Foi há bem mais de 40 anos. Eu conduzia, numa noite fria e chuvosa, pelo Campo Grande. O movimento era intenso. De súbito, numa fração de segundo, surgiu um vulto, que atravessou o capot do meu carro, foi projetado e só por milagre não foi apanhado por uma outra viatura que seguia em paralelo. O trânsito atrás de mim parou.
Fora um soldado que, imprevidente, atravessara do quartel para o jardim, sem saber medir o tempo de travessia. (Ao que se soube, era da Madeira, e não estaria habituado às grandes cidades. Seria mais tarde conduzido ao hospital, em estado grave).
À minha volta, começou a juntar-se uma turbamulta irada. Sei lá bem porquê, eu era dado como inegável culpado. Ninguém ouvia as minhas razões, nenhuma voz me defendia. Do quartel ia saindo mesmo uma crescente "tropa" contra mim. O soldado, não obstante ter atravessado fora de qualquer passadeira, numa zona escassamente iluminada, juntava, na sua tragédia, testemunhas simpáticas, parte das quais claramente não tinham presenciado o acidente, mas já falavam com facilidade do meu "excesso de velocidade" e outras criativas agravantes.
Foi então que se aproximou um cavalheiro, baixo, de "papillon", com ar sereno, um cabelo que recordo esbranquiçado. Tinha parado o seu carro uns bons metros adiante e viera, a pé, sob a chuva. Chegou junto do ferido, fez algumas constatações sobre o seu estado, preparou-o para a ambulância que ia chegar e disse:
- Este senhor não teve a menor culpa! Eu ia a conduzir na faixa ao lado dele, ambos havíamos saído do semáforo numa velocidade moderada. A pessoa foi atingida pelo carro dele como podia ter sido pelo meu. Sou testemunha deste senhor. Agora, chamem a polícia.
O ambiente desanuviou-se. A "tropa" começou, progressivamente, a "destroçar". A voz serena e firme daquele cavalheiro, que era médico, contribuiu para a imediata descida da tensão. As autoridades chegaram, tomaram as devidas notas. Graças àquele cidadão, que se tinha dado ao cuidado de parar, ajudar no possível e que agora se voluntariava para testemunhar, atestando a inocência de uma pessoa que ele não conhecia, as coisas mudavam, para mim. Aprendi, nessa noite, uma lição de civilidade, que nunca mais esqueci e que passou a marcar o meu comportamento futuro perante situações semelhantes, mesmo com todos os incómodos possíveis.
Passaram alguns anos e o nome do cavalheiro que me tinha ajudado começou a surgir em público. Chamava-se Ferraz de Abreu e chegou a presidente do Partido Socialista. Um dia, não há muito tempo, cruzei-me com ele numa cerimónia e agradeci-lhe o gesto.
Acabo de ler, há minutos, que morreu. Tinha 98 anos. Deixo-lhe aqui o preito do meu respeito.