Foi ao olhar para o interior dos meus sapatos, naquele hotel de Estrasburgo, que as coisas se me tornaram evidentes. As palmilhas eram de cor diversa. Logo, os sapatos também o seriam: tinha trazido calçados dois sapatos de modelo diferente! E só tinha comigo esse bizarro par.
Chegara de Lisboa nessa tarde e, quase directamente do aeroporto, fui para casa do secretário-geral do Conselho da Europa, para um jantar de chefes de delegação. Antes do repasto, como era de regra, teve lugar uma sessão de debate, "au coin du feu", na sala de estar, connosco sentados em sofás, uns em frente aos outros, por cerca de uma hora. Provavelmente, alguns dos ministros e secretários de Estado presentes ter-se-ão apercebido de que o seu colega português estava calçado com incurial diversidade...
Depois do jantar, no salão do meu hotel, numa roda de cadeiras, tinha coordenado uma reunião da delegação portuguesa, onde fora passada em revista a agenda do dia seguinte. Mas, do mesmo modo, ninguém referiu nada.
Agora, no quarto do hotel, cerca da meia-noite, que poderia fazer?
De manhã cedo, parti de carro para a reunião no Conselho da Europa. Na altura da foto de família, lembro-me ter escapado para as filas superiores, garantindo que os meus sapatos ficavam tapados pela sombra dos meus colegas da Islândia ou do Azerbaijão.
Na sala de reuniões, dei-me conta que a temática em discussão estava a deixar-me enervado, mas logo percebi que eram mais os sapatos do que as teses em confronto. Pedi a palavra cedo, disse o que tinha para dizer e planeei uma estratégia: voltando-me para o nosso embaixador, perguntei-lhe se me podia dispensar o seu carro e o motorista por algum tempo. Pelo meu ar críptico, porque não dei qualquer explicação plausível, porque no passado apenas me vira usar o seu carro para ir a livrarias, onde quase sempre me acompanhava, porque era mais do que estranho eu sair a meio de uma reunião ministerial, imagino o que possa ter pensado... Porém, homem com mundo, foi prestável, colaborante e discreto.
Ao motorista, pedi para me levar a um centro comercial. Procurei uma sapataria e pedi para ver sapatos do meu número, quase sem olhar ao preço. Ao experimentá-los, ainda me senti tentado a explicar à empregada a estranha situação em que estava. Olhou-me com uma frieza de quem tinha isso como sua última preocupação, com um pouco carinhoso "Oui, je vois...".
Saí com os sapatos novos calçados e o par heteróclito num saco. E lá regressei, impante, à reunião. Ninguém escapa ao ridículo e, muitas vezes, como foi o caso, o receio do ridículo é que nos faz cair nele. Ninguém deve ter notado os meus sapatos e, mesmo que assim fosse, que importância isso tinha? Por que razão não assumi o facto e partilhei, desde o início e com um sorriso, a situação? Não sei. Mas lá que é chato andar com dois sapatos diferentes, lá isso é, podem crer...
12 comentários:
Anedótico acontecimento, sem dúvida..!
Giríssimo episódio. Mas se calhar também reagiria assim, atrapalhado. Um tipo numa situação dessas fica sem jeito. Como o compreendo. A mim, só me tocou uma vez uma troca de meias, uma azul escura, outra “bordeaux” escuro, como era uma manhã a tentar nascer, de Inverno, muito escuro para esta vista já a acusar algum cansaço, não reparei e acabei o dia inteiro com os pés assim. Sempre a tentar esconde-los. Parecia um tolo, ou outra coisa...pela posição em que colocava as pernas, por vezes, na tentativa de disfarçar. Coisas! Mas a história aqui do Post está divertida.
Albano
Ai que eu nem quero acreditar senhor Embaixador. Permita-me uma risada. Julguei que isso só acontecesse aos "despassarados" (braguilha aberta e camisas desabotoadas ou até com botões trocados já foi o meu forte quando andava mais activo, mas essa nunca...).
Um abraço deste lado do Atlântico onde deixou saudades.
Neves, AJ
Sem querer confundir género humano com Manuel Germano, reconheça-se que muito do carácter de um homem passa pelos sapatos. Bem haja pois ao prestável motorista que o conduziu ao nirvana pédico. Afrontando mesma a proverbial antipatia das rapariguinhas do shopping francesas.
O que me ri, Senhor Embaixador. E vou partilhar consigo duas curtas histórias.
Meu pai era advogado e um amante de ópera. Ele e eu iamos muito a S. Carlos, porque era sempre seu deleite que o acompanhasse.
Um dia chegou afobado do Ministério da Justiça. Cantava-se, nessa noite, a Madame Butterfly. Tudo foi feito a correr. Até que nos sentámos e eu reparei que o meu pai viera com os sapatos de quarto, castanhos, a acompanhar o smocking.
Alertei-o para o facto. Ele, num ápice, deu-me uma lição, quando me respondeu:"e depois? Viemos ouvir ópera ou olhar os pés de cada um?". E lá se levantou no intervalo, como se nada fosse. Eu, envergonhada fiquei sentada. Ainda hoje tenho atravessada esta falta de solidariedade filial!
Outra, agora comigo. Convidada para um casamento fino, comprei em Paris um fato adequado, achando que em Lisboa ia fazer grande sucesso. Limitei-me a acrescentar-lhe uma estolita de vison, para impressionar!
E não é que, chegada ao casório, me deparo com uma lindíssima senhora com fato igual?!
Tivemos sentido de humor e, face ao desaire, achámos que o melhor era passarmos por irmãs e andarmos sempre juntas.
Quando cheguei a casa e contei o sucedido, fui gozada durante dias. Ainda hoje guardo uma foto da cerimónia, onde um amigo escreveu "ambas bonitas, as manas..."!
Acontece a todos. A mim, salvou-me o humor!
Estou consigo Embaixador. A gente ri, mas...é, de facto, constrangedor. Ufa! que ele há dias maus!
também me aconteceu com meias :-) as calças lá foram tapando a diferença; há situações que somos nós a fazê-las (mentalmente) mais caricatas, com o que pensamos que os outros pensarão :-)
Acontece aos melhores!
Também faço parte deste grupo restrito.
Tal como Helena Sacadura Cabral, também vos vou contar duas historias engraçadas.
Dizem as duas respeito ao meu pai (homem um pouco despistado). Por sinal também funcionario da Justiça.
Uma manha apanhou o comboio para ir para o Palacio da Justiça com um cotonete enfiado na orelha. Quando ao fim do dia chegou a casa, contou-nos que a ocupante do lugar da frente no comboio durante o percurso que os levava até Lisboa olhava para ele e se ria. Até que a pobre senhora nao resistiu e lhe perguntou : "O senhor sabe que leva um cotonete enfiado no ouvido ?.
Outra vez, antes de ir para o emprego, enganou-se na gaveta e em vez de apanhar um lenço de assoar meteu no bolso uma peuga.
Eu sempre achei que para ser um bom humorista (quase que) basta ser um bom observador. Nao acham ?
Senao revejam o Mr. Bean.
Sr Embaixador, ainda bem que nos contou este episódio!
É impossível não rir e levou que outras pessoas partilhassem histórias parecidas e também muito divertidas.
Deixou-nos com um sorriso nos lábios e com as nossas memórias, pois todos nós já passámos por momentos desses.
"Rir é o melhor remédio"
Eh Eh :-)
Essa historia dos sapatos "desacasalados" nao teria nenhuma piada se nao fosse real.
A piada está mesmo no contexto e no facto de ser verdadeira; portanto de ter sido "vivida em pleno".
Venham outras, Sr. Francisco Seixas ! :-)
Caro Embaixador:
Percebo muito bem a sua aflição. Aliás, simpatizo, com o que a "tortura". Já vivi semelhante episódio. Aqui ha tempos, passei metade de um dia, com grande à vontade, até ao momento em que descobri que havia algo de estranho ao sentar-me de pernas cruzadas! Não queria acreditar. Um sapato de cada cor! Só a partir desse instante começou o meu "calvário"!
Para agravar o embaraço, ingenuamente, dei conta do engano a um colega... Em pouos minutos dezenas de outros colegas dirigiram-se a mim, rindo a bandeiras-despregadas, ao olharem o meu sapato preto e seu triste par castanho!
O meu embaraço não parou de aumentar, senti-me ridiculo. Mas tive de aguentar firme porque dado o adiantado da hora já de nada valia tentar emendar o engano.
Percebi que as pessoas deliram ao ver alguém numa pose rídicula. A partir de certo instante, sem nada a perder, marimbei-me para o assunto... Enfim, tentei!
Olá Exmo. Sr. Embaixador:
Esse seu episódio encaminha-me para um belíssimo filme moçambicano, recente, que dá pelo título de "O grande bazaar" e que tem como realizador um nosso irmão brasileiro, Licínio de Azevedo. Um dos personagems do referido filme é justamente "Kadapé". Não me estenderei mais sobre o filme, aque vivamente recomendo e que nos mostra que esse seu acidente é uma inevitabilidade muito aceitável e humana para muitos outros.
Bem, e agora relato um episódio pessoal: Era eu ainda jovem, pai "de fresco", quando numa tarde de sábado e levando o meu filho mais velho ao colo, infante de poucos meses, comecei a sentir-me mortalmente náuseo. Disse à minha mulher que precisava regressar rapidamente a casa pois não aguentava mais. Ela olhou para mim e desatou numa risada que ainda me piorou o estado. Não parava de rir e eu de caminhar para a morte. Lá conseguiu, conforme podia proferir alguma palavra entre risadas, dizer-me que os meus clássicos Ray-Ban de sol só tinham uma lente. Foi num ápice, após tirá-los, que retornei à vida saudável.
Um grande abraço, amigo, e parabéns por todos estes belos bocados que partilha com quem o queira ler.
Victor Passos, um dos que gosta também do pão quentinho da Padaria do Cais Novo, em Viana do Castelo.
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