Com óbvia razão, temos concentrado a nossa atenção em Donald Trump. O
primarismo caricatural de algumas das suas primeiras decisões, que não
desiludiram as piores expetativas, mostra que estamos perante uma agenda
radical que poucos pensavam ser possível. Mas é. E porque as coisas são o que
são, e porque os Estados Unidos não são uma potência qualquer, o que é decidido
em Washington tem uma importância determinante para o mundo. Tem-no para os
adversários da América, como o tem para os seus amigos e aliados, como é o
nosso caso.
Mas o problema, desculpem lá!, não se chama Donald Trump, chama-se Estados
Unidos da América. A América não é vítima de Trump, ele não é um epifenómeno
que, “coitados!”, os americanos sofrem. Trump foi eleito pelos americanos, ele representa a América e é à América
política – ao Congresso, aos Estados, aos nossos interlocutores institucionais,
a cada diplomata americano que encontremos pelas esquinas da vida internacional
– que devemos pedir responsabilidades por aquilo que Washington faz enquanto
este presidente lá estiver.
Trump não está "Home alone" na Casa Branca, tudo o que fez e
tudo o que vier a fazer fá-lo porque o povo e os políticos americanos o
autorizaram ou o autorizam. Deixar que Trump sirva de alibi às barbaridades que
a América possa vir a determinar pelo mundo nos
próximos tempos é isentar de responsabilidades os congressistas que o apoiam e podem vir
(ou não) a implementar a sua legislação. A América política que passar à
prática as determinações do presidente não é uma vítima de Trump, é cúmplice
dele. Porquê? Porque está nas mãos dessa América
política não aprovar muitas das medidas que Trump decida, reverter na prática grande
parte daquilo que está nas suas “executive orders”. E, no limite, “impichá-lo”, como dizem os brasileiros. Nunca esqueçamos isto.
O que se está passar por estes dias em Washington tem laivos
de uma “revolução”, porque abala os fundamentos daquilo que nos
habituáramos a ver surgir das bandas do maior país do Ocidente, impulsionador da
ordem multilateral que serviu de esqueleto ao mundo contemporâneo, assente numa
cultura de valores que haviam funcionado como importante referente
ético-político, base, aliás, do "soft-power" em matéria de valores
que fazia parte do nosso proselitismo democrático e de Direitos Humanos.
A reboque dessa nova agenda revisionista, os EUA espalham hoje sinais que deixam dúvidas sobre a sua fidelidade
essencial a alianças estruturantes da nossa segurança coletiva, introduzindo
imprevisibilidade no seu futuro comportamento face a atores que, como a Rússia, se mostram hostis à preservação de um corpo
de princípios que temos por básicos numa ordem global pactuada – e que os
próprios EUA foram os primeiros a considerar importante preservar. O que vem
sendo dito sobre as Nações Unidas, bem como a filosofia arrogante que acompanha
a sua nova postura neste contexto, é de uma gravidade sem precedentes.
No Médio Oriente, caldeirão
de insegurança de largo potencial, o que chega de Washington é muito perturbador,
em especial ao colocar em causa, num gesto de inédita irresponsabilidade, aquilo que demorou anos a conseguir na tensão israelo-palestina:
uma fórmula de sucesso limitado mas com a virtualidade de ter transformado o
“status quo” num conflito de baixa intensidade.
Para a Europa, a nova agenda americana, para além dos abalos na NATO,
apresenta-se como quase hostil. Se a rejeição do
TTIP é uma reversão séria mas admissível como opção nacional (do lado europeu também haveria problemas e uma potencial administração
Clinton não dava garantias plenas neste domínio), o aplauso ao Brexit, o
estímulo agressivo à sua futura reprodução e a mensagem negativa
sobre o futuro do euro constituem a mais frontal bofetada que os EUA alguma vez
deram nos seus mais fiéis aliados à escala global. A América que estimulava a
unidade europeia, e que forçou o acolhimento no seu seio dos países libertos da
tutela de Moscovo, desapareceu, pelo
menos por ora.
Às perspetivas de conflito comercial na Ásia, que acarretam riscos
político-militares cujas consequência estão longe de se confinarem nas áreas de
interesse americano, somam-se ainda declarações de extrema sensibilidade sobre
os equilíbrios no âmbito nuclear, pela indução de dúvidas sobre a pertinência
do atuais instrumentos de combate à não-proliferação.
Neste rol de recuos sobre o que havia sido consensualizado – que o foi, as
mais das vezes, sob impulso americano, o que é ainda mais irónico – destacam-se
ainda atos e declarações detrimentais
para marcos
civilizacionais como os acordos climáticos, que põem em causa entendimentos
laboriosamente conseguidos, libertando os infratores internacionais do isolamento constrangente a que haviam sido
acantonados.
Quase que custa dizer que “restam” as questões migratórias, acompanhadas por um discurso
estigmatizante e discriminatório, que nos faz recuar décadas, ou declarações fora de qualquer classificação sobre a legitimidade da tortura e de outros comportamento dignos de tempos de barbárie.
Fica aliás a sensação de que agora, no domínio dos princípios, já nada está
adquirido, tudo pode voltar atrás – um movimento relativizador cuja gravidade pode ser medida pelo modo eufórico como algum extremismo
internacional está já a acolher esta nova
agenda. E Europa, palco de tensões políticas onde estas preocupações estão
muito ancoradas, e que contou em tempos com outra América para limitar a sua
expansão, será a primeira vítima deste desvario.
Volto ao que disse. Esqueçamos Trump. Falemos da América e das ações do seu
novo presidente. Mas, a partir de agora, não libertemos os
Estados Unidos das suas responsabilidades por via de um “voyeurisme” divertido
sobre a figura patética que os americanos escolheram para os representar.
(Artigo hoje no "Público")