Todos somos, um pouco, filhos da América. Da literatura ao cinema, da música ao consumo, da pintura à universidade, somos herdeiros e sujeitos do poderoso soft power que nos chega do outro lado do Atlântico, servido por uma língua que se tornou comum e absorvente. O iPad em que escrevo é, pela certa, feito na China, mas a esmagadora maioria dos conteúdos que nele observo são tributários de fontes a que os Estados Unidos não são alheios.
A América foi o instrumento da esperança que, na Segunda Guerra mundial, ajudou a Europa a libertar-se dos seus demónios. Depois, por aqui ficou, como poder europeu, através da Nato, protegendo o template demo-liberal da ameaça soviética. Pelo mundo, impulsionou uma arquitetura institucional que ainda hoje sobrevive. Contra Moscovo, bipolarizou o mundo, que, por décadas, passou a branco-e-preto. Exauriu depois a União Soviética e ganhou a Guerra Fria. Pelo caminho, demonstrou, não raramente, um descarado cinismo estratégico, colocando os seus interesses à frente da coerência com princípios que apregoava e a que apelava a respeitar. Criou inimigos, mas foi sempre temida – e, no fim de contas, o medo dos outros é fautor de poder próprio.
Marcelo Rebelo de Sousa perdoar-me-á se eu escrever que qualquer presidente americano, de uma certa forma, é também, um pouco, nosso presidente. Porque a atitude internacional dos EUA é sempre relevante, queiramos ou não, para o nosso dia-a-dia. É-o na forma como se relaciona com a Europa, na leitura que promove do multilateralismo, na política comercial, nas opções de segurança. Até o é nas Lajes, na política de vistos ou na gestão dos salvíficos green cards.
Não votamos nas eleições americanas, mas, na realidade, cada votante yankee é um «grande eleitor» de todo um mundo que gostaria de o poder fazer.
Eu não escapo à regra. Com três anos, devo ter estado com Adlai Stevenson contra Eisenhower. E perdi. Não me recordo, porque não tinha idade para isso, de ter então visto o debate em que a sua five o’clock shadow ajudou Nixon a ser derrotado. Mas, com toda a certeza, eu estava ali ao lado de Kennedy. Depois, daí em diante, hesitei com Johnson, apreciei Carter, detestei (e detesto, for the record) Reagan, respeitei Bush pai, acabei convencido por Bill Clinton, desprezei Bush filho e considerei a eleição de Obama uma benesse civilizacional.
E chegámos ao dia de hoje. Bob Dylan, numa das suas canções, conta e canta que, um dia, foi, creio, ao Utah e deu-se conta da estranheza hostil com que o viram sobraçar o The New York Times. Sabia-se que essa América existia, Sarah Palin e o Tea Party prenunciavam-na, mas ninguém acreditava que ela se corporizasse um dia na Casa Branca. Agora? Agora, como diz o bom-senso do óbvio, o que tem de ser tem muita força.
(Publicado hoje no "Jornal de Notícias")
A América foi o instrumento da esperança que, na Segunda Guerra mundial, ajudou a Europa a libertar-se dos seus demónios. Depois, por aqui ficou, como poder europeu, através da Nato, protegendo o template demo-liberal da ameaça soviética. Pelo mundo, impulsionou uma arquitetura institucional que ainda hoje sobrevive. Contra Moscovo, bipolarizou o mundo, que, por décadas, passou a branco-e-preto. Exauriu depois a União Soviética e ganhou a Guerra Fria. Pelo caminho, demonstrou, não raramente, um descarado cinismo estratégico, colocando os seus interesses à frente da coerência com princípios que apregoava e a que apelava a respeitar. Criou inimigos, mas foi sempre temida – e, no fim de contas, o medo dos outros é fautor de poder próprio.
Marcelo Rebelo de Sousa perdoar-me-á se eu escrever que qualquer presidente americano, de uma certa forma, é também, um pouco, nosso presidente. Porque a atitude internacional dos EUA é sempre relevante, queiramos ou não, para o nosso dia-a-dia. É-o na forma como se relaciona com a Europa, na leitura que promove do multilateralismo, na política comercial, nas opções de segurança. Até o é nas Lajes, na política de vistos ou na gestão dos salvíficos green cards.
Não votamos nas eleições americanas, mas, na realidade, cada votante yankee é um «grande eleitor» de todo um mundo que gostaria de o poder fazer.
Eu não escapo à regra. Com três anos, devo ter estado com Adlai Stevenson contra Eisenhower. E perdi. Não me recordo, porque não tinha idade para isso, de ter então visto o debate em que a sua five o’clock shadow ajudou Nixon a ser derrotado. Mas, com toda a certeza, eu estava ali ao lado de Kennedy. Depois, daí em diante, hesitei com Johnson, apreciei Carter, detestei (e detesto, for the record) Reagan, respeitei Bush pai, acabei convencido por Bill Clinton, desprezei Bush filho e considerei a eleição de Obama uma benesse civilizacional.
E chegámos ao dia de hoje. Bob Dylan, numa das suas canções, conta e canta que, um dia, foi, creio, ao Utah e deu-se conta da estranheza hostil com que o viram sobraçar o The New York Times. Sabia-se que essa América existia, Sarah Palin e o Tea Party prenunciavam-na, mas ninguém acreditava que ela se corporizasse um dia na Casa Branca. Agora? Agora, como diz o bom-senso do óbvio, o que tem de ser tem muita força.
(Publicado hoje no "Jornal de Notícias")