Dilma Rousseff, a presidente brasileira, luta hoje para salvar o seu segundo mandato presidencial, que iniciou há pouco mais de um ano.
Não sou um especialista em Direito constitucional brasileiro, mas de tudo quanto li sobre o processo de destituição que sobre ela impende (e já li bastante), não me fica a menor dúvida de que o que se está a passar é uma manifesta distorção do instituto do "impeachment" por parte de quantos, no puro plano político, a querem afastar do poder, a todo o custo. À luz do que se conhece (e conhece-se tudo, creio), se Dilma Rousseff vier a ser destituída de funções apenas com base nas acusações que lhe são formuladas, as instituições brasileiras estarão a enveredar por um precedente muito perigoso. É hoje evidente que a presidente é impopularíssima no Brasil, que a esmagadora maioria da população brasileira gostaria de a ver pelas costas, que um expressivo número dos seus concidadãos consideram que o seu nome está indissociavelmente ligado à cultura político-partidária onde floresceu o patrimonialismo e a corrupção, que hoje escandaliza todo o país. Porém, isso é uma censura política e, em democracia, tal só tem "remédio" nas urnas e as próximas eleições presidenciais no Brasil só estão previstas em 2018. Salvo por renúncia da presidente ou, nas atuais circunstâncias, por destituição com pretextos forçados.
Imagino que muitos (eu diria, a maioria) dos meus amigos brasileiros não concordam comigo, porque os sinto desejosos, a qualquer preço, de se verem livres de Dilma Rousseff e de tudo o que entendem que ela representa. Nesse contexto, essa maioria (porque é uma maioria) pensa que, havendo um "clamor" popular, se torna legítimo utilizar todos os meios ao dispor para conseguir esse objetivo, aceitando que possa haver um "jeito" legal, mesmo se um pouco forçado, para tal. Tenho muita pena que pensem assim.
Alguns (poucos) dirão que escrevo isto por alguma simpatia para com Dilma. Para esses - e para os outros, claro - deixo uma pequena história, que creio que os elucidará.
Nos quatro anos que passei no Brasil, como embaixador, encontrei Dilma Rousseff por diversas vezes, quer como ministra das Minas e Energia, quer como ministra-chefe da Casa Civil. Contrariamente ao que me aconteceu com alguns outros ministros e altas figuras de Estado brasileiro, com quem estabeleci fortes laços pessoais, alguns dos quais mesmo uma boa amizade que dura até hoje, com ela (como com muitos outras dessas figuras, diga-se) isso nunca se proporcionou. Mas cruzámo-nos em ocasiões oficiais, em refeições de trabalho e em algumas ocasiões sociais. Repito: falámos e conhecíamo-nos.
No final de 2008, saí de Brasília para Paris. E, quase no termo da minha missão como embaixador português na capital francesa, Dilma Rousseff fez uma visita oficial a França. Estive presente num dos momentos dessa agenda.
No dia seguinte, enviei a vários e bons amigos brasileiros, muitos deles diplomatas, um pequeno texto que hoje me apetece repescar e de que, sem dúvida, todos eles se recordarão:
"Há dias estranhos. Ontem, com imenso gosto, estive presente na cerimónia no Hôtel de Ville, durante qual a presidente Dilma Rousseff foi recebida numa bela e calorosa recepção pelo maire Bertrand Delanöe. A cerimónia foi muito simpática, porque excelentes e naturais são, como é sabido, as relações franco-brasileiras. Embora todo o corpo diplomático tivesse sido convidado, não eram muitos, infelizmente, os embaixadores presentes. Eu era, entre os presentes, o terceiro em antiguidade (o que significa que já ando por aqui há muito tempo). No termo da cerimónia, o chefe do cerimonial foi apresentando à presidente os embaixadores presentes. Começou pelo Núncio apostólico, ao qual Dilma Rousseff deixou uma palavra simpática. Seguiu-se o libanês: com naturalidade, houve uma referência à sua importante comunidade no Brasil. Chegou a minha vez e o chefe do cerimonial disse, alto: “L'Ambassadeur du Portugal”. Acrescentei: “Seja muito bem vinda a Paris, senhora Presidente”. Dilma estendeu-me a mão, olhou para mim com um olhar translúcido, sem esboçar um sorriso, sem pronunciar uma única palavra, nem um simples “boa tarde”, e passou, de imediato, à frente. Seguiu-se o embaixador de Angola. Aí, a presidente repetiu, alto: “Ah! Angola” e agarrou a mão do embaixador com as duas mãos, afivelando um largo sorriso. Há dias estranhos."