Morreu Shimon Peres, uma figura histórica de Israel, de que viria a tornar-se um dos rostos mais conhecidos no mundo. Com o radicalismo a tomar conta da política governamental israelita, a moderação e o sentido de equilíbrio de Peres, bem como o seu continuado empenhamento no processo de paz com os palestinos, converteram-no numa das vozes israelitas mais escutadas no exterior. Peres desaparece sem ter visto qualquer paz implantada de forma sustentada entre Israel e a Palestina, num tempo em que a vizinhança do Médio Oriente está a ferro e fogo. Nunca chegou a primeiro ministro do seu país, mas teve sucesso como ministro dos Negócios Estrangeiros e ascendeu no fim da vida à chefia do Estado.
Nunca esqueci uma noite em Nova Iorque, em 2002, num jantar para o qual uma associação judaica de amizade EUA-Israel convidara alguns embaixadores. Recordo bem o pesado e incomodado silêncio - e os olhares reprovadores trocados entre os meus companheiros de mesa - quando Shimon Peres defendeu, com vigor, a necessidade de cedências para obtenção da paz com os palestinos. A embaraçante escassez de palmas no final do seu discurso mostrava que os falcões da diáspora eram "mais papistas do que o papa", talvez por ser cómodo defender a guerra por fronteiras impossíveis quando se vive no conforto de Manhattan.
Peres havia-me recebido no seu gabinete de ministro, em Jerusalém, em novembro de 1995. Eu era o "junior minister" dos Negócios Estrangeiros que acompanhava Mário Soares na sua última visita presidencial ao exterior. A meu pedido, o nosso embaixador, Paulo Barbosa, organizara esse encontro. Foi uma conversa muito interessante, na qual Peres me deu a sua leitura sobre o "estado da arte" dos vários "tracks" do processo negocial. Recordo-me as questões que me colocou para tentar perceber se o novo governo português, que tomara posse uma semana antes, pretendia introduzir mudanças no relacionamento de Portugal com Israel.
O governo israelita não gostara, e fizera-o saber, que nessa visita eu tivesse decidido visitar a "Orient House", o ponto de contacto com os palestinos, em Jerusalém Oriental. Ainda tentaram dissuadir o nosso embaixador dessa iniciativa, mas eu havia recusado liminarmente cancelar a visita.
Peres foi agradável durante essa conversa comigo. Falou bastante da sua longa amizade com Mário Soares, tendo-lhe eu contado que, por coincidência, 17 anos antes, fora o primeiro diplomata português a deslocar-se em trabalho a Israel, num tempo em que Lisboa ainda cultivava grandes distâncias políticas face a Israel. Riu-se quando lhe referi que passara então duas horas no aeroporto de Ben Gurion, em Tel Aviv, a ter de explicar o carimbos de anteriores visitas à Líbia. "E deixaram-no entrar? Devia ter usado outro passaporte".
Dois dias mais tarde, estive com Peres no almoço que o primeiro-ministro Yitzhak Rabin ofereceu a Mário Soares, na sua residência em Jerusalém. Poucas horas depois, Rabin seria assassinado e seria a Peres, no funeral a que Soares e eu nos deslocáramos do Cairo, que eu iria apresentar as condolências enviadas enviadas por António Guterres.
Há dias, em Kiev, num fórum estratégico em que participei, foi feita uma homenagem a Shimon Peres, prenunciando já a sua próxima morte. Notei a genuinidade com que os participantes lhe tributaram o seu respeito. Pode parecer uma banalidade dizê-lo, mas figuras como Shimon Peres fazem falta ao mundo internacional.