este ato censório, nem a memória de Álvaro Cunhal fica com ele melhor servida.

O PCP foi um partido que, como nenhum outro, lutou pelo fim do regime que os militares derrubaram em 1974. Muitos homens e mulheres comunistas sacrificaram anos das suas vidas ao seu ideal, sofreram prisões, torturas e perseguições. Por isso, os comunistas não têm necessidade de esconder a realidade para retocar a sua história.  

domingo, janeiro 05, 2014

O senhor Eusébio


Todos devemos reconhecimento a quem nos fez sentir felizes. Eusébio foi responsável por alguns momentos de alegria que tive. Agora, hora da sua morte, agradeço-lhe por isso.

Eusébio costumava contar que, quando chegou a Portugal, feito pé-de-obra colonial, tinha tanto respeito pelos seus colegas já consagrados que tratava o "capitão" Mário Coluna por "senhor Coluna". Pela consideração que a sua figura me merece, apetece-me hoje tratá-lo por senhor Eusébio.

ps - esta excelente foto de Nuno Ferrari, no momento em que Portugal começou a reduzir os três golos que a Coreia do Norte nos tinha imposto, durante o Mundial de 1966, passou a representar, para mim, a imagem da determinação e da garra que é necessário ter quando as coisas correm mal e é urgente "dar a volta" à vida. 

O meu amigo Eros

Salvo para alguns leitores brasileiros, o nome de Eros Grau pouco dirá. Um dia, na embaixada francesa em Brasília, fiquei sentado num jantar perto dessa figura imensa, de barba inesquecível, que eu já tinha visto na televisão. Mas nunca tinha encontrado pessoalmente o juíz do Supremo Tribunal Federal, um dos onze que compõem a instituição. Recordo-me de ter-lhe dito que, na madrugada anterior, estivera deliciado a ouvi-lo, num animado debate jurídico em que ele interviera. Citei mesmo uma frase curiosa, que ele pronunciara nessa circunstância. Eros Grau olhou para mim, surpreendido com a inesperada atenção que eu dava à vida do judiciário brasileiro: "Nem minha sogra viu! Você, embaixador, perde tempo com isso?". E deu uma imensa gargalhada. Foi o início de uma primeira longa conversa.

Eros Grau é um distinto jurista e intelectual brasileiro, professor universitário, autor de dezenas de obras, especialmente na área do Direito económico. Tem em Tiradentes uma fantástica biblioteca de mais de 30 mil volumes. Gosta da vida e gosta dela com a Tânia, com a família, com os amigos, alguns criados ao tempo da luta contra a ditadura brasileira, período em que esteve preso. Entusiasma-se por causas, é um furioso defensor da ética na política, o que lhe tem valido, nos últimos anos, remoques de antigos amigos. É uma das pessoas mais divertidas que conheço, culto "à bessa" (como dizem os brasileiros), com limite curto de paciência para os "chatos de galocha" que o mundo às vezes nos coloca à frente.

Desde essa noite de Brasília, passou entre nós uma corrente de simpatia, que viria a ser cimentada por visões comuns da vida. Com os anos, Eros passou de um conhecido a ser um grande amigo meu. Hoje é um amigo íntimo, como tenho muito poucos, daqueles quecse contam pelos dedos de uma mão. Longas noites passámos na charla, acompanhada de álcoois, histórias e gargalhadas, primeiro no Brasil, depois muito em Paris, onde Eros Grau, hoje aposentado do judiciário, mas bem ativo, tem uma residência e também trabalha. Viajámos juntos pela Europa. Comungamos paixões por muitas coisas, somos cúmplices de outras, trocamos alguns segredos.

Eros escreveu um livro de que já aqui falei um dia e que faz furor junto dos muitos brasileiros que amam Paris: "Paris - Quartier Saint-Germain-des-Prés". Uma noite de domingo, na brasserie Lipp, uma brasileira aproximou-se da nossa mesa, volume em punho, para lhe pedir um autógrafo. Enquanto o Eros laborava na dedicatória, a senhora voltou-se para mim e perguntou: "Você deve ser o Francisco, não?". É que o Eros começa um dos seus capítulos do livro dizendo que, aos domingos, ele e a Tânia juntavam invariavelmente conosco na Lipp...

Hoje à noite, domingo, nessa mesma Lipp, o Jean-Louis "arrumará" uma mesa para a Tânia e para o Eros, naturalmente do lado direito da sala. Aposto que o Eros começará por pedir o arenque Bismark (que não sai da lista desde dos anos 20), seguir-se-á a "leve" choucroute, para tudo acabar num "mille feuilles au kirsch", a partilhar com a Tânia. Ah! tudo regado com um Chablis. Atravessado o boulevard, o café será servido no "Flore" (na mesa à esquerda da porta que, para si, leitor, terá um inultrapassável "reservée" metálico), com o Francis a ordenar a saída do "médicament", nome com que o Eros crismou para sempre uma "poire william" que o meu fígado já não ousa há décadas.

Porque falo nisto hoje? Porque acabo de me dar conta que, no dia 20, segunda-feira, chegamos nós a Paris, vamos jantar à Lipp e nela não estarão a Tânia e o Eros, já então de abalada para o Brasil. Caro Eros, contrariamente ao que dizia o teu querido sósia de Trier, nem sempre a História se repete. Ou melhor, sem ti, como ele também afirmava, é tudo uma farsa.

Em tempo: o Eros e a Tânia acabaram pir alterar a sua partida para o Brasil para jantar conosco, um dia na Lipp (o Eros diz "o Lipp", eu digo "a Lipp", por respeito ao género da "brasserie") e outra na Closerie de Lilas. Noites bem divertidas, que invariavelmente acabaram no Flore, com o Francis a mostrar-nos retratos da sua neta "moitié portugaise".

sábado, janeiro 04, 2014

A realidade nos matraquilhos

("Um verdadeiro sportinguista não deveria contar esse episódio no blogue", disse-me o meu leonino interlocutor, com ar pré-censório, quando ontem lhe relatei que ia escrever o que se segue. É isso: eu não devo ser um "verdadeiro" sportinguista, sou, muito simplesmente, um sportinguista sincero, que não teme os factos. Por isso, aqui vai a historieta.)

Foi num dia da primeira metade dos anos 80, perto de S. Bento da Porta Aberta. Aquele meu amigo, então com casa no Gerês, onde passávamos belos dias de férias, era - e é - um leixonense dos quatro costados. Nessa qualidade, detesta tudo o que lhe "cheire" a Futebol Clube do Porto. Assisti a episódios homéricos, decorrentes desta inultrapassável fobia.

Por esses dias, o seu objetivo era adquirir uma mesa de matraquilhos, se possível em segunda mão, para apoio lúdico à moradia no Gerês. Nessa tarde de verão, tínhamos parado para beber uma cerveja, num café de estrada. À entrada, notámos um letreiro: "Vende-se mesa de matraquilhos". Vinha mesmo a calhar!

Enquanto eu me deliciava com um "fino" atremoçado, o meu amigo partiu para a cave, com o dono do café, para ver a mesa à venda. Não eram decorridos mais do que uns breves instantes quando ouvi uma troca de argumentos e vi o meu amigo emergir da escada, arfando e exclamando: "Era o que faltava! O gajo é 'andrade'!". E, passando por mim, a caminho do carro, anunciou: "Já não bebo nada! Aqui nunca mais venho". E saiu, disparado. Fiquei curioso: seria apenas pelo facto de ter constatado que homem era portista que o meu amigo se recusara a fazer o negócio? Mesmo para um leixonense radical, era demais!

Quando, acabado o "fino", regressei ao automóvel, decifrei o mistério. Não, não fora a circunstância do proprietário do café ser adepto do FCP que provocara a cena. A reação devera-se ao facto de uma das "equipas" dos matraquilhos ter o azul do equipamento portista. Para o meu amigo, a saída do verde-vermelho tradicional era lamentável. E então ter "o Porto" em casa, isso seria impensável!

Para mim, esse acabaria por ser um momento significativo. Nunca vira, em Portugal, uma mesa de matraquilhos cujos bonecos não tivessem as cores do Sporting e do Benfica. Mas o mundo tinha mudado. O Porto entrava, por legítimo direito, nesse "campeonato" do imaginário. Não era uma constatação que deixasse feliz um sportinguista. Mas era o que era.

sexta-feira, janeiro 03, 2014

Interesses estratégicos

Notícia que acabo de ler no "Diário Económico":

"Passados mais de dois anos de ter sido incumbido de criar um regime extraordinário para acautelar privatizações que coloquem em causa a segurança e os interesses estratégicos nacionais, o governo apresentou finalmente a proposta de lei no parlamento. O documento, a que o DE teve acesso, deu entrada na Assembleia da República a 9 de dezembro e especifica que o governo passa a poder vetar negócios que "afetem a disponibilidade das principais infraestruturas ou ativos estatégicos afetos â defesa e segurança nacional ou à prestação de serviços essenciais nas áreas da energia, transportes e comunicações".

É muito curioso que esta iniciativa legislativa surja depois das principais privatizações nestes setores estarem já concluídas. 

Criação de emprego

Alguns comentadores com mau feitio não se cansaram de criticar os números sobre os novos empregos gerados graças às políticas deste governo, que há dias foram jubilosamente anunciados pelo primeiro ministro. 

Cá por mim, até acho que os números apresentados foram modestos! 

É da mais elementar justiça colocar a crédito das políticas públicas deste executivo as centenas de milhares de empregos de que os portugueses têm vindo a beneficiar - em Angola, Moçambique, Reino Unido, França, Brasil, etc.

Já é vontade de dizer mal...

"Ilustração Portuguesa"

São 37 volumes. Encadernados em belo couro. É a "jóia da coroa" da minha biblioteca. É a coleção completa da "Ilustração Portuguesa", esse retrato ímpar da vida portuguesa, de 1903 a 1924. São 947 números recheados de fotografias. Está lá tudo - a decadência (escondida) dos últimos Braganças, o regicídio, os números empolgantes sobre o 5 de outubro, toda a saga da Primeira República, com a Grande Guerra pelo meio. Os últimos números denotam já um certo cansaço. Era o regime a esvair-se, a caminho da ditadura.

A "Ilustração" figurava em destaque em casa da minha avó, em Viana do Castelo. Fora colecionada, durante mais de 20 anos, por uma figura que só conhecíamos pelo retrato fardado na parede e pelas medalhas pendentes num caixilho envidraçado: o Tio Túlio. O meu pai falava sempre desse cunhado, desaparecido ainda antes de eu nascer, como uma figura de pendor intelectual, dado a conhecimentos bizarros, do esperanto ao espiritismo, das técnicas policiais a estudos sobre tipos tipográficos. Já um dia por aqui falei desses armários recheados de belas encadernações, situados no apelativo escritório, uma sala onde, a partir de meados dos anos 50, durante os meses de verão, era armada a minha cama. Cresci com esse cenário das três paredes de livros que me rodeavam nas férias. Só muitos anos mais tarde essas vitrines me foram acessíveis, embora com decrescentes limitações. Foi a partir de então que pude começar a folhear a "Ilustração", mas também a coleção do ABC, uma revista iniciada nos anos 20 e que iria desaparecer nos primeiros tempos do Estado Novo, com um toque gráfico modernista, mas já sem a qualidade de conteúdo da "Ilustração Portuguesa".

Por um daqueles percursos das coisas que ocorrem na vida das famílias, aquela coleção da "Ilustração" surgiu um dia à venda, em meados dos anos 60, num alfarrabista do Porto. O meu pai soube do facto e pediu a um amigo, que se deslocava regularmente àquela cidade, para se informar sobre o preço que era pedido. O custo pedido ainda era significativo e os tempos não eram fáceis. Para minha surpresa, o meu pai, que não era muito dado a consultar-me para coisas da vida, perguntou-me se eu estaria interessado em ter a "Ilustração" para mim. Disse logo que sim, a "Ilustração" era um sonho que nem sequer ousara ter. O amigo viajante encarregou-se da compra e, um dia, lá chegou um pesado volume. A "Ilustração Portuguesa" passou, desde então, a ser "minha".

quinta-feira, janeiro 02, 2014

Viena

Durante anos, dava-me algum trabalho conseguir assistir em direto, na televisão, ao concerto de Ano novo que, em cada dia 1 de janeiro, a orquestra filarmónica de Viena executa no Musikverein, a mítica sala da capital austríaca. Às vezes não estava em casa, noutras tinha por lá gente, outras ainda andava em viagem. Os sistemas de gravação automática dos canais de cabo permitem-nos agora ver o espetáculo quando nos apetece, o que nos deixa sem desculpa para não assistir a um dos grandes momentos do ano musical à escala global. Foi o que fiz ontem à noite.

Quando vivi em Viena, nunca por lá passei os períodos de fim-de-ano, pelo que também nunca me vi obrigado a lutar para obter entradas para este concerto. Fui ao Musikverein diversas vezes, a mais curiosa das quais terá sido num dos meses iniciais de 2003, para o "Ball Der Industrie und Technik", um dos grandes bailes anuais da capital austríaca. Apesar de ser um "pé-de-chumbo", lá engalanei a labita de grã-cruzes para o evento, como é de regra. O Musikverein é uma das salas de espetáculo mais fascinantes que conheço, pelo que, confesso, tive pena de nunca ter estado, ao vivo, num seu concerto de Ano novo. Participar no tradicional acompanhamento, pelos espetadores, da marcha Radetzky, de Johann Strass, a tradicional última peça do concerto, foi algo que (ainda?) me ficou por fazer.

Viena foi um posto diplomático que me deixou "mixed feelings". Em 2002, fui para lá viver contra a minha vontade, interrompendo inopinadamente o trabalho que estava a fazer noutras funções. Coube-me então a responsabilidade de dirigir uma imensa representação nacional (só entre diplomatas, militares e técnicos vários, éramos, creio, 18 pessoas, além do pessoal administrativo), num período complexo, durante a presidência portuguesa da OSCE (Organização para a Segurança e Cooperação na Europa). Saído dessa tarefa intensa, passei, de um dia para o outro, e contrariamente ao que estava acordado, a um período que costumo qualificar como a minha "osceosidade". Porque estar sem praticamente nada para fazer se coaduna muito pouco com o meu feitio, optei por me dedicar a palestrar sobre um tema bem especioso, as chamadas CSBM ("Confidence and security building measures"). Em representação e a expensas da OSCE, andei então por sítios tão diversos como Trieste, Astana, Tóquio, Amman, Varsóvia, Tbilisi, Seoul ou Charm-el-Sheik, entre outros. Se Portugal me dava uma indesejada sabática, aproveitei para viajar e trabalhar. E, nas folgas, ouvir música.

Lembrei-me ontem disto e de muito mais ao ver e ouvir o magnífico concerto vienense de Ano novo, sob a direção de Daniel Barenboim.   

quarta-feira, janeiro 01, 2014

O novo ano

Deixei, há muito, de acreditar na ritual ideia de ter o início do ano civil como ponto de partida para um novo tempo na vida pessoal. Se, ao longo do ano anterior, não fomos capazes de mudar atitudes e práticas, dificilmente será a simples entrada de janeiro a dar-nos a força e, em particular, a  persistência que até aí não tínhamos tido - seja o arrumar daquela estante ou arrecadação, sejam os contactos pessoais em atraso, seja recomeçar a escrever um texto há muito adiado ou qualquer outro ato que seguramente nos ajudaria a melhorar e organizar a vida. Mas percebo muito bem que alguns persistam em tentar utilizar essa marca temporal como o momento para o abrir da ilusória cortina que nos separa de um futuro de maior racionalidade.

Pesando bem as circunstâncias, contudo, iniciar uma dieta hoje não seria uma má ideia...

terça-feira, dezembro 31, 2013

Governo

José Leite Martins é o novo secretário de Estado da Administração Pública. Conheço-o bem, em especial ao tempo em que dirigia os serviços jurídicos do MNE. É uma pessoa que me merece simpatia. Recordo o dia em que me deu conta da sua vontade de não continuar no lugar que ocupava, não obstante o governo a que eu então pertencia não ter intenção de vir a substituí-lo. Foi ele quem insistiu em sair, por opção de carreira. Tempos depois, seria testemunha privilegiada de que outros tempos trazem outras formas de fazer política.

António Costa Moura, o novo secretário de Estado no Ministério da Justiça, foi o meu mais direto colaborador em Paris, em 2009, tendo depois ido ocupar a chefia do consulado-geral em São Francisco. Ficámos amigos. Também ele antes tivera oportunidade, bem de perto, de testemunhar o sectarismo político a comandar a administração pública. Noutro ciclo político, claro. Falámos muito sobre isso.

Todas as felicidades que a ambos desejo são, naturalmente, pessoais. Como eles compreenderão.

A Misericórdia dos Mercados

Neste último dia do ano, deixo-os, por ora, com o magnífico poema - "A Misericórdia dos Mercados" -  que fui buscar ao sempre imprescindível Tim Tim no Tibete:

Nós vivemos da misericórdia dos mercados
Nào fazemos falta.
O capital regula-se a si próprio e as leis
são meras consequências lógicas dessa regulação
tão sublime que alguns vêem nela o dedo de Deus.
Enganam-se.
Os mercados são simultaneamente o criador e a
própria criação.
Nós é que não fazemos falta.

segunda-feira, dezembro 30, 2013

Blogue

Diálogo, hoje à tarde:

- Não percebo como é que tens temas para escrever todos os dias o teu blogue...

- Nem sempre tenho, é verdade.

- Então como fazes?

- Arranjo...

Paulo Ferreira

Paulo Ferreira é um excelente jornalista económico. Conheci-o ao tempo em que ele trabalhava no "Diário Económico". Era diretor-adjunto, com Sérgio Figueiredo como diretor. Recordo-me de termos tido uma curta mas divertida polémica, já não sei a propósito de quê. Ficámos amigos. Nos anos seguintes, vi-o comentar economia na televisão, sempre de uma forma discreta, acessível, bem fundamentada, sem o "rei na barriga" de algumas vedetas do setor.

Paulo Ferreira sai agora de diretor de informação da RTP. Vai assim ser mais fácil marcarmos o almoço que, há semanas, havíamos combinado.

Em tempo: Paulo Ferreira vai passar a ter uma coluna semanal no "Diário Económico". Ficaremos "colegas"...

domingo, dezembro 29, 2013

El Porto

Nos restaurantes e nas lojas, os empregados já arriscam o "portuñol" sem se rirem. Eles e elas, com a decibélica sonoridade pública ibérica, comentam montras e chamam pelo "cariño" no passeio das Cardosas ou à porta dos bares da Galeria de Paris. Os espanhóis "invadem" - e fazem muito bem, só podemos felicitar-nos por isso! - o Porto nos dias de hoje, chamados pelos preços de um país em saldos de si mesmo, por uma cidade sobriamente acolhedora, com a pedra das casas e o esconso das vielas a lembrar-lhes, confortavelmente, a sua terra, em especial a Galiza, que é também uma parte de nós mesmos.

Mas a Espanha já por cá estava antes dos espanhóis chegarem. No novo e excelente Vinium, fui recebido por um espanhol e muito do menu deve bastante a "nuestros hermanos". No Hotel da Música, a loiça era Porcelanosa. Saída a porta, dou de caras com uma Zara. Entrado no Península ("por supuesto"), a primeira loja era Purificación Garcia, ao fundo o Adolfo Dominguez e a Bimba & Lola, com a Carolina Herrera, do outro lado, a reforçar a marca da "hispanidad". Atravessando a rua para o renovado mercado do Bom Sucesso, por lá temos a "tienda" do "jamón" Joselito, com o Cinco Jotas disponível e, um destes dias, aportará por ali o imbatível Maldonado.

Para mim, que gosto e admiro a Espanha, isto são só boas notícias. Espero, contudo, que as nossas empresas sejam também capazes de se colocar na primeira linha do mercado espanhol, logo que se confirmem os sinais de recuperação económica. E que os governos portugueses estejam mais atentos à necessidade de lutar contra o tropismo protecionista que os nossos únicos vizinhos terrestres não deixam regularmente de assumir, seja em obstáculos não pautais ao comércio, seja em dificuldades administrativas que por vezes inviabilizam a presença portuguesa em setores económicos espanhóis. É que, antes da crise, o mercado português representava para a Espanha mais do que a totalidade do seu comércio com todas as suas antigas colónias nas Américas. Sabiam? Os empresários portugueses sabem bem do que falo.

Guiné-Bissau

O embarque forçado de dezenas de cidadãos sírios num avião da TAP, sob pressão das autoridades guineenses, constituiu um ato da maior gravidade e representou um gesto de clara hostilidade para com Portugal. A questão, contudo, tendo uma indiscutível dimensão bilateral, não pode deixar de ser tratada, em prioridade, no quadro internacional, perante o qual deve ficar bem claro que a administração de facto que domina Bissau age à margem das normas mínimas que um qualquer Estado deve respeitar na ordem externa. A acrescer às acusações de cumplicidade no narcotráfico, o governo saído do golpe militar anti-constitucional projeta agora esta nova imagem delinquente e isto não pode passar impune perante a comunidade internacional. Nenhum argumento de realpolitik deve sobrepor-se à necessidade de Portugal dever estar, neste caso, na primeira linha de mobilização de vontades para promover a condenação de um Estado pária que é como a Guiné-Bissau de hoje se apresenta ao mundo.

Portugal pode e deve também retirar todas as consequências, no plano bilateral, das inaceitáveis, por desrespeitosas, declarações de responsáveis guineenses face à legítima expressão de indignação formulada pelas suas autoridades (e era importante que se soubesse que decisões o nosso governo tomou já nesta matéria), mas só se fragilizará se se continuar a deixar envolver numa "guerra" de argumentos através da qual a parte guineense procurará criar fórmulas sucessivas de diversão, iniciadas com o caricato "relatório" sobre o incidente e prolongadas agora com "questão" as dívidas da TAP. 

A condenação essencial que é importante garantir para este ato de pirataria - e é como ato de pirataria que o assunto deveria ter sido tratado por Lisboa desde o primeiro momento - é, naturalmente, no campo multilateral. Com firmeza e sem tibiezas, nomeadamente sem se deixar impressionar pelos apelos apaziguadores da comunidade dos interesses, que não podem nunca sobrepor-se aos princípios que sempre compete a Portugal defender na ordem externa, o nosso país deveria ter ido muito mais longe do que até agora se sabe ter ido no processo de denúncia e isolamento das autoridades guineenses, quer no plano multilateral europeu (mas não só), quer no âmbito da mobilização da solidariedade por parte da CPLP, que curiosamente não se viu nem ouviu. Mas, de facto, não tendo hoje Portugal, na prática, um representante diplomático junto da organização - inacreditável situação a que a nossa comunicação social não presta a menor atenção - como poderia o nosso país utilizar o quadro lusófono como uma das frentes para tratar devidamente este assunto?

Com pena, temo que nos deixemos enredar num processo que, com o passar dos dias, e com a prestimosa ajuda das agências portuguesas de comunicação - que, nos últimos dias, ajudam Bissau a "plantar" entrevistas, declarações e até "notícias" na nossa imprensa - , acabará por "beneficiar o infrator" ou, pelo menos, deixar passar impune esta falta. Espero bem estar enganado...

sábado, dezembro 28, 2013

Décadas

Faz hoje precisamente 40 anos. Encontrámo-nos com os padrinhos num café na praça de Londres. Descemos a Guerra Junqueiro, subimos a um cartório e assinámos o que havia para assinar. O padrinho estava tão bem aperaltado que o conservador lhe perguntou se era ele o noivo! Acabada a cena, fixada para a posteridade por uma máquina a que o dono se tinha esquecido de tirar o filtro amarelado que à época se usava muito para atenuar o sol (o que fez com que o nosso genuíno sorriso, registado na ocasião, tivesse ficado, para sempre, amarelo), lá seguimos todos (o "todos" eram os noivos e os dois padrinhos) para uma jantarada que, não sei bem porquê, foi em Sesimbra. Foi assim que esta história começou. Ou melhor, ela verdadeiramente começou antes, pelo que hoje vamos comemorá-la, também com pouca mas muito boa gente, isto é, com dois amigos (e respetivos pares) que, vai para cinco décadas, testemunharam o início de tudo.

sexta-feira, dezembro 27, 2013

A outra cidade

Vi-o ontem, a dar comida aos pombos. Deve ter cerca de 80 anos. Na Vila Real da minha adolescência, um tempo em que a homofobia tresandava na sociedade portuguesa, era objeto regular de sorrisos irónicos, quando não de "bocas" soezes, ao cruzar, com passos curtinhos e andar bamboleante, os nossos grupos de adolescentes, "armados" em machistas. Viamo-lo passear sozinho ou com outro amigo de perfil público similar. Às vezes, perdia-se com soldados "do 13", pelos caminhos do Circuito. Fazia então parte de um grupo de figuras que viviam num outro mundo, nessa sociedade de província que, nos anos 50 e 60, deve ter sido um espaço asfixiante e trágico para quem era forçado a desafiar a "normalidade" instalada. Esta é também uma imagem, bem menos gloriosa mas seguramente inevitável para a época, da cidade da minha juventude.

quinta-feira, dezembro 26, 2013

"Cavaleiro Andante"

                                     
O "Cavaleiro Andante" moldou para sempre o meu imaginário. Algumas memórias fortes que marcaram a minha infância e juventude foram fixadas a partir dessa incomparável revista de banda desenhada (na altura, dizia-se "de quadradinhos"), que acolhia preferentemente os autores tributários da "escola belga" de BD, e que abriu caminho aos primeiros desenhos portugueses. Mas a revista tinha muito mais: falava-nos de história, de desporto, de literatura, trazia jogos e promovia a interação com os seus jovens leitores. O "Cavaleiro Andante" nasceu em 1952, tinha eu quatro anos, e durou dez anos. Observando alguns números mais antigos e o facto de várias histórias neles inseridas permanecerem na minha memória, concluo que, muito provavelmente, eu tenha então lido restrospetivamente toda a coleção. Durante anos, pela casa dos meus pais, havia números dispersos dessa revista semanal que tão importante fora para a minha formação. Fui assim matutando na possibilidade de vir a reconstituir a coleção completa da revista.

Um dia, em 1986, decidi colocar um pequeno anúncio em "A Capital", onde dizia estar interessado em adquirir a coleção completa do "Cavaleiro Andante". Surgiu uma única resposta. Numa noite, fui a uma cave na avenida Dom Carlos, em Lisboa, onde vivia o vendedor. Era um homem bastante mais velho do que eu. Tinha à venda uma excecional coleção, a que faltavam apenas meia dúzia de números, o que me satisfazia por completo. A conversa nunca a esquecerei. O homem mantinha as revistas embrulhadas em jornais e deixou claro que desfazer-se delas lhe custava bastante. Os olhos brilhavam-lhe enquanto me contava que, ao longo dos anos, tinha conservado cuidadosamente essa publicação que, também para ele, fora da maior importância. A partir de certa altura, a sua ideia fora completar a coleção para a oferecer ao filho. Porém, para sua grande desilusão, o filho não manifestara o menor interesse e, agora, ele tinha escasso espaço para a manter. Por isso, ao ver o meu anúncio, decidira-se a vendê-la. Não tive coragem para regatear o preço que me pedia: "quinze contos".

É assim que hoje sou um feliz proprietário da coleção do "Cavaleiro Andante". Encadernei-a, conservo-a com cuidado e abro-a com alguma frequência, com um prazer que só aqueles que foram leitores fiéis da revista têm condições de perceber.

Queijos

Parabéns ao nosso excelente queijo!  Confesso que estou muito curioso sobre o que dirá a imprensa francesa nos próximos dias.