sábado, junho 27, 2015

Ferraz de Abreu



Foi há bem mais de 40 anos. Eu conduzia, numa noite fria e chuvosa, pelo Campo Grande. O movimento era intenso. De súbito, numa fração de segundo, surgiu um vulto, que atravessou o capot do meu carro, foi projetado e só por milagre não foi apanhado por uma outra viatura que seguia em paralelo. O trânsito atrás de mim parou. 

Fora um soldado que, imprevidente, atravessara do quartel para o jardim, sem saber medir o tempo de travessia. (Ao que se soube, era da Madeira, e não estaria habituado às grandes cidades. Seria mais tarde conduzido ao hospital, em estado grave).

À minha volta, começou a juntar-se uma turbamulta irada. Sei lá bem porquê, eu era dado como inegável culpado. Ninguém ouvia as minhas razões, nenhuma voz me defendia. Do quartel ia saindo mesmo uma crescente "tropa" contra mim. O soldado, não obstante ter atravessado fora de qualquer passadeira, numa zona escassamente iluminada, juntava, na sua tragédia, testemunhas simpáticas, parte das quais claramente não tinham presenciado o acidente, mas já falavam com facilidade do meu "excesso de velocidade" e outras criativas agravantes.

Foi então que se aproximou um cavalheiro, baixo, de "papillon", com ar sereno, um cabelo que recordo esbranquiçado. Tinha parado o seu carro uns bons metros adiante e viera, a pé, sob a chuva. Chegou junto do ferido, fez algumas constatações sobre o seu estado, preparou-o para a ambulância que ia chegar e disse:

- Este senhor não teve a menor culpa! Eu ia a conduzir na faixa ao lado dele, ambos havíamos saído do semáforo numa velocidade moderada. A pessoa foi atingida pelo carro dele como podia ter sido pelo meu. Sou testemunha deste senhor. Agora, chamem a polícia.

O ambiente desanuviou-se. A "tropa" começou, progressivamente, a "destroçar". A voz serena e firme daquele cavalheiro, que era médico, contribuiu para a imediata descida da tensão. As autoridades chegaram, tomaram as devidas notas. Graças àquele cidadão, que se tinha dado ao cuidado de parar, ajudar no possível e que agora se voluntariava para testemunhar, atestando a inocência de uma pessoa que ele não conhecia, as coisas mudavam, para mim. Aprendi, nessa noite, uma lição de civilidade, que nunca mais esqueci e que passou a marcar o meu comportamento futuro perante situações semelhantes, mesmo com todos os incómodos possíveis.

Passaram alguns anos e o nome do cavalheiro que me tinha ajudado começou a surgir em público. Chamava-se Ferraz de Abreu e chegou a presidente do Partido Socialista. Um dia, não há muito tempo, cruzei-me com ele numa cerimónia e agradeci-lhe o gesto.

Acabo de ler, há minutos, que morreu. Tinha 98 anos. Deixo-lhe aqui o preito do meu respeito.

sexta-feira, junho 26, 2015

Mangas


O cliente olhou o menu para escolher a sobremesa. O jovem empregado do restaurante esperava.

- A manga é boa?

O rapaz hesitou. Sabia lá ele! O patrão não lha dera a provar.

- De onde é a manga? Pergunte se é de Alpaca! As melhores mangas são as de Alpaca...

O rapaz virou costas e foi falar com o patrão, na zona da cozinha.

O comensal e os amigos, logo que o empregado desapareceu, entraram em gargalhadas. Tivera muita graça a "trouvaille" da "manga de alpaca". O empregado era demasiado novo para conhecer a expressão. O que diria o patrão?

O empregado regressou e todos olharam para ele:

- O meu patrão diz que, afinal, não há manga.

E acrescentou:

- Disse que só podemos servir-lhe um manguito.

Foi o bom e o bonito, lá no restaurante...

Um poder europeu


Desde o início da crise grega, um certo poder europeu destaca-se em movimentações para ajudar a evitar a rutura entre Atenas e a União Europeia. É o mesmo país que, embora não seja vizinho da Ucrânia, tem demonstrado o seu apoio a quantos vivem hoje muito preocupados com a Rússia. Mas, não obstante a atenção que dedica aos problemas do continente, esse país não dá mostras de ter uma confiança cega no comportamento dos seus parceiros. O poder europeu de que falo tem um nome: Estados Unidos da América.

O final da Guerra Fria e o surgimento da UE com uma vocação política com expressão internacional criou a ilusão de que os EUA, de há muito os principais titulares da chave da segurança do continente europeu, poderiam vir a descansar na organização autónoma dos seus parceiros deste lado do Atlântico, no que toca à sua parcela de responsabilidade no quadro geopolítico comum. Essa ilusão acabou cedo. À problemática idiossincrasia francesa e à fragilidade crescente do Reino Unido como poder global somou-se, aos olhos de Washington, a relutância da Alemanha para assumir capacidades à altura do seu poder económico relativo. E o resto da Europa, em termos político-militares que sejam relevantes para o jogo com Moscovo, é pura paisagem.

Sejamos honestos: a UE, como força política, percebida pelos outros como capaz de se mobilizar em termos de “hard power”, não existe. Os primeiros a perceberem isso foram, aliás, os Estados do Leste europeu, para quem a adesão à UE, sendo embora importante, surgiu sempre, na escala gradativa dos seus interesses, abaixo das garantias que a NATO lhes podia trazer. E a NATO, por muito que custe aceitar, continua a ser apenas um heterónimo dos Estados Unidos.

Não é assim por acaso que são os americanos quem agora surge a reforçar militarmente os vizinhos NATO da Ucrânia.

O poder europeu dos EUA, através de gestos apaziguadores, emergiu também numa geografia pouco comum: a Grécia. É mesmo uma singular ironia ver os EUA preocupados, por precauções ligadas à segurança do sudeste do continente, com a estabilidade do euro. E quem sabe se não será Washington a chave para flexibilizar a rigidez do FMI para o compromisso final.

No auge destas movimentações americanas pelo seu território estratégico europeu, surgem finalmente as acusações de que os EUA andarão a espiar conversas telefónicas dos seus líderes - hoje Hollande, como ontem fora Merkel. Mas, caramba!, afinal não é a Europa que frequentemente se queixa de não ser ouvida pelos Estados Unidos?

(Artigo que hoje publico no "Jornal de Notícias")

quinta-feira, junho 25, 2015

Forças amadas?


Descontentes com as políticas que hoje afetam as Forças armadas, que sentem já não serem forças amadas pelos atuais poderes, militares de antigas hierarquias reunem-se hoje em jantar por onde perpassaram as suas aspirações corporativas.

Vão muito longe os tempos em que o tilintar dos sabres prenunciava borrasca político-militar, intentonas ou pronunciamentos que colocavam a vida quotidiana dos portugueses à mercê da conjugação sediciosa dos humores castrenses.
 
Hoje, com a democracia, nas mãos dos militares apenas tilintam os talheres. Decididamente, invertendo Marx, os nossos militares optaram pelas armas da crítica em saudável detrimento da crítica pelas armas.
 
Contudo, talvez seja oportuno lembrar que o ambiente de liberdade que hoje vivemos se deve precisamente ao movimento protagonizado pelas nossas Forças Armadas, "coroando a longa resistência do povo português e interpretando os seus sentimentos profundos", como reza o preâmbulo da Constituição da nossa República. 

Crónica de costumes ?


"Gosto das tuas crónicas de costumes!"

A frase de um amigo, numa ocasião pública, ao final da tarde de ontem, deixou-me surpreendido. Nunca me tinha passado pela cabeça qualificar aquilo que escrevo de "crónica de costumes". Só gente de uma certa idade - como a minha, aliás - é que lembraria de utilizar esta expressão quase queirosiana. Mas, devo dizer, não desgostei...  

quarta-feira, junho 24, 2015

Ribeiro e Castro


O deputado do CDS-PP José Ribeiro e Castro anunciou que não fará parte das listas de candidatos a deputados para a próxima legislatura. 

Nos últimos anos, foi patente o progressivo isolamento de Ribeiro e Castro no partido que ajudou a criar, um pouco como tem acontecido com Mota Amaral no PSD. Os partidos convivem mal com quem tem ideias próprias, com quem pensa pela sua cabeça e, por vezes, não está disposto a aceitar que a cega obediência à estratégia conjuntural ponha em causa princípios por que se bateu por muitos anos. Não há nada que mais irrite as "nomenklaturas" do que pessoas que, perante algumas questões concretas, tendem a vocalizar o que muito bem entendem, não apenas porque é essa a sua opinião mas porque acham que essa deveria ser a orientação da formação política a que historicamente estão ligados.

Os partidos de hoje, com o nosso modelo centralizado de escolha de deputados, tende a facilitar a ascensão de quem ecoar, sem reticências, a voz do "patronato" político. Se o fizer com alguma capacidade de expressão, o partido não deixará de dar uma palavra junto das televisões ou jornais para que essas pessoas sejam convidadas para os representar em debates ou nas "balcanizadas" colunas - onde, com maior ou menor originalidade, se sabe quase sempre o que vão dizer, nesses "tempos de antena" que, por serem baratos, são alimentados com gosto pela comunicação social. Depois, se as coisas continuarem a correr bem, lá terão um lugarzinho de secretário de Estado, quando o poder vier a sorrir ao seu partido. É assim, um pouco por todo o lado.

Ribeiro e Castro não fazia parte desse grupo. Democrata-cristão desde sempre, líder, em tempos, da Juventude Centrista, mostrou, em todos os lugares e causas por onde passou, uma coerência e uma firmeza de princípios que, de facto, não vão bem com os ventos dominantes. Recordo a sua excelente prestação como presidente da Comissão dos Negócios Estrangeiros da Assembleia da República, onde inaugurou a saudável prática de ouvir os embaixadores portugueses. Envolveu-se em várias iniciativas de raiz nacional, como foram a luta pelo feriado do Primeiro de Dezembro ou a recente denúncia do abandono na obrigatoriedade da língua portuguesa no processo europeu de patentes. Lutas pouco populares, às vezes solitárias, mas que o identificam como uma personalidade de uma qualidade que faz falta à democracia portuguesa.

Deixo-lhe aqui o abraço de consideração e respeito de quem, andando por outras áreas políticas e tendo dele frequentemente discordado ao longo das últimas décadas, reconhece contudo o elevado mérito e a elevada seriedade que tem marcado a sua intervenção cívica.

Laura Antonelli


Morreu Laura Antonelli. Só me ocorre uma coisa: a fantasia já não é o que era.

terça-feira, junho 23, 2015

O meu São João com tulipas...


Viagens


De há muito que penso que há poucas coisas mais tristes do que um hotel de negócios, talvez com exceção dos hotéis de aeroporto. Cavalheiros (sorry, mas as damas aparecem menos) de fato escuro, que já começam a chegar do aeroporto sem gravata (mais uma vitória colateral do Syriza ou será do calor?), com malas negras com rodinhas (a minha é prateada, sei lá porquê), espalham cartões "corporate" pelos balcões das receções, atendidos por meninas de sorriso plástico ("How are you today?"), que têm como primeira preocupação dar-lhes a "password" para o wifi, tão importante para eles como o oxigénio. O ambiente é tão asséptico que chega a ter-se saudades de um lóbi de hotel com criancinhas aos berros.

Hoje, na fila do "check out", olhei com mais atenção o cenário por detrás das meninas. E vi por lá esta imaginativa decoração, memória de outros tempos, outra gente e, pela certa, outras mentalidades. Tempo em que havia mais tempo, muita mais conversa.

O amigo americano

Nos processos negociais, há sempre cenas de bastidores que só com o tempo acabará por tornar mais claras. 

Neste braço-de-ferro entre a Grécia e os restantes membros do euro, o papel do governo americano parece ter sido importante para pressionar os diferentes parceiros a mostrarem mais flexibilidade. Para além das suas preocupações geopolíticas, será interessante vir a conhecer um dia o que é que os EUA carrearam, em termos concretos, para todo este processo.

Adensam-se os sinais de que as movimentações europeias do secretário do Tesouro americano durante as últimas horas, quer junto do presidente do BCE quer em contactos com o PM Tsipras, somando-se às “démarches” mais políticas junto de Angela Merkel, poderão ter sido um fator determinante.

Não deixa de ser irónico que os americanos possam ter contribuído, pelos seus temores estratégicos, para aquele que pode vir a constituir-se como um importante passo positivo no reforço da zona euro.

Em tempo: resta ainda saber em que medida esta movimentação tem como principal justificação a potencial influência da Rússia no processo. Se assim for, e porque os EUA não costumam atuar de forma tão determinada sem um real fundamento, será necessário começar a coletar dados para "desconstruir", de forma mais "fina", o conteúdo exato dos possíveis entendimentos entre Atenas e Moscovo.

Berrar baixinho


Paulo Castilho, no seu novo livro “O Sonho Português”, coloca uma personagem a descrever-nos: “fervemos em pouca água e no instante seguinte caímos na resignação e na tristeza, não somos um país, somos uma melancolia politicamente organizada”.

Nada pode ser mais verdade. Os portugueses são de rompantes, de emoções fortes, de ameaças de “partir a loiça”, de deitar abaixo tudo, de mudar de vida. Depois, com o calendário a passar, desejosos, bem lá no fundo, de “viver habitualmente”, como bem os topava Salazar, os nossos concidadãos entram numa progressiva apatia, o que era chocante deixa de o ser tanto, o que foi inaceitável passou a ser digerível, até certas caras, tão “impossíveis”, passam a ser convivíveis.

E, no entanto, é bom ver o país mobilizado por causas. A democracia deu espaço para isso. Recentemente, temo-nos entretido com os méritos do Tribunal Constitucional, o Acordo Ortográfico, a privatização da TAP, está mesmo aí a chegar a “saison” do debate sobre as touradas. Uma grande parte do país detesta José Sócrates, outra defende-o. Desde há meses, a Grécia excita-nos as colunas: os gregos ou são uns madraços ou uns heróis que acabarão por derrotar os “troianos” berlinenses. A história, por cá, faz-se sempre de índios e cowboys, ambos com adeptos legitimamente irados.

O país precisa destas polarizações. Elas não assentam em racionalidade: baseiam-se no debate emocional, simplificado, caricaturado. O maniqueísmo é uma deriva que demonstra a mediocridade de uma vida cívica onde, às vezes, fica a ideia de que quem falar mais alto tem (pelo menos por algum tempo) a razão.

Os resultados da última sondagem de avaliação político-partidária são um barómetro desta nossa ciclotimia emocional.

Não vai para muito tempo, esta maioria tinha “os dias contados”, Passos Coelho estava “politicamente morto”, o país saía à rua e grandolava, irado, contra a falta de sensibilidade social do executivo, com o experimentalismo de governantes sem jeito. Lembro-me de falar com pessoas que olhavam para o lado, quase com o receio de serem escutadas, quando afirmavam que mantinham a sua confiança no governo.

Do lado da oposição, Seguro era visto como o único travão à afirmação de uma alternativa credível. Recordo a tensão, quase “bélica”, no seio da minha família política, entre os “seguristas” e os “costistas”. Tive conversas arruinadas por altercações entre amigos, nas vésperas das “primárias”.

Hoje, as coisas vão sendo o que são. Bem cantava o Carlos do Carmo, em “Os putos”: “quando a tarde cai, vai-se a revolta”. A TSU, as pensões, as rendas, a emigração, o caos do ano letivo, o estado do “citius” judiciário, a Tecnoforma, as listas VIP, todas as imensas trapalhadas e incompetências de um ciclo, tudo isso passou à história, tudo isso foi antes de Jesus caminhar sobre as águas da “segunda circular” e parar as televisões.

Somos um país curioso. Um amigo meu resume bem isto: os portugueses, a partir de certa altura, optam por “berrar baixinho”.

(Artigo que hoje publico no "Diário Económico")

segunda-feira, junho 22, 2015

Uma carreira diferente


Começaram no passado sábado as provas de acesso à carreira diplomática.

Um cidadão acaba o seu curso superior. No final, com cerca de 2000 (não leram mal, é o número deste ano!) e tantas outras pessoas nas mesmas condições, resolve apresentar-se ao mais exigente concurso que existe na função pública portuguesa - a uma imensa distância de todos os outros! Desta feita, entrarão 25! 

Começa por ser sujeito a uma prova eliminatória de cultura geral. Depois, faz exames escritos de português e inglês. Vê muitos dos seus colegas eliminados, pela obrigatoriedade de não terem menos que 14 valores no uso escrito da nossa língua. 

Começa em seguida um calvário temático, para o qual se preparou longos meses: Relações internacionais, História e história diplomática portuguesa, Política económica e Relações económicas internacionais, Direito internacional e Direito da União europeia. Provas escritas sobre aqueles temas, num cruel sorteio. 

O universo dos competidores vai-se entretanto reduzindo. Seguem-se os exames orais, igualmente sobre esses temas, sob o escrutínio de professores universitários da especialidade. Ficam agora umas escassas dezenas de candidatos.

Entretanto, passaram já alguns meses. Suspenderam-se as profissões, as famílias têm-nos em casa em "part time". Falta uma última prova, decisiva, a entrevista profissional. Meia hora de exigente escrutínio. Eliminatória, como as anteriores. E, no termo desse penoso processo, 25 são admitidos na carreira diplomática.

Entraram para a carreira? Não necessariamente. Se, ao final de dois anos, não forem dado "confirmados", por serem dados como "não aptos", recebem um agradecimento pelo serviço prestado e vão ter de ir à procura de novo emprego.

Os admitidos vão começar a subir as várias categorias da carreira. Iniciam-se como adidos de embaixada, passam a secretários de embaixada e, decorrida que for mais ou menos uma década, podem fazer concurso para ascenderem a conselheiros de embaixada. Nove ou dez anos mais tarde - isto é, com cerca de vinte anos de percurso profissional, podem vir a ser promovidos a ministros plenipotenciários. A partir desta categoria, já podem vir a ser designados para chefiar embaixadas, começando normalmente por postos mais pequenos e mais difíceis - em condições de vida, de segurança, etc. Quando, em média, tiverem feito 26/27 anos de carreira, alguns (muito escassos) podem, finalmente, ter hipóteses de ascender aos menos de 30 lugares da categoria última, o "generalato": podem ser nomeados embaixadores (ditos "full rank" ou "de número"). Só muito poucos conseguem aí chegar.

Entretanto, nas duas décadas que levam de "casa", já saltitaram por várias embaixadas e consulados, muitos viram os cônjuges ter de abandonar as profissões para os acompanhar, os filhos tiveram de saltitar de escola em escola, ou ficaram em Lisboa, onde os diplomatas têm sempre de manter uma segunda casa, para os períodos que passam nas Necessidades.

É uma profissão exigente, dura e competitiva. Mas servir o país no exterior é uma imensa honra.

"Mandela Prize"


Jorge Sampaio acaba de ser indicado como o primeiro vencedor do Mandela Prize, um prémio atribuído pela Assembleia Geral da ONU apenas de cinco em cinco anos, distinguindo personalidades que "dedicaram as suas vidas ao serviço da humanidade, promovendo as finalidades e os princípios das Nações Unidas". O prémio é sempre atribuído, simultaneamente, a um homem e a uma mulher, tendo cabido igualmente à médica namibiana Helena Ndume.

Muitos parabéns, caro amigo! 

Cruzamentos políticos



Falei aqui há dois dias de Eurico Figueiredo, por estas horas muito nas notícias por via do seu conflito com Marinho Pinto, no âmbito do PDR.

Anoto agora uma história antiga, para mim curiosa, em que com ele me "cruzei" na política interna.

Estávamos em julho de 1999. Eu era então, desde há três anos e meio, secretário de Estado dos Assuntos europeus. Um dia, informei o gabinete do primeiro-ministro de que necessitava de falar com António Guterres, com alguma urgência. Horas depois, foi-me perguntado o motivo da reunião, para justificar a pressa com que pedia o encontro. Mandei dizer que não revelava. No dia seguinte, já um pouco irritado, voltei a insistir. Ao final desse dia, o primeiro-ministro recebeu-me.

António Guterres acolheu-me com um sorriso e grande simpatia com que sempre me tratou.

- Este seu pedido de reunião, com caráter de urgência, criou por aqui alguma especulação, como já deve ter percebido.

Eu já então presumia essa especulação. Num segundo, liguei-a ao facto de, três dias antes, ter estado numa audiência, também a meu pedido, com o presidente da República, Jorge Sampaio. Que diabo um simples secretário de Estado, lugar subalterno no governo, quereria, na mesma semana, das duas principais figuras do Estado?

Esclareci então António Guterres que a razão da minha visita nada tinha a ver com aquilo que fora tratar com o presidente. No seu caso, eram assuntos estritamente ligados às questões europeias, mas que exigiam uma orientação urgente do primeiro-ministro. A particular sensibilidade do tema recomendava, porém, uma conversa pessoal. Só isso.

Guterres disse-me então das razões da especulação em S. Bento.

- Como você sabe, estamos em pleno processo de formação das listas de candidatos a deputados à Assembleia da República. E, como também é público, Eurico Figueiredo deixou vago o lugar de cabeça de lista por Vila Real, que também é a sua terra. Houve muita gente que pensou que você, sendo embora independente e não militante do PS, poderia estar interessado no lugar e que era essa a razão por que pretendia falar comigo com urgência. Eu, contudo, conhecendo-o, devo dizer que nunca pensei que quisesse ser deputado. Mas também achei que seria legítimo se acaso o quisesse ser.

E tinha toda a razão. A vida parlamentar nunca me seduziu minimamente. Mas, à distância, fiquei sempre com a curiosidade de saber o que teria acontecido se eu, de facto, tivesse tido essa pretensão. Assim, salvo na boataria entre S. Bento e o Rato, não me "cruzei" com o meu amigo Eurico Figueiredo nos caminhos da representação política de Vila Real. 

domingo, junho 21, 2015

Vida megalítica


O ambiente, e em particular a animação, que se viveu hoje, dia do solstício de verão, no Cromeleque dos Almendres e em Stonehenge não se pode comparar.

Mas a visita ao monumento alentejano, neste que foi o dia mais longo do ano, valeu a pena.


O lançamento

Foi muito difícil encontrar lugar para o carro. A Bucholz fica numa rua de escritórios e, até muito tarde, um espaço para estacionar é quase um milagre. Fui brindado com esse milagre. Só que não tinha moedas para o parking e desfiz-me em sorrisos num café para trocar uma nota de dez euros. Ao mesmo tempo, mantinha um olho no carro, porque a EMEL não brinca em serviço. Quando meti as moedas, o limite do ticket eram as dez e tal da manhã do dia seguinte. Com a precipitação, tinha colocado dinheiro a mais.

Entrei na livraria, pouco passava das seis e meia. As cadeiras estavam dispostas no primeiro andar, já havia gente sentada, mas não vi ninguém conhecido. Teria eu feito confusão? Seria só às sete? 

Ao fundo, junto a uma estante, descortinei uma pessoa que faz parte de um grupo de gente com quem, embora nunca tenha tido uma conversa, integra a minha silenciosa intimidade pública, porque eu sei quem ele é e ele sabe quem eu sou. É um grupo de umas dezenas de figuras, um género a quem sorrio a medo, deixando cair um "boa tarde" e com quem, a espaços, troco duas ou três palavras de circunstância, tipo conversa de elevador. Perguntei: "o Marcelo ainda não chegou?" Ele olhou-me, inexpressivo, e disse "não vi"... (Ele lerá este blogue?)

Continuei por ali. Olhei uns livros e, para matar o tempo, decidi descer ao andar de baixo. O lançamento devia ser às sete, era isso! Vasculhei umas vagas "stationaries" alemãs (carotas, aliás), folheei alguns guias turísticos (não sei se notaram que os editores deste tipo de guias teimam em esconder a data de edição, para os fazer "durar" no tempo) e voltei a subir. Nada de caras conhecidas! Estranho! Sentei-me na assistência e dediquei-me, por uns minutos, ao iPhone, que agora funciona como entretem, como aquelas revistas sebentas que há nas salas de espera dos médicos. 

A certo ponto, ouvi vozes mais altas, levantei a cabeça e vi umas figuras aproximarem-se dos lugares onde se sentariam o autor e os apresentadores da obra. Tudo gente que me era, em absoluto, alheia. Do lado esquerdo da mesa, vislumbro um livro em posição vertical. Era a obra que ia ser apresentada. Não era o "Diário da Abuxarda"! Eu tenho o livro, que já li e do qual até já aqui falei. Era outro livro! Eu estava no lançamento errado! 

Saí de fininho, como quem não quer a coisa. Nem perguntei nada às meninas do balcão, junto à porta. Meti-me no carro, humilhado comigo mesmo e com vagos pensamentos sobre os sinais de Alzheimer. Tocou o telefone. Era um amigo. Disse-lhe o que me tinha acontecido. Respondeu-me: "Mas isso foi ontem! Eu fui lá".

Regressei a casa, furibundo. Este relato não é um alibi para me desculpar por não ter ido ao lançamento do "Diário da Abuxarda", do meu amigo Marcello Duarte Mathias. Mas, pensando bem, também pode servir para isso.

sábado, junho 20, 2015

Grécia


Já aqui escrevi um dia que, se a tática "diplomática" do atual governo grego viesse a ter sucesso, estaria disponível, com todo o gosto, para rever tudo quanto aprendi numa vida dedicada a essa profissão. Parece que não vou ter essa oportunidade. O "método" diplomático grego não me convenceu e, mais importante do que isso, não convenceu ninguém por essa Europa. E convém que se diga que nem todos somos "lacaios" da senhora Merkel, como parece de bom tom apelidar quem seja minimamente crítico do modo de atuar do novo governo grego.

A vitória do Syriza assentou quase exclusivamente no forte sentimento nacional de rejeição de mais austeridade. O voto dos gregos, mais do que na ideologia do Syriza, foi uma manifestação limite de cansaço: com os partidos tradicionais e com a Europa que, mancomunada com eles, os conduziu ao desastre a que chegaram.

Ora a posição dos restantes governos europeus é precisamente a oposta: mais austeridade é necessária para a Grécia poder ter mais dinheiro. Os europeus não sentem e não vivem a tragédia que é o dia-a-dia grego, vivem apenas na necessidade de responderem aos interesses seus contribuintes. Uma coisa não joga com a outra. Definitivamente.

Pode ser muito chocante estar a afirmar isto, mas numa negociação como esta ter ou não ter razão, não sendo irrelevante, não é, em si, decisivo. O mundo não é "fair". O que é essencial é ter força para impor os argumentos de cada um. E é evidente que, sendo a Grécia o "weakest link" deste jogo, teria de ter uma tática muito sofisticada para poder compensar o poder que não tinha. E a Grécia foi por um caminho errado - embora simpático, já sei, mas, como diz a Teresa Guilherme, "isso agora não interessa nada!", como se está a ver.

A aposta do governo grego pareceu-me sempre relativamente simples: a Europa (leia-se, a Alemanha) não estaria disposta a "comprar" uma grave crise, com efeitos reputacionais sobre a estabilidade da zona euro, por um montante que, simultaneamente, era pequeno em termos europeus globais mas, apesar disso, politicamente significativo nas perdas (públicas) para os cofres dos grandes Estados europeus. Por isso, a Europa "que manda" tenderia a um compromisso.

Das "contas" gregas faria também parte uma peça que não se confirmou: a Europa, então em pleno debate interno sobre os termos da austeridade, iria acabar por mostrar-se sensível à circunstância das receitas da "troika" terem conduzido o país a uma situação humanitária à beira da rutura. Mas a Europa oficial, num tempo pouco dado a solidariedades, não se comoveu minimamente.

O mais surpreendente em todo este processo negocial foi a aparente inexistência de um "plano B", grego, como que a colocar todas as cartas numa mesma solução. Parece ter havido aqui um excesso de voluntarismo teórico, talvez tributário das ideias de Varoufakis. Tudo isto surge somado às "mãos atadas" do mandato imperativo que o Syriza colocou ao seu próprio governo e que não lhe dá um mínimo de flexibilidade negocial.

Dois fatores (interligados) de pressão internacional parece ainda terem estado sempre nas "contas" gregas. Por um lado, os Estados Unidos e o respetivo temor de que um isolamento limite da Grécia levasse o país a derivas estratégicas, com consequências nefastas para o equilíbrio político-militar daquela zona do Mediterrâneo. Por outro, e relacionado com o primeiro, a avaliação de que a Rússia poderia significar uma escapatória da saída em matéria de alianças - ou melhor, que isso poderia ser brandido como uma sólida ameaça. Não excluo que o primeiro possa ter algum efeito nas contas alemãs, mas o segundo é uma "carta" claramente pouco significativa.

Uma aposta (mas nem sempre ganho as minhas apostas): os dirigentes europeus não se reunirão numa cimeira na próxima segunda-feira para constatar um fracasso. Dessa reunião vai sair uma proposta dilatória que vai permitir à Grécia ganhar algum espaço de manobra (embora seja quase impossível que o pagamento ao FMI até ao final do mês seja feito). Terá de ser uma proposta "craftly worded", de forma a não dar a sensação de que a Europa cede aos seus princípios e, ao mesmo tempo, de que o PM regressa humilhado a Atenas. Tudo indica, contudo, que será sempre uma solução com curto prazo de validade.  

Memorabilia diplomatica (XXXVI) - No topo

O jovem diplomata tinha chegado àquele posto há poucos meses. O seu chefe era uma figura da velha escola das Necessidades, algo severo, um pouco ácido e nada dado a confianças com os subordinados. Recebia-os o mínimo tempo necessário e não criava um ambiente propício a conversas. Apesar de tudo - havia que reconhecer -, não se podia queixar: era tratado por ele com atenção e, profissionalmente, a experiência estava a ser interessante.

Um dia, o chefe chamou-o: deveria, nos três dias seguintes, acompanhar um velho embaixador vindo de Lisboa, que fora destacado para executar uma missão especial naquela cidade, ligada a uma qualquer estrutura internacional. Pela forma como o seu chefe lhe referiu o assunto, percebeu logo não se tratar de alguém com quem ele tivesse uma relação de simpatia muito forte. Aliás, o visitante nem sequer tinha prevista, no seu programa, uma deslocação à Embaixada.

O contacto com o diplomata chegado de Portugal revelou-se, para o nosso jovem, uma surpresa muito agradável. Era um "gentleman" - cordial, falador, contador de histórias interessantíssimas sobre a carreira e a vida diplomática. Estava a ser um prazer acompanhá-lo.

Uma noite, no bar do hotel onde o velho embaixador estava instalado, e talvez abusando um pouco da familiariedade com que estava a ser tratado, o jovem diplomata ousou perguntar:

- O senhor embaixador vai-me desculpar mas, dado o seu profundo conhecimento da nossa carreira diplomática, gostava de lhe colocar uma pergunta um pouco delicada...

- Ó homem, esteja à vontade!, diga lá o que quer saber - responde-lhe, condescendente, o colega mais antigo.

- Como sabe, estou há poucos meses neste posto. Tenho uma boa relação com o meu embaixador, mas já deu para perceber que tem um feitio complicado e dizem-me que está longe de ser uma pessoa consensual na nossa carreira. Tinha, por isso, alguma curiosidade em saber como é que ele é, de facto, cotado no âmbito do MNE.

- Mas isso é muito fácil, caro colega: o seu embaixador está, sem a menor sombra de dúvida, qualificado no topo dos nossos colegas!
- Ah! sim? É tido como um dos nossos melhores embaixadores?
- Não, homem! Nada disso! Está no topo dos maiores estupores da nossa carreira, claro!
Não tenho registado o historial de conflito que terá existido entre os dois velhos diplomatas. Mas coisa séria deve ter sido...
(Reedição)

sexta-feira, junho 19, 2015

Marinho Pinto & Eurico Figueiredo


Conheci Marinho Pinto no final dos anos 60, em Vila Real. Tivemos longas e interessantes discussões políticas, à mesa da Gomes, bem antes do 25 de abril. Depois disso, fomo-nos encontrando a espaços e, naturalmente, acompanhei com interesse a sua expressão pública, primeiro na comunicação social, depois na vida corporativa dos advogados e, mais recentemente, na política. Nunca tive dúvidas da sua inescapável tentação pela afirmação política ativa.

Só vim a conhecer Eurico Figueiredo, figura mítica do associativismo académico português e do exílio político, depois do 25 de abril. Fui amigo e "discípulo" do seu pai, o saudoso democrata Otílio Figueiredo, com quem tive a honra de colaborar na aventura da oposição à ditadura, nas "eleições" de 1969. Acompanhei à distância o regresso de Eurico a Portugal, assisti de perto ao seu percurso inquieto dentro do PS e ao seu posterior afastamento do partido. Pelo meio, até apresentei um livro seu.

Mantenho hoje uma boa relação com ambos. Porém, conhecendo-os minimamente, e desde o primeiro dia, fui sempre de opinião - como muitos amigos se recordarão - de que a sua presença comum no seio da formação partidária que ambos criaram seria "sol de pouca dura".

Hoje, isso confirmou-se. As espadas desembainharam-se. Não sei se tenho pena, devo confessar.

A herança de Sócrates


Os governos chefiados por José Sócrates tiveram dois tempos distintos, no que respeita ao controlo das contas públicas. Depois de um período notável de contenção, a forma que assumiu a sua reação à crise global, na sequência de recomendações europeias, seguiu um caminho que conduziu a um descontrolo do défice. Uma forte injeção de dinheiros públicos não teve os esperados efeitos no crescimento e na recuperação da economia. Tudo foi agravado pela conjugação de fatores negativos, em especial pela retração económica dos nossos principais parceiros. Foi um tempo penoso, com uma Europa hesitante. Até que chegou a “troika”.

A atual maioria foi capaz de instalar no imaginário público a ideia de que o PS de Sócrates foi o único culpado pelo descalabro financeiro a que se chegou a 2011. Contudo, puxando pela memória dos anos imediatamente anteriores a essa data, não consigo recordar o catálogo de cortes orçamentais que os partidos dessa mesma maioria então propuseram. Pelo contrário, quase só me lembro de propostas para mais despesa. Era o PS que estava no governo, mas a oposição não deu então sinais da uma grande responsabilidade financeira. E disto, curiosamente, ninguém fala.

António José Seguro herdou um partido derrotado, num país com uma “troika” sob a sua principal assinatura. Esmagado pela “culpa” e pela necessidade de recredibilização como força de governo, cometeu o erro de deixar passar em quase silêncio a onda de diabolização do património dos governos de Sócrates, sem cuidar em valorizar as suas inúmeras virtualidades. Isso foi-lhe fatal, porque o PS não lhe perdoou.

Sócrates regressou entretanto ao país e, perante o embaraçado silêncio socialista, encarregou-se de defender a sua própria herança. Sem assumir um único erro, justificou-se e personalizou o debate com o presente. Em perspetiva, considerando o modo divisivo como já era então visto, somos forçados a concluir que ter Sócrates a promover a ação dos seus próprios governos acabou por não ser algo muito eficaz.De um dia para o outro, contudo, o mundo mudou. 

Sócrates foi preso e António Costa chegou à liderança de um PS incomodado consigo mesmo. Se defender parte do património dos governos de Sócrates iria sempre exigir um trabalho de “filigrana”, depois do terramoto da prisão a tarefa tornou-se muito mais difícil. Reconstruir uma proposta socialista credível nesta delicada conjuntura é a sua nova “quadratura do círculo”. E António Costa demonstra estar a conseguir fazê-la.

(Artigo que hoje publico no "Jornal de Notícias")

quinta-feira, junho 18, 2015

Do bom!

 
Rafael Ansón, presidente da recém-criada Academia de Gastronomia da União Europeia, é, nos seus 80 anos, uma figura de grande elegância, onde se não nota o efeito, que poderia ser considerado natural, de uma vida dedicada à arte da apreciação da boa mesa.
 
Num recente almoço em Lisboa, perguntei-lhe qual era o seu segredo: "Só como pouco e do bom". Antes que eu registasse a máxima, acrescentou: "... e do bom, muito!"
 
Não sei se vou conseguir seguir o conselho.

quarta-feira, junho 17, 2015

António Paes de Andrade (1927 - 2015)


Acabo de ter conhecimento da morte, em Brasília, de António Paes de Andrade.

Paes de Andrade foi um advogado e político brasileiro, tendo presidido à Câmara de Deputados, entre 1989 e 1991. Entre 2003 e 2007, foi embaixador do seu país em Lisboa. 

Encontrei-o, pela primeira vez, há pouco mais de dez anos, na véspera da minha partida para o Brasil, onde iria ser o seu contraparte. A nossa relação pessoal foi sempre excelente, o que não impediu que tivéssemos uma leitura diferente - e, a espaços, fortemente contrastante - de algumas situações que afetaram as relações luso-brasileiras por esses tempos. Mas tudo conseguimos resolver "numa boa", com muito humor à mistura e com sua gargalhada franca a sublinhar, nas nossas divertidas conversas, o relato de episódios da história política brasileira de que também fora protagonista. 

Há dois anos, quando a comunidade empresarial luso-brasileira do Nordeste me convidou para ir ao Ceará, para aí receber um prémio pela contribuição dada ao relacionamento económico bilateral, tive o gosto de receber esse galardão das mãos, já então frágeis, de António Paes de Andrade. Foi a nossa despedida.

Deixo à família de António Paes de Andrade o meu sentido pesar.

Lisboa e Jacinto



Lisboa anda afogueada com os turistas. Uma amiga, chegada do Chiado, dizia-me: "É gente a mais! Já não cabem!". O último "Prós e Contras" explicava que há zonas das cidade onde o conflito entre os visitantes festivos e os nativos está à porta da da explosão. Os políticos, nada oportunistas, tentam aproveitar a onda. Os hoteleiros, anafados de lucros mas tementes da concorrência, reeditam, em mais urbano, o confronto com as varinas da Nazaré, sentadas à soleira da sombra, com a placa clássica "Rooms / Chambres / Zimmer". Li, há minutos, que hoje houve pancadaria entre um taxista e um condutor de tuk-tuk. Isto vai bonito, vai!

Somos assim. O turista, que agora faz fila para comer o "típico" pastel de bacalhau com queijo da serra (ainda um dia vamos ver um pudim abade de Priscos lardeado com tripas, podem crer!), vai acabar por dar razão a Pessoa: "Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir / Sentir tudo de todas as maneiras, / Sentir tudo excessivamente, / Porque todas as coisas são, em verdade, excessivas / E toda a realidade é um excesso, uma violência ..."

Não sei porquê, lembrei-me da frase do Grilo, o criado do Jacinto, no 202 dos Champs-Elysées, em "A Cidade e as Serras", quando perguntado pelo Zé Fernandes sobre o que se passava com o seu patrão, que andava tão "murcho". "O venerando preto declarou com uma certeza imensa: Sua Excelência sofre de fartura!"

Lisboa "sofre de fartura". Os comerciantes da Baixa, infelizes, têm de encontrar uma nova "narrativa" para responderem às "Yolandas Brígidas" dos diretos das televisões, porque, coitados, já não podem usar a resposta com décadas: "Isto está cada vez pior, menina!". Já falta pouco para dizerem: "Isto são camones a mais, minha senhora! Mas ninguém põe uma mão nisto! Estragam-nos a cidade!"

Memorabilia diplomatica (XXXV) - A fotografia



Encontrei-o um dia, por acaso, no aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro. Ele era um oficial superior da polícia brasileira. O avião para Brasília estava atrasado. Ficámos à conversa.

Desde que eu chegara ao Brasil, havíamos criado uma boa relação pessoal, graças à intermediação de colaboradores meus. A cooperação entre Portugal e o Brasil na área policial era exemplar.

A nossa conversa foi divagando até que, a certo ponto, ele me perguntou:

- Conhece "fulano"?

O nome não me dizia rigorosamente nada.

- Não, porquê?

O meu amigo da polícia brasileira hesitou um pouco, talvez evitando ir mais longe no assunto. Mas eu estava já curioso.

- É um empresário brasileiro (e referiu o ramo de negócio). Tem a certeza de que nunca o encontrou?
Nunca podemos essas certezas. Um diplomata, em especial se é embaixador, cruza-se com muitas centenas de pessoas, fixa o nome de algumas, guarda a cara de outras tantas e esquece as restantes. Como poderia eu ter a certeza de não ter encontrado essa pessoa? Mas, para ele me falar nela, era, seguramente, alguém com problemas com a polícia. Insisti em saber um pouco mais.

- Esse homem está a ser alvo de um processo complicado. Falei-lhe nele apenas por uma razão, que motiva a nossa curiosidade: há no processo uma fotografia dele consigo...

Caí das nuvens, embora ainda faltasse algum tempo para o voo. O tal fulano tinha uma fotografia comigo? Quem diabo seria? Onde fora tirada a fotografia, tanto mais que eu nem me lembrava sequer do nome do homem?

Comecei a preocupar-me! Só me faltava, a mim, embaixador de Portugal no Brasil, ter o meu nome envolvido com o caso de um potencial delinquente! Agora é que eu queria mais pormenores.

E eles vieram. A fotografia tinha sido tirada num encontro em casa de uma empresária brasileira, aquando da visita de uns industriais portugueses ao Brasil.

Fez-se-me luz. Meses antes, uma amiga, empresária de sucesso em Brasília, convidara-me para um jantar em sua casa, onde reunia uns portugueses que pretendiam investir no Brasil com empresários brasileiros do ramo. Eramos quase vinte pessoas, se bem me lembrava. Desde essa noite, nunca mais tivera notícias do negócio.

Porém, de repente, num "flashback", recordei-me que um dos convivas pedira para tirar uma fotografia comigo. Não fazia ideia de quem era. Tratava-se de algo muito frequente no Brasil, porque havia gente que achava graça a ficar com uma recordação de um encontro com o embaixador de Portugal. Ele sabia isso, não sabia?

Sabia. E também presumia que a fotografia não tinha qualquer significado, embora figurasse no processo. Aproveitou então, como profissional da polícia, para me dar um conselho:

- Sempre que alguém que não conheça quiser tirar uma fotografia consigo, peça a pessoas que estejam próximas para se juntarem à "cena". Dessa forma, a naturalidade da situação fica automaticamente assegurada e não corre o risco de ser "apanhado" numa aparente cumplicidade pessoal com alguém que não sabe nem quem é nem o que pode vir a fazer no futuro...

Nunca mais me esqueci disto!

terça-feira, junho 16, 2015

Sons de casa


Um dia, em Brasília, numa magnífica casa em frente ao lago Paranoá, um amigo queixava-se-me de que, todas as manhãs, era acordado por um chilrear infernal de passarada, que isso lhe era extremamente incomodativo e que, se soubesse que tal ocorreria, não tinha alugado aquela moradia. Fiquei siderado! É que se havia coisa que me agradava na casa onde eu então vivia, a uns quilómetros de distância da dele, era começar o dia a ouvir o descansativo som musical das aves. E sentia mesmo pena por não poder ter ali comigo o meu pai, "birdwatcher" militante, que, nos seus noventa e muitos anos de então, se dedicava ainda a distinguir e identificar o gorjeio dos pássaros, que toda a vida o entretivera.

Nos dias que correm, por um bambúrrio acústico por que sempre me felicito, e que tem muito a ver com a casual barreira de prédios circundantes, vivo no centro de Lisboa numa casa em cujas traseiras, para além de um muito vago rumor de fundo da cidade, só ouço os pássaros que andam pelos jardins e os sinos de uma igreja (que nunca percebi se é de a Santos ou a da Estrela), complementado, em parte dos dias da semana, pelo "chilrear" da pequenada de um infantário próximo. De longe a longe, lá do rio, ouço o ronco da sirene de um navio de cruzeiros. E é tudo! A vizinhança é sereníssima, os barulhos da rua não chegam a grande parte da casa e, mesmo no bulício da manhã lisboeta, usufruo de um magnífico quase silêncio. Se há um "paraíso" sonoro em Lisboa, ele anda ali pelas traseiras e pelo jardim da minha casa.

Gabava-me desta "felicidade", há uns dias, a um amigo. Perguntou-me se os elétricos que passam à minha porta não se faziam sentir, inquiriu sobre o efeito das aceleradelas na minha movimentada rua, tive de garantir-lhe que as rotas dos aviões não cruzavam o meu "share" de céu. Por fim, sempre com um olhar cético, não resistiu a inquirir: "Mas será que tu ouves bem? É que, com a idade..."

Direita(s)

Há dias, publiquei no JN um artigo, que aqui já reproduzi, em que adiantava a ideia de que uma certa direita portuguesa não conseguiu, até hoje, fazer o "luto" da ditadura e tende a desculpar esta última sempre que pode. Com isso, facilita a que a esquerda mais radical teime em identificar toda a direita, em bloco, com esses tempos, o que faz com que esta tenda a evitar auto-qualificar-se como tal, como seria normal numa sociedade democrática. Enquanto o salazarismo continuar a ser desculpabilizado, enquanto a repressão de décadas e os crimes da Pide forem considerados coisas de somenos, enquanto se mantiver o discurso nostálgico sobre "os bons tempos" da ditadura e sobre os tempos coloniais - isto é, enquanto a direita democrática não tiver a coragem de dizer, alto e bom som, que, tal como a esquerda, repudia esse passado autoritário do país, a sua "diabolização" continuará a ser possível. 

Noto que, em França, a direita democrática denunciou sempre a extrema-direita, repudiou Vichy e foi de grande severidade para com o colaboracionismo. E não há nela laivos de saudades da "Algérie Française", sem deixar de saudar a memória de todos quantos, em qualquer circunstância, combateram pelas cores da bandeira nacional.

Por cá, mal se fala dos crimes salazaristas, saltam logo a terreiro os fantasmas "equiparadores" do comunismo e do estalinismo: ora em Portugal houve 50 anos de ditadura de direita e pouco mais de um ano de tentativa antidemocrática de esquerda. Comparar ambas as experiências é apenas desonesto.

Ontem, coloquei aqui uma foto de uma mesa em forma de suástica, ornada com a simbologia nazi e da ditadura portuguesa. Tratava-se de um jantar, promovido em Setúbal em 1938, para acolhimento de uma organização nazi. 

Logo surgiram, no blogue e no Facebook (neste caso em comentários a partilhas feitas por leitores), esfarrapadas justificações, tentando defender que aquele tipo de eventos seguramente tinha sido feito à revelia do regime salazarista, que à data "ainda não havia nazismo", que tudo se deveria a uma iniciativa de Rolão Preto e dos seus nacional-sindicalistas (que já estava há três anos exilado em Espanha...). Embora todos saibamos (ou devamos saber) que só por má fé se pode argumentar que, num sistema tão controlado como era o do Estado Novo de então, uma iniciativa como esta podia surgir espontaneamente, configurando uma linha ideológica em que a ditadura se não revia.

Alguma direita portuguesa, de facto, não tem emenda e, com este seu comportamento, ajuda ao "guetto" em que alguma esquerda quer fazer acantonar a verdadeira direita democrática. E enquanto esta se não distanciar da primeira, isolando-a, denunciando-a e "exorcizando" as memórias da ditadura, não há muito a fazer. Mesmo com cravos na lapela um dia por ano.

Contra a Nova Fronteira


Torna-se urgente criar um tecido de resistência contra uma nova fronteira que ameaça institucionalizar-se entre nós. Começa a ficar evidente que, sob a indiferença de muitos, com a cumplicidade de outros tantos e sob a resignação da maioria, está hoje criada uma linha divisória entre um Portugal litoral, onde continua a concentrar-se a esmagadora maioria das apostas de desenvolvimento, e um interior ao qual são concedidos apoios esparsos, que apenas obedecem à retórica do “politicamente correto”, mas se revelam incapazes de romper um destino de declínio, no sentido da desertificação e da progressiva desqualificação regional.

Romper com esta aparente inevitabilidade torna-se urgente. Essa luta, que tem rapidamente de abandonar a sua subordinação ao confronto histórico Norte-Sul, implica a assunção de um novo paradigma de alianças que – e sei que isto pode ser polémico – leve Bragança ou Vila Real a sentirem-se muito mais próximos de Viseu ou da Guarda, do que do seu alinhamento histórico com Braga ou com o Porto. Porquê? Porque basta olhar para o estado atual do interior norte e centro para se constatar, com facilidade e com números, que a aliança do passado provou que dela só foi vencedora a zona litoral. Ora é óbvio que é a similitude de interesses que deve presidir às prioridades em matéria de estratégias comuns. Por essa razão, e a título de exemplo, perante a eventual inconveniência conjuntural de se reabrir o tema da regionalização, tornou-se para mim muito evidente que discutir a pertinência da existência de uma CCDR-N constitui hoje um imperativo.

A plataforma “Mais Interior, Mais Portugal”
é uma iniciativa ousada de mobilização da massa crítica que o interior possui – com os seus quadros, as suas instituições, o seu ensino superior, o seu tecido económico. Essa massa crítica constitui uma chave essencial para conseguir uma nova afirmação do interior no quadro nacional. Sem constrangimentos nem tabus, sem partidarismos mas também sem seguidismos, torna-se importante abrir um debate, sereno mas firme, que possa ajudar a apontar um novo caminho de futuro para o interior do país. Pela minha parte, estou disponível para contribuir para essa discussão.

Nazis

 
Para quantos acham que o "flirt" entre o salazarismo e o nazismo foi um mito, aqui deixo uma fotografia de 1938, da autoria do fotógrafo setubalense Américo Ribeiro, numa fábrica de conservas de Setúbal. Só ontem reencontrei esta foto, num livro que tinha perdido há uns anos.

Veja-se o pormenor das mesas postas em forma de suástica, o retrato de Hitler ladeado dos de Salazar e de Carmona, bem como as bandeiras nazi e da organização nazi "Força pela Alegria".

Resta esperar que não apareça por aí um fabiano qualquer a dizer que tudo isto se passou à revelia das orientações do regime...

(Como era expectável, apareceu mesmo nos comentários um fabiano a atribuir ao chefe nacional-sindicalista Rolão Preto a provável organização do jantar.  Acontece que a fotografia foi tirada em 1938 e Rolão Preto, que havia sido detido pelo regime em 1935, estava, à época da foto, exilado em Espanha. Não passa pela cabeça de ninguém - ou melhor, passa por quem quiser absolver Salazar - que, do exílio, ele tivesse organizado o repasto. Falsificar a História dá jeito, exceto quando se dá conta...) 

segunda-feira, junho 15, 2015

Schengen

 
Na passada sexta-feira, durante um debate organizado pelo Instituto Europeu, da Faculdade de Direito de Lisboa, a propósito dos 30 anos de assinatura do Acordo de Schengen, alguém recordou que, na sequência do assassinato dos jornalistas do "Charlie Hebdo" em Paris, várias vozes se ergueram na Europa a culpar Schengen pelas facilidades que conduziram ato terrorista. Há anos, recordo-me de ter ouvido o mesmo, por ocasião de uns atentados em Londres.
 
A má fé, a desinformação ou o simples desconhecimento têm de ser combatidas com firmeza. Os terroristas franceses nasceram e viviam em França, da mesma forma que os assassinos britânicos eram nados e criados na Grã-Bretanha. Ah! e, além do mais, o Reino Unido não faz parte de Schengen!

Só vista!


No sábado, jantei na casa de um amigo que, da varanda, tem (apenas!) esta vista, que a fotografia não consegue revelar bem, mas que é bastante mais do que 180º. Cliquem sobre a imagem, para ver melhor.

E, depois, admirem-se que haja revoluções e luta de classes!

domingo, junho 14, 2015

A Feira do Livro


São mais baratos os livros na Feira do Livro? Não muito! Há livrarias em Lisboa que, ao longo do ano, vendem já com desconto permanente. E, se a isso somarmos os cartões de desconto - da Bertrand, da FNAC ou da Almedina - essa perspetiva melhora ainda mais. Além disso, para obras em segunda mão, há espaços semanais de venda por toda essa Lisboa. Resta concluir que, como na Feira acabamos por comprar muitas coisas que, em dias normais, nunca compraríamos, lá se vai rapidamente qualquer poupança...

Mas a Feira é uma festa única, porque nos dá, em poucas centenas de metros, um "fresco" da edição portuguesa (e também alguma coisa em inglês e espanhol). Com ela, aumenta em nós aquela resignada angústia face à imensidão de livros que gostaríamos de ter lido (embora, para isso, no meu caso, não precise de sair de casa) e que nunca leremos, porque o tempo não se compra. Na Feira aprendemos a conhecer novas editoras, descobrimos edições de autor (quase sempre com péssimas capas) a que dificilmente chegaríamos sem essa "montra", recuperamos para a vista livros que nos haviam escapado do dia-a-dia das visitas às livrarias.

Na Feira também conseguimos fugir a uma das mais sinistras práticas comerciais que se usam em Portugal: a ditadura da exposição livreira. Sem nos darmos conta, grande parte das principais livrarias portuguesas vive hoje sujeita à obrigatoriedade, por compromisso com as grandes cadeiras editoriais e de distribuição, de darem prioridade na exibição nas suas montras e nas mesas de apresentação, às edições provenientes dessas específicas indústrias de fabricação encadernada de páginas escritas, anulando fortemente a visibilidade de outras obras que não beneficiam desses apoios.

Este ano, passei por três vezes pela Feira. Comprei alguns livros óbvios (como a nossa Constituição atualizada, que cada vez faz mais falta), outros mais estranhos e inúteis, outros para trabalho. Ontem, já de saída da última jornada, dirigiu-se a mim uma jovem muito bonita, perguntando-me se a conhecia. Tenho boa memória para caras (em especial para caras bonitas...), mas, no instante, hesitei. Ela explicou: tínhamos passado férias juntos há mais de vinte anos, na Turquia, com um grupo de amigos, era ela ainda uma criança. E agora ali estava ela, a assinar livros, como autora. Por um mero acaso - às vezes, acontece! -, eu tinha lido e apreciado muito os livros que ela escrevera, sem saber que conhecia a autora. A graça da Feira também é isto.

sábado, junho 13, 2015

Festas


Gosto imenso de festas populares. Nos últimos anos, tenho assistido "religiosamente" ao Santo António, em Lisboa, ao São João, no Porto, e à Senhora da Agonia, em Viana do Castelo. Estou a planear, em anos futuros, estar presente em outras romarias: nunca fui às Gualterianas, em Guimarães, ao São João de Braga ou ao Senhor de Matosinhos. E tenho de voltar aos tabuleiros a Tomar e à festa das flores a Campo Maior. Sinto saudades das Feiras Novas, de Ponte de Lima, da Senhora da Pena, em Mouçós, dos Remédios, em Lamego, dos Santos, em Chaves.  Falam-me da romaria na Serra de Arga, da festa da Coca, em Monção e de S. Bartolomeu do Mar, em Esposende.

Gosto do barulho das ruas, da música aos berros, do fumegar das febras, do pessoal "cervejado" a andar aos bordos, dos estrangeiros com os olhos esbugalhados com a nossa alegria, dos feirantes heróicos de terra em terra, dos automóveis elétricos, das rodas só gigantes à nossa medida. Apenas a qualidade do comércio piorou. Desapareceram as magníficas lojas de cutelarias e couros, com aquelas montras vidradas inclinadas, onde se comprava uma imensidão de coisas. Hoje o que se vê (salvo o magnífico artesanato de Viana) são roupas péssimas, "chinesices" e arte africana de décima categoria, para além das carteiras de contrafação para senhoras. Mas ainda fico longos minutos, deliciado, a assistir ao discurso da "banha da cobra" e da venda dos cobertores e panelas, por aqueles cavalheiros num vão de camioneta, com o grosso microfone ao pescoço. E tenho um fascínio pelas mesas "rápidas" de vermelhinha que se montam para os incautos, em lugares esconsos. O ludíbrio é uma arte secular das feiras.

Ontem, com amigos, ensardinhei no Castelo, fui às farturas nas Portas do Sol, emborquei uma ginginha em Alfama. A noite estava um pouco fria, mas o ambiente era explêndido. Para o ano, já prometi a mim mesmo: vou mudar de bairros. Vou andar pela a Bica, Santa Catarina e na animação do Cais do Sodré e Santos. Há muitas Lisboas na noite de Santo António. 

Só se vive uma vez. E esta é a última. Vivam as festas!

sexta-feira, junho 12, 2015

Teixeira dos Santos


Na primeira metade de 2011, Portugal entrou num tempo em que os mercados, descrentes na capacidade de sustentação económico-financeira do país, fizeram disparar os juros das obrigações portuguesas, dificultando crescentemente o refinanciamento da nossa dívida. O modo como a partilha de custos na reestruturação da dívida pública da Grécia se havia processado fora um alerta para os investidores, que viam a Europa ainda titubeante em soluções coletivas.

Porque levara longe demais, sem o esperado retorno em crescimento visível, a injeção de capitais públicos na economia, o nosso país viu-se numa espiral de crescente falta de liquidez, com redução do suporte do seu sistema bancário, também ele a sofrer paralelas dificuldades no acesso aos mercados.

Procurou-se então garantir, numa antecipação daquilo que a Europa acabaria mais tarde por criar de forma institucionalizada, um apoio das instâncias comunitárias, a troco de um programa muito estrito de reformas. Os poderes europeus partilhavam connosco a preocupação de tentar aplacar o nervosismo dos mercados – muito pela preocupação de não deixar estender essa inquietação a economias europeias cuja turbulência poderia ter consequências sistémicas na sustentação do euro. Basta recordar o que então diziam Merkel, Trichet e Barroso para se entender a determinação política que marcava esse apoio a Portugal.

Como embaixador em Paris, fui testemunha diária do nosso esforço. E recordo-me muito bem do desapontamento e incredulidade com que foi recebida a rejeição, pelo nosso parlamento, do programa que a Europa tinha apoiado e que, pelo menos por algum tempo, teria evitado – e isso é hoje uma evidência - o recurso ao resgate.

Cá dentro, as coisas acabaram por correr como correram e o governo demitiu-se. O que depois se passou, entre a obstinação de um primeiro-ministro que ia adiando o pedido de uma ajuda que seria inevitável e um ministro das Finanças que apenas antecipou, com realismo e coragem, essa inevitabilidade, já faz parte da “petite histoire” de um fim de ciclo – e um dia se falará de como essa circunstância terá debilitado a capacidade nacional na negociação do próprio “memorando de entendimento” com a Troika.
 
Teixeira dos Santos, ministro das Finanças, teve à época um comportamento marcado por um elevado sentido de responsabilidade, até hoje incompreendido por muitos. A sua distinção no último 10 de junho é um gesto que atenua a fama do Estado ser ingrato para com os seus mais dedicados servidores. 

(Artigo que hoje publico no "Jornal de Notícias")

Os meus Jerónimos


12 de junho de 1985. 

Estava colocado na nossa embaixada em Luanda. A última coisa com que a televisão angolana se preocupava era com a cerimónia que, nesse dia, reuniu nos Jerónimos os líderes europeus, para a assinatura do tratado de adesão de Portugal. Os pormenores do evento só nos chegaram dias depois, pelos jornais na mala diplomática, num país em guerra onde a imprensa internacional não se vendia (minto, exceto o "Avante!") e onde o "Jornal de Angola" só dava a verdade local a que os angolanos tinham direito.

Eu não era então um grande entusiasta da adesão do país às Comunidades Europeias (é assim que se deve dizer, em rigor: "Comunidades Europeias", porque aderimos nesse dia à Comunidade Económica Europeia, à Comunidade Europeia da Energia Atómica e à Comunidade Europeia do Carvão e do Aço). A minha perspetiva política de então levava-me a ser muito reticente quanto às perdas de soberania que essa integração já significava (e coloco o "já" porque a densidade das políticas europeias da época era ínfima, comparada com o que é hoje). Temia, em particular, que entrássemos por essa via num espartilho político que sobredeterminasse a nossa capacidade autónoma de decidir sobre o destino da nossa vida interna, que colocasse em causa os valores constitucionais plasmados, menos de uma década antes, numa Constituição que eu tinha por barreira sacrossanta às investidas liberais e anti-sociais que, cada vez mais, se prenunciavam.

Não me recordo, por isso, de ter então sentido uma particular emoção com o acto que teve lugar nos Jerónimos. A aventura europeia não me animava. Temia mesmo dela o pior.

Na década seguinte, fiz a minha aprendizagem da Europa: em cargos em Lisboa, em frequentes deslocações a Bruxelas, no ambiente anti-europeu de Londres, como subdiretor-geral dos Assuntos Europeus, como negociador da revisão de Tratado de Maastricht. No termo desses 10 anos, fui nomeado, por mais de cinco anos, membro do governo encarregado da Europa.

Hoje, olho para cerimónia dos Jerónimos com uns olhos muito diferentes. Tenho a convicção profunda de que foi um marco histórico na nossa modernidade como país. Sinto-me nela representado.

B & B

Há bastantes anos que ouvia falar daquele restaurante, situado numa certa capital de distrito, onde não vou muito e onde tinha escassas refe...