segunda-feira, novembro 07, 2011

"Call me God"

Por um motivo que não vem ao caso, organizei ontem um almoço na Embaixada com uma dezena de personalidades britânicas que, de comboio pelo túnel, vieram de Londres, regressando a meio da tarde. A insularidade britânica, de facto, já não é o que era.

Um dos presentes lembrou, simpaticamente, uma condecoração inglesa que possuo (aliás, a única), "Companion of St. Michael and St. George" (vulgarmente designada por CMG). Se, como aqui referi, os franceses levam as condecorações muito a sério (a prova dessa importância é o facto, que tenho provado à saciedade, de, com elas exibidas, se arranjarem muito melhores mesas em restaurantes...), os britânicos mantêm um reverencial respeito por essas distinções. E, ontem, alguns desses amigos ficaram surpreendidos por eu ser possuidor dessa condecoração.

É importante começar por relativizar estas coisas. Para um cidadão britânico, poder obter uma condecoração como aquela implica quase uma vida inteira de esforço e reconhecimento público. No meu caso, foi muito simples: estava no lugar certo no momento certo, isto é, era ministro-conselheiro na Embaixada portuguesa em Londres durante uma visita de Estado, ocasião em que, vulgar e rotineiramente, se trocam condecorações. O meu mérito é, assim, quase nulo. Não digo isto com falsa modéstia, mas apenas porque é pura verdade. Mas, talvez porque me "esqueci" de os informar do caráter fortuito da minha distinção, os meus visitantes estavam genuinamente impressionados com a alta condecoração que a sua soberana me atribuíra.

As condecorações têm, contudo, à sua volta, histórias curiosas. Uma das personalidades não deixou de lembrar que, no histórico humor britânico, um possuidor de um CMG está como que a apelar a "Call me God" (outro, mais ácido, lembrou que, no tempo do Império, a designação era menos suave: "Colonial made Gentleman"). E logo lembrou que, na categoria imediatamente acima, a de "Knight Commander of St. Michael and St. George", pode-se mesmo dizer que "King calls me God". Ainda se, por um bambúrrio, alguém tiver obtido o grau máximo dessa ordem "Grand Cross of St. Michael and St. George", então teria mesmo o direito de afirmar "God calls me God"... Resta dizer que quem tiver o KCMG ou o GCMG tem direito a ser chamado por "Sir", coisa que, no meu caso, só consigo ouvir, da boca dos porteiros, à entrada nos hotéis britânicos...

Para alguns, estas são as coisas com que os diplomatas se divertem. Para nós, que andamos nesta vida, estas fazem parte das graças que alimentamos nos intervalos do trabalho que fazemos para benefício dos interesses desses alguns...

15 comentários:

Jose Tomaz Mello Breyner disse...

Senhor Embaixador

Ao ler este seu texto lembrei-me de uma passagem das memórias de meu Bisavô, Thomaz de Mello Breyner, sobre este assunto e que passo a transcrever:


" Toda a gente está farta de saber que as venéras que enfeitam as fardas dos funcionários palatinos, principalmente os da Casa Civil, teem apenas o valor d'umas lembranças vindas de Chefes d'Estado e Principes que visitam côrtes Estrangeiras ou são visitados no seu paiz.
Ora n'uma tarde de beija-mão em Ajuda houve um Ministro da Corôa que teve o máu gosto de perguntar ao Marquez -Barão d'Alvito como é que ele tinha arranjado tantas condecorações.
O Camarista respondeu logo : " Olhe Senhor Conselheiro foram todas elas ganhas com as armas na mão" e, apontando para o peito explicou :
" Esta deram-m'a por matasr coelhos no Alfeite, esta por matar galinholas em Mafra, est'outra por alvejar gamos em Villa-Viçosa, e ainda esta por abater patos bravos na Lagôa de Albufeira".
O Estadista não gostou da troça e já ia a afastar-se com um sorriso amarelado quando o Alvito o chamou ao vão de uma das monumentais janellas do Palácio para lhe dizer que se esquecêra de mostra mais uma ganha na pesca das lulas.
!?!?!?
" Se V. Exª não sabe como se faz essa pesca eu lhe explico. Fechou a mão direita e com as unhas voltadas para cima executou uma série de flexões do ante-braço sobre o braço.
( Memórias do Professor Thomaz de Mello Breyner - 4º Conde de Mafra - 1869-1880 )

Helena Sacadura Cabral disse...

Senhor Embaixador, a Carreira Diplomática tem, de facto, aspectos curiosos. Como têm o Exército ou a Marinha.
Sempre brinquei muito com o meu irmão mais velho, que a escolheu, por causa disso.
Mas acabo de ser surpreendida por uma nova faceta de quem exerce acidentalmente essas funções: uma casaca especial para receber as acreditações do corpo diplomático.
Se na Defesa se exigisse o mesmo, já lá iam duas...

ARD disse...

Obtive a primeira (e algo provisória) das minhas (muito) poucas condecorações, na sequência de uma visita de Estado a Portugal.
A visita terminara no dia anterior e, segundo parece, teriam sobrado duas ou três comendas do país cujo Chefe de Estado nos honrara com a sua presença.
Nessa manhã, o Subchefe do Protocolo entrou na sala onde se amontoavam quatro ou cinco jovens funcionários e, olhando à volta, perguntou pelo “Dr. Fulano”.
Que não estava, tinha pedido o dia de folga, depois do período esgotante da visita.
O Subchefe do Protocolo pareceu incomodado, ia virar costas mas parou, olhou para a caixa que trazia na mão, abeirou-se da secretária mais próxima, que era a minha, pousou a caixa e disse: "Olhe...fique você com isto."
Dentro da caixa reluzia uma bonita medalhinha, mais uma roseta, ambas lindamente coloridas.
Juro que a entreguei ao seu destinatário inicial! Este bem tentou recusar mas acabou por ceder perante a minha insistência e a dos restantes colegas.
Mas durante um ou dois dias, fiz parte de uma obscura Ordem de um pequeno País, com um nome grandiloquente e vagamente exótico.
Claro que duvido que a "real munificência", como diria o Eça, de Sua Majestade Britânica em relação a V.Exª. tivesse sido tão conjuntural.

Anónimo disse...

ADENDA

Gostei do comentário do director geral da York House, mas a-d-o-r-e-i o da(o) ARD. Perfeito.

Alcipe disse...

"Um conde que cora ao ser condecorado" (O'Neill

Helena Sacadura Cabral disse...

Senhor Embaixador
O seu comentador Alcipe dá sempre uma nota poética - Alexandre O'Neill é a escolha certa - às mais precárias condições da vida de cada um de nós.
Aliás, o Mordomo e a Velha Senhora têm-lhe seguido as passadas.
E o comentador ARD, na mesma "linha de pensamento", fez-me hoje dar uma bela gargalhada.
Que bem faz rir, Deus meu!
Perdoe esta nota religiosa de fim de texto, mas a expressão está arreigada na minha alma neste período conturbado em que vivemos.

Helena Sacadura Cabral disse...

Anónimo disse...

Um dia destes tambem vou ter uma condecoração... De fiel pagador de impostos , dinheiro com o qual muita gente se diverte em jantares e condecorações...

Francisco Seixas da Costa disse...

Ao Anónimo das 18.55:...e se conseguir entrar por concurso para a carreira diplomática e nela progredir trabalhando, de manhã à noite, por algumas décadas, com os impostos sempre já descontados nos salários, talvez ainda venha a merecer uma condecoraçãozita, já que parece fazer parte dos que levam essas coisas a peito.

Francisco Seixas da Costa disse...

Caro Henrique Antunes Ferreira: desculpe lá mas a do Mourinho (aliás excelente!) não passa...

Francisco Seixas da Costa disse...

Caro ARD: olhe que não, doutor, olhe que não. Foi tão merecida como a sua

Anónimo disse...

Caro Francisco

Compreendo e aceito, pois sou sempre politicamente incorrecto...

Anónimo disse...

A exemplo do CMG-Call me God, a velha senhora substituiu por palavrões (impassáveis, claro, mas é pena) as iniciais das nossas condecorações. Muito riu e me fez rir, e depois rimalhou:

o conde cora
e condecora
a rimadora
que a rima adora

já tenho conde-
coração
veja lá onde
põe a mão

ai rimadora
rimalhadeira
ai sem
agora
já quem
me queira.

Anónimo disse...

Como? Será o 'como' da velha senhora que não passa? E o 'como' de Pessoa passaria?

...
Seus seios altos parecem
(Se ela tivesse deitada)
Dois montinhos que amanhecem
Sem ter que haver madrugada.
...
Apetece como um barco.
Tem qualquer coisa de gomo.
Meu Deus, quando é que eu embarco?
Ó fome, quando é que eu como ?

Anónimo disse...

Por respeito por Pessoa, repito aqui a correção que por lapso (e vão 3 'por') mandei para o post anterior:
no 2º verso da 1ª quadra deve ler-se '(Se ela estivesse deitada)'.

Por respeito por Vexa, que reconheço e respeito (e vão dois 'respeito') como dono absoluto do bloque e delicado com toda a gente, solicito, se possível, alguma indicação sobre o que até agora impediu de passar as perguntas e respostas da velha senhora à Drª. Helena Sacadura Cabral. Como o 'como' não foi, será que o problema é o seu (do 'como') complemento directo, que a velha senhora não conhece - nem eu - e por isso pergunta?

Querendo/podendo Vexa publicar, segue nova versão. A senhora não consegue ditar-me duas vezes uma coisa sem lhe introduzir alterações. 'Ut varietur' - diz ela sempre.


Cara Drª Helena Sacadura Cabral:
A velha senhora dirige-lhe três 'rimalhemas' (recusa 'poemas'): um de perguntas dúbias (de velha ts) e dois de resposta, prometida, ao seu 'Onde terá ela aprendido tanto?' (Ousei, para melhor compreensão e à revelia dela, pôr sinais de pontuação).

1.
conheço o alcipe
mas não o mordomo.
o mordomo é como?
come ele acepipe?

2.
muitas coisas aprendi
dos livros, da faculdade. 
muitas mais, foi por aí:
vida, amores, liberdade.

o que sei, velha, é da idade,
como o demo em que já cri. 
mas por que porra agora há de
vir pràqui a pdi?

3.
não sou eu poeta
mas rimalhadeira
e velha jarreta.
sabendo-me á beira
da morte que é certa
rimalho, foleira,
alegre pateta,
senil frioleira
de versos da treta,
em vã bebedeira,
enquanto se acerca
a tal linha reta
a tal derradeira
meta.

25 de novembro